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A decisão do STF, o princípio constitucional da igualdade e a vedação de discriminação.

O afeto como paradigma norteador da legitimidade das decisões judiciais. A família contemporânea e sua nova formatação

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16/09/2011 às 15:57
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5. O SEXO E A HOMOAFETIVIDADE

Nas culturas ocidentais contemporâneas, a homossexualidade tem sido, até então, a marca de um estigma, pois se relegam à marginalidade aqueles que não têm sua orientação sexual de acordo com padrões de moralidade dominantes. Isso não diz respeito apenas à homossexualidade e à heterossexualidade, mas a qualquer comportamento sexual definido como anormal, como se isso pudesse ser controlado e colocado dentro de um padrão normal (PEREIRA, Rodrigo, 1997, Direito de família: uma abordagem psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 43) ou como se pudesse afirmar que existem padrões de normalidade legítimos.

Ao se manter tais posicionamentos, escancaradamente preconceituosos, estar-se-á relegando a Constituição Federal a uma norma meramente programática, sem eficácia, aplicabilidade e, em última instância, sem valor, pois, desse modo, é desvinculada e desconectada da realidade e de valores sociais latentes e presentes. Como assinala Hermann Heller, "se se prescinde da normalidade social positivamente valorada, a Constituição, como mera formação normativa de sentido, diz sempre muito pouco" (Teoria del Estado. 4ª ed. Tradução e prólogo de Gerhart Niemeyer. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1961, p. 276). O sistema jurídico pode ser um sistema de exclusão, já que a atribuição de determinada posição jurídica depende do ingresso da pessoa no universo de titularidades que o sistema define. Opera-se a exclusão quando se negam às pessoas ou situações as portas de entrada da moldura das titularidades de direitos e deveres. Diz Luiz Edson Fachin:

Tal negativa, emergente de força preconceituosa dos valores culturais dominantes em cada época, alicerça-se em juízo de valor depreciativo, historicamente atrasado e equivocado, mas este medievo jurídico deve sucumbir à visão mais abrangente da realidade, examinando e debatendo os diversos aspectos que emanam das parcerias de convívio e afeto. (Aspectos jurídicos da união de pessoas do mesmo sexo. In: BARRETO, Vicente (Org.). A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 114)

Com fundamento nesse afeto, alçado e reconhecido, agora, como elemento jurídico importante no relacionamento entre pessoas, a Egrégia Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por meio do Provimento 6/4 de 17 de fevereiro de 2004, acrescentou um parágrafo ao artigo 215 da Consolidação Normativa Notarial Registral, para prever que:

As pessoas plenamente capazes, independente da identidade ou posição de sexo, que vivam uma relação de fato duradoura, em comunhão afetiva, com ou sem compromisso patrimonial, poderão registrar documentos que digam respeito a tal relação. As pessoas que pretendam constituir uma união afetiva na forma anteriormente referida também poderão registrar os documentos que a isso digam respeito. (Sem destaque no original)

Sobre essa inovação, Maria Berenice Dias (

Afeto registrado. Disponível em: <http://www.espacovital.com.br/asmaisnovas24052004x.htm>. Acesso em: 24 maio 2004) afirma que as serventias vinham se recusando a proceder ao registro de documentos declaratórios dessas relações, sob alegação da ausência de lei que as previsse. Considerando tal procedimento como discriminatório, a autora afirma que a"negativa, às claras, encobria postura preconceituosa e discriminatória, já que não há ilicitude ou ilegalidade nas uniões que agora são nominadas de homoafetivas". E ela conclui:

A omissão do Estado havia levado as organizações de defesa da livre orientação sexual a proceder ao registro das uniões estáveis homossexuais em livro próprio da entidade. O fato de tais registros carecerem de reconhecimento jurídico não impediu que uma infinidade de casais buscasse consolidar suas uniões.

Resgata assim o Estado do Rio Grande do Sul sua função registral e certificatória dos atos e contratos firmados pelos cidadãos, garantindo o direito fundamental à obtenção de certidões, o qual tem assento constitucional (CRFB, art. 5º, inc. XXXIV, b).

