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O ousado projeto neoconstitucionalista e sua plena adequação à realidade brasileira

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16/09/2011 às 09:57
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4. UM NOVA TEORIA CONSTITUCIONAL: O NEOCONSTITUCIONALISMO

4.1 Intróito

Engendrada uma nova teoria do direito (o pós-positivismo), as repercussões no campo da teoria constitucional seriam profundas e inevitáveis. Forjada no intento de conferir máxima eficácia às normas constitucionais - tomadas, até então, como vimos, na qualidade de simples programações políticas -, a teoria neoconstitucionalista representa o desejo de superação de uma visão fria e pálida do Direito, tomando-o, a partir de uma requintada dogmática substantiva, um poderoso instrumento ético e técnico de alteração da realidade e melhoria das condições da sociedade como um todo [40]. Agrega-se, pois, ao cientificismo jurídico, uma dimensão transformadora, conformadora, de modo a fazer valer in concreto os comandos exarados no estuário constitucional [41].

4.2 Pressupostos Básicos [42]

4.2.1 Supremacia Constitucional

O termo constitucionalismo é relativamente recente na história humana ocidental, guardando íntima ligação com as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, que deram vida ao Estado Liberal. É no nebuloso contexto das monarquias absolutas que nasce a idéia de inteira submissão da ação estatal a uma norma superior positiva [43]. Com essa bandeira de luta, vinga o pensamento de que o poder político só é legítimo quando exercido dentro das balizas democraticamente fincadas na Constituição pela soberania popular [44].

Entretanto, como destaca VIEIRA:

"O constitucionalismo europeu, que vem estruturar a nova ordem que sucede ao antigo regime, em muito irá se diferenciar dos rumos assumidos pelo modelo americano. Apesar de uma origem revolucionária comum, que colocou o povo como detentor da soberania popular e a assembléia constituinte como órgão capaz e legitimado para estabelecer uma nova Constituição, as sucessivas crises políticas e a restauração monárquica, sob o signo de uma soberania partilhada, não permitem que estes novos documentos constitucionais, pelo menos durante o século XIX, assumam uma posição clara de lei superior, como ocorrido nos Estados Unidos" [45].

Mas tal concepção haveria de receber nova coloração. Com efeito, após a 2ª Guerra Mundial, a banalidade do mal [46] fez a humanidade refletir intensamente sobre suas ações e seu próprio futuro. No campo jurídico, dentre outras repercussões dessa fase, voltou-se a se reconhecer que o Direito precisa estar em constante diálogo não só com a realidade que o circunda, mas também com os valores que a permeiam.

Nessa esteira, viu-se na Constituição Federal um ótimo habitat para cultivar as premissas éticas que naquela ocasião fervilhavam. Injetou-se, então, em seu texto, diretrizes axiológicas fundamentais orientadoras da organização política e social. As Constituições passaram, de fato e efetivamente, a se denominar, na inteireza do termo, genuínas Lex Fundamentalis. À luz dessa ótica, a positivação dos direitos fundamentais em textos constitucionais representou circunstância de decisiva contribuição para que as Constituições modernas sobrelevassem em respeito e fossem decididamente legitimadas em seu status de "lei suprema" [47].

Há que se registrar, ademais, que na atual quadra de pensamento, encarar-se a Constituição como uma norma superior em relação às demais nem mais sequer se constitui apenas um princípio (princípio da supremacia da Constituição). É mais que isso: hoje, é pressuposto inarredável da própria formação e funcionamento do Estado [48]. Cuida-se mesmo de um dos pilares do modelo constitucional contemporâneo, porquanto, com a promulgação da Constituição, a soberania popular se convola em supremacia constitucional [49].

É bem verdade que já desde KELSEN a Constituição está alçada ao posto de norma-ápice, o vértice do ordenamento jurídico. Essa superioridade, todavia, exigia, do restante do sistema de normas, apenas e tão-somente uma vinculação formal de validade das normas jurídicas inferiores em relação àquela norma superior, não se concebendo, ainda, nessa forma kelseniana de ver as coisas, a possibilidade de uma vinculação material - atinente a valores substantivos de justiça - do sistema infraconstitucional em relação aos preceitos constitucionais.

