8. OBJETO
Conforme dispõe o caput do art. 1º da Lei 9.882/99, a ADPF "terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público". Desse modo, o objeto da ADPF é significativamente mais amplo do que objeto da ADI, que abrange apenas lei ou ato normativo federal ou estadual, a teor do art. 102, I, a, da Constituição.
Apesar de proceder a uma louvável ampliação do objeto do controle concentrado, a lei restringiu o campo de incidência da ADPF aos atos do Poder Público. Nesse sentido, os atos privados, originados de particulares não são impugnáveis por via da arguição. Entretanto, é importante lembrar a advertência de Luís Roberto Barroso:
Determinados atos privados devem ser equiparados aos praticados por autoridades públicas. Incluem-se nessa categoria aqueles executados por entidades privadas que agem mediante delegação do Poder Público, sejam as controladas pelo Estado, ou as titularizadas exclusivamente por particulares (2009, p. 297).
Assim, em princípio, os atos envolvendo particulares não podem ser objeto de ADPF. Quando, entretanto, tratar-se de atos administrativos expedidos por empresas concessionárias ou permissionárias de serviço público, por exemplo, é possível o cabimento da argüição.
8.1. Atos normativos
Por "atos normativos" devem-se entender todos os atos estatais dotados de abstratividade, generalidade. Para os fins de ADPF, estão abrangidos os atos normativos primários e secundários, sejam eles federais, estaduais ou municipais, anteriores ou posteriores à Constituição.
8.1.1. Atos normativos primários e secundários
Os atos normativos primários, em geral, serão objeto de ADI, ressalvada a possibilidade de subsidiariedade da ADPF. Diferente ocorre com os atos normativos secundários. A regulamentação da ADPF veio a colmatar a lacuna deixada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal formada em torno da ação direta de inconstitucionalidade. Como já visto, o STF não admite ADI contra ato normativo secundário (ato infralegal), sob o argumento de que, nesse caso, há ilegalidade e não inconstitucionalidade.
Pela regra da subsidiariedade, a inadmissibilidade de ação direta de inconstitucionalidade torna cabível a arguição de descumprimento de preceito fundamental contra atos normativos secundários ou infralegais, de que são exemplos as portarias, os regulamentos e as resoluções.
Assim, tanto os atos normativos primários (art. 59 da Constituição) quanto os atos normativos secundários podem ser objeto de ADPF, respeitada, quanto aos primeiros, a subsidiariedade desta ação em face da ADI.
8.1.2. Atos federais, estaduais e municipais
O "ato do Poder Público" violador de um preceito fundamental pode ocorrer em qualquer ente federativo. Evidentemente, tratando-se de ato federal ou estadual, a incidência da ADPF será reduzida aos casos em que não seja cabível ação direta de inconstitucionalidade
Como a jurisprudência, interpretando literalmente o art. 102, I, a, da Constituição, não admite ação direta de inconstitucionalidade contra lei ou ato normativo municipal [10], a ADPF, por força de sua subsidiariedade, aplica-se plenamente aos atos municipais. É válida, contudo, a colocação de Gustavo Binenbojm:
Faz-se mister, todavia, ponderar que a Lei n. 9.882/99 não conferiu legitimidade aos Prefeitos Municipais, nem tampouco às Mesas de Câmaras Municipais ou a qualquer entidade pública ou privada de âmbito municipal, para manejarem o novo instrumento. Resta saber a quem interessará deflagrar, via argüição de descumprimento de preceito fundamental, a jurisdição da Suprema Corte para o exercício do controle de constitucionalidade de leis e atos normativos municipais. Espera-se que a Lei n. 9.882/99 não tenha criado – como diria Barbosa Moreira – um sino sem badalo (2001, p. 194) (grifos originais).
8.1.3. Atos anteriores e posteriores à Constituição
Os atos posteriores à Constituição, em regra, serão apreciados pela via da ação direta de inconstitucionalidade. Subsidiariamente (ato infralegal, por exemplo) será cabível ADPF. Com relação aos atos anteriores à Constituição, novamente a ADPF, por força de sua subsidiariedade, preenche um espaço deixado pela jurisprudência do STF.
Com efeito, prevalece no Direito brasileiro o entendimento de que a relação de incompatibilidade entre uma lei pré-constitucional e a Constituição se resolve pelo Direito intertemporal. É dizer: não se admite a inconstitucionalidade material superveniente [11]. O conflito de uma lei pré-constitucional com a Constituição se coloca como recepção ou não-recepção (revogação).