Não bastasse isso, o fato de um provimento do Poder Judiciário chamar de união estável a relação afetiva entre pessoas do mesmo sexo é um importante marco na luta pela visibilidade do afeto que – como qualquer outro – não deve ter vergonha de dizer seu nome.

Porém, esse é um ato isolado, que se justifica pelo pioneirismo já tradicional que vem dos pampas e se alastra, com algum custo, para as demais regiões do país, impulsionado pela força e perseverança do "minuano". Nesse ponto, já não se está afirmando apenas a exclusão de pessoas em razão de terem procedimentos, comportamentos e opções sexuais que apenas a elas dizem respeito, mas negando vigência à própria Constituição Federal, transformando-a em papelucho despido de significado, sentido e força motriz de construção e progresso social.

No entanto, o Desembargador Rui Portanova, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, argutamente observou que "o sistema jurídico como um todo permite a adoção por homossexuais" (Família possível: desembargador defende adoção de crianças por homossexuais. Disponível em: <

http://conjur.uol.com.br/textos/27435/>. Acesso em: 22 maio 2004). Segundo ele, não há norma que proíba homossexuais de adotarem uma criança, o que é juridicamente possível. Para pessoas solteiras, não há problema algum, apenas quanto à idade (de acordo com o artigo 1,618 do novo Código Civil, somente os maiores de 18 anos podem adotar uma criança). Também em relação a casais de homossexuais não existe norma alguma, de cunho permissivo ou proibitivo, a respeito. Não há, portanto, fundamento para a vedação que não seja a forma do preconceito.

Segundo Portanova, quando há uma lacuna na lei, o juiz deve decidir usando analogia. Alguns magistrados consideram que o mais próximo de uma união de homossexuais seria a sociedade de fato. Mas, para o desembargador, como é uma relação que envolve amor, o que seria mais semelhante na lei é a união estável.

Conforme observa o desembargador, o conceito de união estável viabiliza juridicamente esse tipo de adoção. O artigo 1.622 do novo Código Civil dispõe que "ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher ou se viverem em união estável". O artigo ainda lembra que o direito não é composto somente pelas leis, "o direito é fato, valor e norma, é a conjugação dessas três dimensões". Para Portanova, no caso da adoção, o que deve sempre prevalecer é o princípio do melhor interesse da criança.

O assunto ainda carece de análise e estudo mais aprofundados, principalmente sob o enfoque da sociologia, da psicologia e do direito. Mas há de se louvar a coragem da afirmação de Portanova, ainda que em sede acadêmica, de se buscar a aproximação da Justiça com a realidade dos fatos da sociedade e do respeito ao princípio fundamental da não discriminação.

Busca-se, o que parece válido e legítimo, a sociologização da norma constitucional da qual, ensina José Afonso da Silva (Aplicabilidade das normas constitucionais. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 23), Lassale é seu exímio representante. Quando este questiona sobre a verdadeira essência do conceito de Constituição, conclui que o conceito jurídico, normativo, apenas diz como se formam as constituições, o que fazem. Entretanto, não diz o que uma Constituição é, não dá critérios para reconhecê-la exterior e juridicamente e não diz qual é o conceito de toda Constituição, a essência constitucional.

Para ele [Lassale], a constituição de um país é, em essência, a soma dos fatores reais do poder que regem nesse país e esses fatores reais do poder constituem a força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade em questão, fazendo com que não possam ser, em substância, mais que tal e como são. (SILVA, José Afonso, 1998, p. 23)

Os valores da realidade do poder que "emana do povo" [07] convertem-se em fatores jurídicos quando são transportados para uma folha de papel. A partir desse momento, deixam a situação de simples fatores ou valores reais de poder e assumem feição de direito, de instituições jurídicas.Para Lassale,"relacionam-se as duas constituições de um país: a real e a efetiva, formada pela soma dos fatores reais e efetivos que regem na sociedade, e a escrita, a que, para distinguir daquela, ele denomina folha de papel" (

LASSALE, Ferdinand. Que es una constitución?. Tradução W. Roces. Buenos Aires: Siglo Veinte, 1946, p. 62). "Esta – a constituição escrita – só é boa e durável quando corresponde à constituição real" (SILVA, 1998, p. 32), àquela que tem suas raízes nos fatores de poder que regem no país.