Nessa visão, à constitucionalidade da norma bastava o atributo da vigência; bastava a elaboração legislativa à luz dos preceitos constitucionais, não importando se o resultado dessa atividade legiferante se afigurava, ao final, justo ou não. Não se perquiria sobre legitimidade; só importava legalidade [50]. Àquela época, como vimos, Direito e Lei eram gêmeos univitelinos. E a busca de referenciais axiológicos, uma prática herética.

Não é difícil perceber que essa postura jurídica se mostrou extremamente perigosa, na medida em que, "lavando as mãos" quanto a critérios de justiça, possibilitava a formulação de um sistema jurídico abonador de arbitrariedades. Coincidência ou não, foi justamente quando imperava a lei e a legalidade que a humanidade viu ser escrita uma das páginas mais tristes de sua historia: a 2ª Guerra Mundial e o Holocausto, cujas atrocidades foram praticadas ao abrigo da própria Constituição, que, adepta de uma visão jurídica míope, confundindo lei e direito, assumiu uma postura extremamente refratária a elucubrações morais e avessa a confrontações com critérios materiais de justiça [51].

Embora altamente relevante, enquanto passo inicial, essa espécie de supremacia, destinada apenas a refrear o Estado, revelou-se ainda insuficiente para a garantia de altos anseios humanistas para a sociedade, porquanto desprovida de uma necessária eficácia substantivamente abrangente [52].

4.2.2 Normatividade Constitucional

Muito embora soe estranho, fato é que durante um longo período campeou a idéia de que a Constituição encerraria uma mera proclamação de princípios políticos, cuja eficácia concreta dependeria sempre da implementação do legislador infraconstitucional. Imaginava-se que seu bojo era dotado de um material eminentemente político e moral - nunca jurídico, ou, mais precisamente, normativo, no sentido de imperativo, auto-determinante, vinculativo [53].

Seus comandos, em razão disso, eram voltados mais para o legislador e o administrador, que detinham a incumbência de dar concretude e cumprimento às promessas políticas ali plasmadas. As normas constitucionais eram vistas, portanto, como simples regras programáticas, atraindo, com isso, uma percepção restritiva, que ao tempo em que ofuscava sua importância social, também esvaziava qualquer potencialidade jurídica que se lhe quisesse imprimir. É o tempo das Constituições "folhas de papel" [54]. Nesse quadro, os direitos fundamentais só valiam no âmbito e no limite das leis que os reconhecessem, não sendo possível a invocação direta da Constituição por parte dos jurisdicionados [55].

Esse panorama redundou numa crise de implementação dos anseios constitucionais. Segundo alguns, hoje, mais importante que declarar direitos é efetivar os direitos já declarados [56]. Para tanto, como bem leciona PORTO, "o Estado Democrático de Direito precisa lançar mão do recurso normativo mais poderoso na tradição jurídica - a Constituição -, impondo um Constitucionalismo que postulará a força normativa da Constituição..." [57].

Com a exsurgência generalizada, ao longo do século XX, de instrumentos de controle de constitucionalidade, e com a emergência do Estado Social, opera-se uma redefinição do papel da Constituição: antes, no Estado Liberal, ela se propunha a garantir direitos individuais, não interferindo na sociedade; agora, no Estado Social, ela se apresenta como promotora dos direitos sociais e econômicos, apontando objetivos a serem perseguidos pelos Poderes Públicos, interferindo e transformando a sociedade [58].

Coube ao jurista italiano CRISAFULLI, então, em 1952, difundir a boa idéia de que todas as normas constitucionais, ainda que meramente programáticas, detêm pelo menos um mínimo de eficácia jurídica [59], o que representou um forte avanço na temática. É dizer: inobstante possa existir uma certa gradação entre os graus de eficácia, todas as normas constitucionais possuem uma carga de eficácia, mínima que seja, já que, pelo menos influenciam na interpretação/integração do ordenamento jurídico, vinculam as formulações normativas do legislador e, inclusive, produzem o fenômeno da não-recepção do direito anterior que se apresentar como incompatível com seus preceitos [60].

No âmago de toda essa discussão, surge o jurista HESSE, apregoando de uma vez por todas a plena força normativa da Constituição, como uma resposta ao ceticismo lassalliano e ao normativismo kelseniano.