Como a incompatibilidade de lei pré-constitucional opera no plano da vigência (revogação) e a inconstitucionalidade no plano da validade (nulidade), não faria sentido propor uma ação direta de inconstitucionalidade contra uma lei que já não integra o ordenamento jurídico. Entretanto, pairava a dúvida a respeito da recepção ou não da norma. Não havendo meio capaz de sanar essa lesividade, é plenamente possível a propositura de ADPF em face de ato anterior à Constituição, para aferir-lhe a legitimidade.
8.2. Atos não normativos
Os atos não normativos (não dotados de generalidade e abstratividade) do Poder Público também são impugnáveis pela via da arguição de descumprimento de preceito fundamental.
Desse modo, a ADPF pode ser utilizada no controle dos atos concretos ou individuais do Estado e da Administração Pública, incluindo os atos administrativos, os atos ou fatos materiais, os atos regidos pelo direito privado e os contratos administrativos, além de abranger, outrossim, até as decisões judiciais e os atos políticos e as omissões na prática destes atos, quando violem preceitos constitucionais fundamentais.
Assim, a significativa amplitude do objeto da argüição tornou possível o controle abstrato de constitucionalidade dos atos concretos e das atividades materiais do Estado (como a nomeação do Procurador-Geral da República sem a exigência de ser o nomeado um membro da carreira do Ministério Público da União; um decreto declaratório de interesse social de um bem imóvel produtivo para fins de desapropriação para reforma agrária, em flagrante afronta a direito de propriedade; uma ordem de serviço para a execução de determinada construção, expedida e executada em violação ao princípio da moralidade administrativa) (CUNHA JÚNIOR, 2011, p. 595).
Com relação ao controle das súmulas, o STF tem precedentes no sentido de não admitir ADPF contra súmula vinculante [12] e enunciado de súmula jurisprudencial [13].
9. PROCESSO
Para ser admitida, a petição inicial deve conter necessariamente: (i) a indicação do preceito fundamental que se considera violado; (ii) a indicação do ato questionado; (iii) a prova da violação do preceito fundamental; (iv) o pedido, com suas especificações. Cuidando-se, entretanto, de argüição incidental, para além destes requisitos, exige-se a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental que se considera violado (art. 3º).
A petição inicial será indeferida liminarmente, pelo relator, quando não for o caso de argüição de descumprimento de preceito fundamental, faltar algum dos requisitos prescritos nesta Lei ou for inepta (art. 4º). Da decisão de indeferimento da petição inicial caberá agravo, no prazo de cinco dias (art. 4º, § 2º)
Cumpre ressaltar, entretanto, que embora deva o preponente na argüição indicar precisamente os fundamentos jurídicos da ação (isto é, apontar o preceito fundamental que considera violado), o STF não fica adstrito a esses fundamentos, cabendo-lhe, pois, examinar a constitucionalidade dos atos atacados em face de todos os preceitos fundamentais consagrados na Constituição Federal (cláusula de pedir aberta). O pedido, todavia, delimita o objeto da ação, de tal modo que o STF só pode apreciar os atos questionados [14].
Admitida a argüição, o STF passa a apreciar o pedido de liminar, caso formulado. Em regra, a competência para o exame do pedido de medida liminar é do Plenário do Supremo Tribunal Federal, que só poderá concedê-la por voto da maioria absoluta de seus membros, ou seja, por voto de seis de seus membros (art. 5º). Todavia, admite a Lei nº. 9.882/99 (art. 5º, § 1º), excepcionalmente, que a medida liminar possa ser analisada e concedida pelo Ministro relator, ad referendum do Tribunal Pleno, em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave ou, ainda, em período de recesso do Tribunal.
A concessão de medida liminar deve ser entendida como uma providência excepcional, em razão de militar em favor dos atos estatais a presunção de sua constitucionalidade. Por isso, a sai concessão está condicionada à satisfação de dois requisitos: (i) fumus boni iuris, consistente na plausibilidade jurídica dos fundamentos invocados; (ii) periculum in mora, que consiste na possibilidade de dano irreparável ou de difícil reparação decorrente da demora da decisão final.
A Lei n º. 9.882/99 não dispõe claramente acerca dos efeitos dessa medida. Apenas prevê que a liminar poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes da coisa julgada (art. 5º, § 3º).
Apreciado o pedido de liminar, o relator solicitará as informações às autoridades responsáveis pela prática do ato questionado, no prazo de dez dias. Se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria (art. 6º, § 1º). Poderão ser autorizadas, a critério do relator, sustentação oral e juntada de memoriais, por requerimento dos interessados no processo (art. 6º, § 2º).