Em países nos quais a Constituição escrita não corresponde à real, instala-se inevitavelmente um conflito que não há maneira de se manter simulado. Cedo ou tarde, a Constituição escrita, a folha de papel, tem necessariamente que sucumbir ante o empuxo da Constituição real, das verdadeiras forças vigentes no país. Esse conflito irredutível importará sempre o desrespeito e o descumprimento da Constituição escrita e somente se resolverá se esta for modificada para ajustar-se à Constituição real ou, então, mediante a transformação dos fatores reais do poder.

Rechaçando essa lógica vertida no modismo apressado e aprofundando um debate que não seja circunstancial e passageiro, reúnem-se militantes da realidade, todos aqueles tomados por uma densa inquietude, os mesmos que, todos os dias, entre a angústia e a esperança, celebram um certo fim e, ao mesmo tempo, uma espécie de eterno recomeço

. Esses militantes proferem palavras que não conseguem encontrar com nitidez o ponto onde as trevas se separam da luz e repetem a lição secular para ficar apenas na tentativa de aclarar, quanto muito, pequenas obscuridades (COSTA, Jurandir Freire. Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo. In. NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992).

Os limites podem ser morais, éticos, jurídicos e, evidentemente, religiosos.Moral, ética e religião, não estando dissociadas, dizem respeito a um conjunto de concepções atribuídas a um grupo social ou a um de seus segmentos. No tocante à inseminação artificial, por exemplo, nem todas as religiões têm a mesma opinião sobre o assunto.

A problemática do sexo dos indivíduos é um questionamento latente e discutido no Brasil há algum tempo até com sérias divergências jurisprudenciais. Durante longo tempo, tratado sob os aspectos anatômicos, parecia não apresentar problemas. Atualmente, a medicina considera outros aspectos, devendo-se ao sexo anatômico acrescer o sexo genético ou cromossômico, o sexo hormonal e o sexo psicológico ou psicossocial, que é a consciência do sujeito de pertencer a um sexo que é seu e determinar seu comportamento social. [08]

O transexualismo se caracteriza por uma contradição entre o sexo físico aparente, determinado geneticamente, e o sexo psicológico. Não se confunde, portanto, com o intersexualismo – constituído por anomalias físicas, hormonais ou genéticas que conduzem a um sexo falso – ou com o homossexualismo. Nesse sentido, esclarece Antônio Chaves que

a definição do sexo de um indivíduo obedece a critérios estabelecidos, que inclui o sexo genético que irá informar a constituição cromossômica, mas que além disso há influências psicológicas, socioculturais e ambientais que da mesma forma são responsáveis não só pelo estabelecimento do seu sexo de criação, como pelo seu comportamento e identificação sexuais, concluindo que a formação e a determinação do sexo de um indivíduo normal é fruto de inúmeros fatores e determinantes que constituem um universo inexplorado. (Direito à vida e ao próprio corpo. São Paulo: Saraiva, 1985, p. 128)

Tem-se, por vezes, a tendência de associar a ética ao comportamento sexual. A ética aplicar-se-ia essencialmente ao comportamento sexual, deixando à Justiça o cuidado de gerir os outros tantos aspectos do comportamento humano. Simplificando, se a ética só se aplica à sexualidade, e se ela é a única ética existente, haveria então uma ética sexual sui generis. Freudianos e não-freudianos sugerem que a personalidade sexual é o centro da personalidade moral e que a maneira como percebemos nosso parceiro sexual e como nos comportarmos para com ele reflete e influencia nossa percepção e nosso comportamento geral em relação ao outro.

Tomemos, como exemplo, o coito heterossexual acompanhado de meios contraceptivos, tais como o diafragma ou o preservativo. Pode-se alegar, com argumentos kantianos, o que fez, em 1960, Karol Wojtyla, Papa João Paulo II, em Amor e responsabilidade (

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WOJTYLA, Karol. Amor e responsabilidade. Lisboa: Rei dos Livros, 1999, p. 45), que o ato sexual com contracepção é um mal moral, pois, como busca unicamente o prazer (e, assim, reduz o parceiro a um meio), ele é degradante e leva à exploração. Portanto, o ato sexual com contracepção, que, por essas razões, é um mal, não o é em virtude de seu caráter sexual. Com efeito, se Tomás de Aquino tem razão ao afirmar que o fim natural da emissão de esperma é a procriação, depreende-se de tal afirmação que o ato sexual com contracepção é imoral porque contraria o propósito da natureza.