HESSE se opõe ao pensamento de LASSALE, refutando que a Constituição seja apenas uma "folha de papel", eis que, embora vinculada à realidade histórica em que firmada, a essa realidade, porém, não se condiciona totalmente [61]. Aqui, são pertinentes os escólios de PEDRO PORTO, verbis:

"É preciso reconhecer que a norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade, sua essência é sua vigência, ou seja, o telos da norma é concretizar a situação por ela regulada. Concebendo-se a norma não apenas como uma forma vazada em palavras solenes, mas como um texto que anseia por tornar-se substância, por ser eficaz, resulta impossível separar a norma e a realidade histórica em que se encontra contextualizada, pois é esta realidade o solo mesmo do vigor normativo ou do seu definhamento. Essa pretensão de eficácia da norma jurídica, para atingir sua meta, deve, portanto, levar em conta as condições técnicas, naturais, econômicas e sociais de uma realidade, bem como o substrato espiritual de cada sociedade, traduzido nas concepções sociais concretas e no arcabouço axiológico que permeia a comunidade. Não se trata de a norma submeter-se a esta realidade, aviltando-se à condição de mero reflexo, pois a pretensão de eficácia é um apanágio autônomo da norma constitucional pelo qual esta procura imprimir ordem e transformação à realidade política e social" [62].

Conclui-se, nesse diapasão, que a Constituição não encerra mera programação política, voltada para o futuro, senão que se revela com acentuada carga jurídico-normativa, atuante sobre o presente, dotada de força vinculativa/imperativa, inclusive com possibilidade de aplicação direta de suas normas por parte dos julgadores, sem qualquer interferência infraconstitucional.

À supremacia meramente formal de outrora se agrega uma valia material e axiológica, potencializada pela abertura do sistema jurídico e pela normatividade de seus princípios [63]. Trata-se, como se nota, do reconhecimento de uma natural e indiscutível vocação normativa que subjaz no seio da própria Constituição, que, através de seus intérpretes, trava constante diálogo com a realidade histórica que a circunda, numa profícua e intensa dialeticidade entre "ser" e "dever ser", Sociedade e Direito, onde a malha constitucional, enfim, transmuda-se de uma simples carta política para uma potente norma jurídica [64].

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Se antes a Carta Constitucional refletia tão-somente um repositório de promessas vagas (Executivo) e de exortações para a atuação normativa infraconstitucional (Legislativo), agora, com a atribuição de força normativa à Constituição, recai sobre o Judiciário, em especial, e à sociedade, como um todo, a responsabilidade pela busca de efetividade quanto à elevada pauta axiológica incrustada naquela norma ápice. As portas estão abertas para o próximo tópico.

4.2.3 Jurisdição Constitucional

Em sua concepção liberal clássica, a Constituição se destinava primordialmente a limitar o poder político. Logo, as relações jurídicas travadas entre os particulares não eram atingidas pelas normas constitucionais, cuja alça de mira, repetimos, voltava-se precipuamente ao flanco estatal, impedido de invadir a intocável esfera de liberdade reconhecida ao poder privado. Apenas as normas infraconstitucionais, pois, detinham o condão de reger a vida privada das pessoas, o que se praticava geralmente através da codificação civil. Diante desse quadro, as normas de nível constitucional se apresentavam totalmente desprovidas da possibilidade de aplicação direta, por parte dos juízes, nas controvérsias entre os cidadãos comuns.

Todavia, o reconhecimento da supremacia (vinculação formal) e da força normativa (vinculação material) da Constituição, que também passou a albergar direitos fundamentais e valores humanísticos, trouxe uma excepcional valorização do Poder Judiciário, que passou a dispor de rico instrumental concretizador dos anseios sociais. De posse das novas técnicas hermenêuticas formuladas e da sutil ductilidade dos princípios, abriu-se para o juiz a plena possibilidade de, diretamente e sem qualquer ingerência do legislador ordinário, implementar os ditames e valores constitucionais, garantindo, assim, a própria efetividade da Constituição.

O autoritarismo nazi-fascista e seu desatino genocida deixaram um gosto amargo na boca... Não sem razão, iniciou-se um processo de redemocratização a partir da segunda metade do século XX, notadamente no continente europeu, propiciando um novel perfil ao constitucionalismo, agora mais sensível à dignidade humana e ao bem comum [65]. Nessa época, ganha destaque a Lei Fundamental de Bonn (Constituição alemã), de 1949, bem como a instalação do respectivo Tribunal Constitucional Federal, em 1951, seguindo-se, a partir daí, uma fecunda produção científica do direito constitucional no âmbito dos países de tradição romano-germânica [66].