Decorrido o prazo das informações, o relator lançará o relatório, com cópia a todos os ministros, e pedirá dia para julgamento (art. 7º)
10. DECISÃO E EFEITOS
Conforme dispõe o art. 8º da Lei 9.882/99: "a decisão sobre a argüição de descumprimento de preceito fundamental somente será tomada se presentes na sessão pelo menos dois terços dos Ministros". Desse modo, o quorum mínimo para a instalação da sessão de julgamento é de oito ministros.
Apesar de a Lei não falar a respeito (o dispositivo que previa o quorum para votação foi vetado), deve-se entender que o quórum para julgamento da argüição será o de maioria absoluta, a teor do artigo 97 da CF/88 e, analogicamente, do artigo 5º, da Lei nº. 9.882/99.
Conforme dispõe o art. 10 da Lei 9.882/99: "julgada a ação, far-se-á comunicação às autoridades ou órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados, fixando-se as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental". A decisão terá eficácia contra todos (erga omnes) e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público (art. 10, § 3º).
A decisão é declaratória e produz efeitos ex tunc. Por conta disso, é perfeitamente possível a aplicação das técnicas da interpretação conforme a Constituição, da declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto e do apelo ao legislador, por aplicação analógica do parágrafo único do artigo 28 da Lei nº. 9.868/99.
Apesar de produzir efeitos erga omnes e ex tunc, pode o STF, tendo em vista razões de segurança jurídica e excepcional interesse social, modular os efeitos da decisão (art. 11). Essa modulação poderá ser: (i) subjetiva, consistindo numa limitação da eficácia erga omnes, para dela excluir determinadas situações; (ii) temporal, resultando numa mitigação dos efeitos retroativos da decisão. Quanto à modulação temporal, poderá ela ser: 1) restrita, quando excluir da retroatividade determinado lapso temporal anterior à sentença; 2) prospectiva, quando resultar numa declaração constitutiva (ex nunc); 3) pro futuro, quando for estabelecido como termo inicial da produção dos efeitos um momento posterior à sentença.
A decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido em argüição de descumprimento de preceito fundamental é irrecorrível, não podendo ser objeto de ação rescisória (art. 12). Caberá reclamação contra o descumprimento da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na forma do seu Regimento Interno (art. 13).
11. CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL RELEVANTE
Apesar de, conforme já aludido, a modalidade incidental estar praticamente inutilizada, cumpre investigar o que significa "controvérsia constitucional relevante", que a Lei exige como requisito para ADPF incidental.
A exigência da relevância das questões debatidas justifica-se pelo fato de a ADPF incidental proporcionar o trânsito direto e imediato ao Supremo Tribunal Federal das questões constitucionais discutidas num determinado caso concreto. Para ser possível essa elevação processual, as questões devem se apresentar relevantes, a ponto de merecer um antecipado, rápido e eficaz pronunciamento da Corte. Vale dizer, somente a prévia existência de um conflito que se traduza numa insegurança jurídica geral, cuja resolução imediata é de interesse público, justifica a instauração do processo constitucional pela via da argüição incidental, assegurando, desse modo, que a jurisdição constitucional da Corte não seja suscitada para apreciar questões de somenos importância.
Com isso, o legislador ordinário confere ao Supremo Tribunal Federal um considerável poder discricionário para a filtragem dos casos, possibilitando à Corte avaliar e selecionar as questões compreendidas por ela como efetivamente relevantes.
Deve ficar claro, no entanto, que o requisito da controvérsia constitucional relevante está limitado à argüição incidental, não se estendendo à argüição direta ou autônoma. Não teria sentido que se impusesse essa condição de admissibilidade à fiscalização abstrata autônoma, que não pode depender, ante sua própria natureza objetiva, da prévia existência de controvérsia judicial (CUNHA JÚNIOR, 2011, p. 618).
12. CONCLUSÃO
A arguição de descumprimento de preceito fundamental veio a completar o já complexo sistema de controle de constitucionalidade brasileiro. O espírito que moveu o legislador ordinário na sua regulamentação foi o de colmatar as lacunas deixadas pela construção jurisprudencial do STF. Apesar de o instituto não ter revelado todas as suas potencialidades, vislumbra-se nele um importante instrumento de defesa dos direitos fundamentais. A tímida posição a que a ADPF tem sido relegada é apenas mais um motivo para que a doutrina e a jurisprudência do STF busquem ampliar seu âmbito de incidência, máxime por ser esta ação destinada à defesa das normas mais importantes e sensíveis da Constituição.