O mal provém do fato de tratar-se de uma atividade sexual oposta ao fim natural da sexualidade, e não da atividade sexual propriamente dita. Da mesma forma, o estupro é geralmente condenado por comportar aspectos condenáveis, tais como ameaças e constrangimentos. Numerosos exemplos similares permitem chegar à seguinte conclusão: Não é nunca o fato de um ato ser sexual que o torna um mal ou que acentua seu caráter moral, se o ato é imoral por outros aspectos.

(SOBLE, Alan. Sexualidade. In: CANTO-SPERBER, Monique (Org.). Dicionário de ética e filosofia moral. Tradução Maria Vitória Kesler. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2003, p. 577).

Mas, ainda que de forma, por assim dizer, recatada, o próprio Papa João Paulo II exorta, em sua encíclica Esplendor da Verdade, algumas tendências da teologia moral hodierna. Sob a influência das correntes subjetivistas e individualistas agora lembradas, essas tendências interpretam, de um modo novo, a relação da liberdade com a lei moral, com a natureza humana e com a consciência e propõem critérios inovadores de avaliação moral dos atos. São tendências que, em sua verdade, coincidem no fato deatenuar ou mesmo negar a dependência da liberdade da verdade (GARCEZ FILHO, Martinho. Direito de Família. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 1932. (Vol. 1. p. 59).

Assim, a situação ainda está longe de ser suficientemente esclarecida. Faz-se necessário o estudo mais aprofundado, o debate menos apaixonado e mais aberto a horizontes ainda não percorridos, o descortinar de teses, teorias, reflexões ainda muito incipientes, sem descurar da ética que há de prevalecer. Por outro lado, é preciso ter cuidado, a fim de que o argumento ético não passe a ser o instrumento de moralização anticientífico.

Com esse objetivo, avança-se à verificação real do panorama legal-constitucional da família brasileira, sua função e importância a partir de uma abordagem construtivo-desconstrutivista, alçando a pessoa como valor-fonte fundamental do Direito e de todo o sistema jurídico norteado à concretização e à tutela de seus direitos fundamentais consagrados constitucionalmente.

Nessa linha de raciocínio, com acentuada percepção, Heloisa Helena Barboza questionou o novo papel da família no mundo contemporâneo:

Qual a função atual da família? Se é certo que ela é a base da sociedade, qual o papel que a ela cumpre desempenhar, já que não tem mais funções precipuamente religiosa, econômica ou política como outrora? Qual a base que se deve dar à comunidade familiar para que alcance a tão almejada estabilidade, tornando-a duradoura? Devemos reunir todas essas funções ou simplesmente considerar o seu verdadeiro e talvez único fundamento: a comunhão de afetos?

(BARBOZA, Heloísa Helena. Novas tendências do direito de família. Revista da Faculdade de Direito da Uerj, Rio de Janeiro, n. 2, 1994, p. 232)

A família só continuará existindo se fundamentada no princípio da afetividade e do amor, posto que os valores que anteriormente a engessavam, aprisionavam e algemavam só produziram o nefasto efeito de causar desagregação, lides, violência e desassossego

. Se não houvesse uma ruptura definitiva com elos ultrapassados e de nenhuma significação às pessoas, seu fim estaria muito próximo.

Nesse sentido, as estatísticas demonstram o decréscimo esmagador do número de casamentos, ao passo que se avolumam as separações e os divórcios. É inerente à natureza humana a busca da liberdade, notadamente quando algo a está sufocando e aprisionando. Às vezes, o custo dessa liberdade pode ser a própria vida, como indicam os muitos suicídios e homicídios ditos "passionais" aos quais se assiste no decorrer da história policial e judiciária.