Ademais, a idéia de que se deve reler todo o direito infraconstitucional à luz da Constituição [67], "seja em obediência às escolhas político-jurídicas do constituinte, seja em favor da proteção da dignidade, princípio capaz de conformar um novo conceito de ordem pública, fundado na solidariedade social e na plena realização da pessoa humana" [68], é medida que só recrudesce essa especial valorização do papel judicante no contexto do constitucionalismo hodierno [69].

Em meio a essa órbita intelectiva, o neoconstitucionalismo - segundo SANCHÍS - traz uma idéia de "Constituição transformadora que pretende condicionar de modo considerável as decisões da maioria, mas cujo protagonismo fundamental não compete ao legislador, mas aos juízes" [70]. De fato, o portentoso paradigma constitucional que se avultava passou a reclamar, para sua própria viabilização concreta, a presença de fortes mecanismos imbuídos da missão de assegurar a efetivação de seu texto. O foco, pois, move-se para o Judiciário. Expande-se, enfim, a chamada jurisdição constitucional [71], que, na observação de VITAL MOREIRA, parece ter se tornado um genuíno requisito de legitimação e de credibilidade política dos atuais regimes constitucionais democráticos [72]. Aplica-se à ordem jurídica um engenhoso sistema de controle de constitucionalidade, exigindo que toda lei ou ato normativo seja confrontado formal e materialmente com as vinculantes diretrizes da Carta Maior [73].

A ampliação da jurisdição constitucional representou, assim, no fundo, uma importante garantia de proteção aos direitos fundamentais insertos nas modernas constituições, que, outrora, mercê de um modelo jurisdicional subserviente e acrítico, vivenciou a amarga experiência de avalizar o holocausto, uma ofensa à humanidade que fora praticada sem qualquer ruptura formal com o constitucionalismo de então [74].

4.2.4 Rigidez Constitucional

As Constituições não podem ser imutáveis, havendo que lhe pertencer a sutil capacidade de se adaptar à evolução histórica e às novas exigências da sociedade [75]. Por outro lado, as Constituições não podem ser volúveis, de modo a facilmente se conduzir ao sabor das circunstâncias. O equilíbrio entre essas demandas do constitucionalismo moderno - estabilidade e adaptabilidade - tem sido buscado desde as primeiras constituições escritas [76].

Segundo SILVA, em já clássica lição, "a rigidez constitucional decorre da maior dificuldade para sua modificação do que para a alteração das demais normas jurídicas da ordenação estatal" [77]. Dita rigidez constitucional é consectário direto da percepção de que a Constituição é uma lei extremamente superior, na medida em que expressão da vontade popular e recôndito natural dos mais caros valores da sociedade. Esse rigor, portanto, é salutar, servindo mesmo como uma espécie de escudo jurídico, uma genuína redoma de proteção destinada a salvaguardar um núcleo material constitucional mínimo, que há de permanecer, para o bem de todos, sempre, faça chuva ou faça sol, intocável, incólume, diante de possíveis investidas de um inescrupuloso legislador ordinário, de políticas públicas oportunistas, quiçá até de perigosas maiorias de momento.

Nossa Constituição Federal, em seu artigo 60, § 4º, aduz que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: i) a forma federativa de Estado; ii) o voto direto, secreto, universal e periódico; iii) a separação dos Poderes; iv) os direitos e garantias individuais. São as chamadas cláusulas pétreas do direito constitucional brasileiro. Como ressalta TAVARES, a imutabilidade dessas cláusulas atinge a qualquer norma que veicule alguma dessas matérias e não impede seu alargamento ou reforço, sobretudo quanto aos tais "direitos e garantias individuais" [78].

A respeito do tema e enfocando particularmente os influxos do neoconstitucionalismo nessa seara, afirma MOREIRA:

"Se o neoconstitucionalismo busca a transformação, ele também se assenta na vedação ao retrocesso, e, com isso, a rigidez constitucional ganha novas considerações resultantes desse processo. (...) Os limites de reforma não são somente aqueles previstos, mas são também os implícitos que são guiados pela vedação ao retrocesso, a qual impede que a situação garantida pela Constituição volte a um estágio antecedente e indesejado. A própria rigidez constitucional é alvo dessa operação entre a força de transformação e a vedação ao retrocesso - resultante do marco histórico do neoconstitucionalismo -, pois o próprio processo de rigidez constitucional pode ser alterado ou renovado, desde que apresente um avanço, isto é, desde que se torne mais dificultoso e proteja mais a Constituição" [79].

Desse modo, a rigidez constitucional também se reúne, juntamente com aqueles outros aspectos, para formar um quadro geral de elementos reputado como imprescindível para o exsurgir do hoje denominado neoconstitucionalismo.

4.3 Neoconstitucionalismo: Delineamento Dogmático

Percebe-se que os fenômenos até então descritos conduziram a Constituição ao centro do ordenamento jurídico, ao trono do sistema normativo, locais que até então, nos países de formação romano-germânica, sempre foram ocupados pelo Código Civil. Seu cetro são os princípios, cuja densidade axiológica lhe admite dialogar com a sociedade e cuja plasticidade técnica lhe permite se imiscuir nos mais profundos meandros da outrora cerrada floresta infraconstitucional, a fim de que seja talhada ao seu perfil. Nesse cenário, as cláusulas abertas e os conceitos indeterminados - hoje corriqueiramente encontrados nos mais variados enunciados normativos - fazem parte dessa arguta estratégia. No caso, a imprecisão semântica, ao invés de problema, é solução, porquanto viabilizadora daquele tão extraordinário colóquio que sói acontecer entre Direito e Sociedade.

Cumpre rememorar, ademais, que uma das grandes valias do neoconstitucionalismo é justamente a de possibilitar melhores condições de concretude real aos direitos fundamentais. De fato, como aduz STRECK:

"O novo constitucionalismo, nascido da revolução copernicana do direito público, traz para dentro do direito temáticas que antes se colocavam à margem da discussão pública: a política, representada pelos conflitos sociais, os direitos fundamentais sociais historicamente sonegados e as possibilidades transformadoras da sociedade a serem feitas no e a partir do direito" [80].

Nesse desiderato, as normas constitucionais ganham novo vigor e máxima amplitude, propagando os efeitos desse importante vetor ético-jurídico - a proteção da dignidade humana - não apenas sobre todo o ordenamento normativo e todos os atos estatais, senão que também sobre toda a enorme gama de relações privadas que se trava no interior da sociedade. Assim visto, o neoconstitucionalismo encarnaria, também, uma contundente contraposição ao positivismo jurídico, assumindo para si toda a marcante carga axiológica que penetrara no tecido constitucional por meio da valorização dos princípios, especialmente quando voltados à concreção dos direitos fundamentais [81].

Sua rica configuração teórica, pois, revela-se extremamente útil para uma Constituição tida por dirigente, assim entendida aquela vocacionada à implementação da eficácia irradiante dos valores constitucionais, de cunho humanístico e de cariz solidarístico, em relação à prática estatal, em todos os seus níveis, e à prática particular, em todas as suas nuanças, corrigindo desigualdades sociais e contribuindo substancialmente para a melhoria das condições de vida de todos os membros da sociedade. Com isso, reconstrói-se a dogmática da Constituição por meio de uma teoria material [82], que incorpora uma dimensão materialmente legitimadora ao estabelecer um fundamento constitucional para a política [83]. Ou, como afirma STRECK, "o novo - esse novo - consiste no resgate das promessas da modernidade, a partir de uma perspectiva dirigente-compromissária. A Constituição, assim, constitui-a-ação do Estado" [84]. Como ressalta OLSEN:

"... uma Teoria da Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia, como o Brasil, busca trabalhar com os elementos constitucionais da especificidade brasileira, a fim de tornar reais os direitos fundamentais - sobretudo os direitos sociais. Com isso, busca contribuir para a efetivação dos objetivos constitucionais, bem como para a criação de uma sociedade mais justa e igualitária. Os adeptos desta teoria se afastam das alegações de que o texto constitucional de 1988 gera ingovernabilidade, para buscar extrair das normas constitucionais todo o seu potencial de eficácia" [85].

Diante dessa perspectiva, forçoso é reconhecer que o neoconstitucionalismo representa instrumental jurídico diferenciado, imprescindível mesmo para o alcance dos objetivos de um legítimo Estado Constitucional de Direito (ou Estado Democrático de Direito). Em suma, há uma estreita ligação entre a proposta neoconstitucionalista e o dirigismo constitucional, de cuja junção deriva o anseio de se firmar uma teorização constitucional que invada a prática, que promova um substrato jurídico comprometido com a mudança social e que oferte ao intérprete do direito um programa de ação para a efetiva alteração da sociedade [86].

Ou seja: ficou mais que manifesto que o neoconstitucionalismo, para vir à luz, demandou uma requintada ambientação teórica que lhe sustentasse a vida (pós-positivismo). Dotado de um poderoso referencial de legitimação (a dignidade humana), o neoconstitucionalismo se propõe a, sabiamente, manusear a segurança jurídica das regras e a densidade axiológica dos princípios, tendo como locus privilegiado de irradiação a Constituição Federal e seus vetores materiais de justiça social e igualdade material. Conferindo uma nova dimensão ao conceito de legalidade, dotando-o agora de um necessário matiz substantivo - na medida em que preocupado em realizar os caros valores humanísticos acolhidos na Constituição Federal [87] -, sua meta é simplesmente alterar a realidade através de uma atuação consciente de todos, enquanto impregnados de um sentimento constitucional e fazendo recair especialmente sobre o Poder Judiciário o privilégio e a responsabilidade de centrar seus esforços no rigoroso controle da conformação da sociedade àqueles princípios constitucionais mínimos, destinados a garantir uma harmoniosa convivência social [88].

Nessa esteira, é possível indicar, com MOREIRA, alguns pontos que, resumidamente, conformam o que chamamos de neoconstitucionalismo, a saber: i) presença invasora da Constituição; ii) maior atuação judicial; iii) revisão completa da teoria da interpretação, da teoria da norma e da teoria das fontes; iv) ênfase nos princípios e nos direitos fundamentais; v) maior presença da ponderação nas decisões judiciais; vi) reflexão do direito não apenas no âmbito de aplicação judicial, mas também afetando opções legislativas e políticas públicas [89].

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Sobre o autor
Ney Maranhão

Professor Adjunto do Curso de Direito da Universidade Federal do Pará (Graduação e Pós-graduação). Doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo - Largo São Francisco, com estágio de Doutorado-Sanduíche junto à Universidade de Massachusetts (Boston/EUA). Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade de Roma/La Sapienza (Itália). Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará. Ex-bolsista CAPES. Professor convidado do IPOG, do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) e da Universidade da Amazônia (UNAMA) (Pós-graduação). Professor convidado das Escolas Judiciais dos Tribunais Regionais do Trabalho da 2ª (SP), 4ª (RS), 7ª (CE), 8ª (PA/AP), 10ª (DF/TO), 11ª (AM/RR), 12ª (SC), 14ª (RO/AC), 15ª (Campinas/SP), 18ª (GO), 19ª (AL), 21ª (RN), 22ª (PI), 23ª (MT) e 24 ª (MS) Regiões. Membro do Instituto Goiano de Direito do Trabalho (IGT) e do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (IPEATRA). Membro fundador do Conselho de Jovens Juristas/Instituto Silvio Meira (Titular da Cadeira de nº 11). Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito do Trabalho – RDT (São Paulo, Editora Revista dos Tribunais). Ex-Membro da Comissão Nacional de Efetividade da Execução Trabalhista (TST/CSJT). Membro do Comitê Gestor Nacional do Programa Trabalho Seguro (TST/CSJT). Juiz Titular da 2ª Vara do Trabalho de Macapá/AP (TRT da 8ª Região/PA-AP). Autor de diversos artigos em periódicos especializados. Autor, coautor e coordenador de diversas obras jurídicas. Subscritor de capítulos de livros publicados no Brasil, Espanha e Itália. Palestrante em eventos jurídicos. Tem experiência nas seguintes áreas: Teoria Geral do Direito do Trabalho, Direito Individual do Trabalho, Direito Coletivo do Trabalho, Direito Processual do Trabalho, Direito Ambiental do Trabalho e Direito Internacional do Trabalho. Facebook: Ney Maranhão / Ney Maranhão II. Email: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARANHÃO, Ney. O ousado projeto neoconstitucionalista e sua plena adequação à realidade brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2998, 16 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20002. Acesso em: 24 abr. 2024.

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