As relações familiares, portanto, passaram a ser fundamentadas em razão da dignidade de cada partícipe. A efetividade das normas constitucionais implica a defesa das instituições sociais que cumprem o seu papel maior. A dignidade da pessoa humana, colocada no ápice do ordenamento jurídico, encontra na família o solo apropriado para o enraizamento e desenvolvimento, daí a ordem constitucional dirigida ao Estado no sentido de dar especial e efetiva proteção à família, independentemente de sua espécie. Propõe-se, por intermédio da repersonalização das entidades familiares, preservar e desenvolver o que é mais relevante entre os familiares: o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe, com base em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e humanistas. Como observa Perlingieri:

A família é valor constitucionalmente garantido nos limites de sua conformação e de não contraditoriedade aos valores que caracterizam as relações civis, especialmente a dignidade humana: ainda que diversas possam ser as suas modalidades de organização, ela é finalizada à educação e à promoção daqueles que a ela pertencem. (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil e Constitucional. Tradução Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 243)

Respondendo àqueles que temem mais uma vez sua destruição ou dissolução, objeta-se que a família contemporânea, horizontal e em redes, vem se comportando bem e garantindo corretamente a reprodução das gerações. Despojado dos ornamentos de sua antiga sacralidade, o casamento, em constante declínio, tornou-se um modo de conjugalidade afetiva pelo qual os cônjuges se protegem dos eventuais atos perniciosos de suas respectivas famílias ou das desordens do mundo exterior. É tardio, reflexivo, festivo ou útil e, freqüentemente, precedido de um período de união livre, de concubinato ou de experiências múltiplas de vida comum ou solitária.

Aos utopistas que acreditam que a procriação será um dia a tal ponto diferenciada do ato carnal que os filhos serão fecundados fora do corpo da mãe biológica, em um útero de empréstimo e com a ajuda de um sêmen que não será do pai, argumenta-se que, para além de todas as distinções que podem ser feitas entre o gênero e o sexo, o materno e o feminino, a sexualidade psíquica e o corpo biológico, o desejo de se ter um filho sempre terá algo a ver com a diferença dos sexos. Demonstram isso as declarações dos homossexuais que sentem a necessidade de dar aos filhos por eles criados uma representação real da diferença sexual, e não apenas duas mães (uma das quais desempenharia o papel de pai) ou dois pais (um dos quais se disfarçaria de mãe).

Finalmente, para os pessimistas que pensam que a civilização corre risco de ser engolida por clones, bárbaros, bissexuais ou delinqüentes da periferia, concebidos por pais desvairados e mães errantes, observa-se que essas desordens não são novas – mesmo que se manifestem de forma inédita – e, sobretudo, que não impedem que a família seja atualmente reivindicada como o único valor seguro ao qual ninguém quer renunciar. Ela é amada, sonhada e desejada por homens, mulheres e crianças de todas as idades, de todas as orientações sexuais e de todas as condições.

É claro, porém, que o próprio princípio da autoridade e do ser "separador", sobre o qual ela sempre se baseou, encontra-se atualmente em crise no seio da sociedade ocidental. Por um lado, esse princípio se opõe, pela afirmação majestosa de sua soberania decaída, à realidade de um mundo unificado que elimina as fronteiras e condena o ser humano à horizontalidade de uma economia de mercado cada vez mais devastadora, mas, por outro, incita incessantemente a restauração, na sociedade, da figura perdida de Deus pai, sob a forma de uma tirania. Confrontada com esse duplo movimento, a família aparece como a única instância capaz, para o sujeito, de assumir esse conflito e favorecer o surgimento de uma nova ordem simbólica. Sobre a família, comenta Elizabeth Roudinesco:

Eis por que ela suscita tal desejo atualmente, diante do grande cemitério de referências patriárquicas desafetadas que são o exército, a Igreja, a nação, a pátria, o partido. Do fundo de seu desespero, ela parece em condições de se tornar um lugar de resistência à tribalização orgânica da sociedade globalizada. E, provavelmente, alcançará isso – sob a condição, todavia, de que saiba manter, como princípio fundador, o equilíbrio entre o um e o múltiplo de que todo sujeito precisa para construir sua identidade. A família do futuro deve ser mais uma vez reinventada.( ROUDINESCO, Elizabeth. A família em desordem. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 199)

Na contramão do tempo, da história e das previsões dos menos afeitos à constante alteração do comportamento social, vê-se que as pessoas buscam a aproximação da normalização de suas relações sociais, familiares e sexuais, aconchegando-se nos ninhos familiares, não necessariamente sob o mesmo teto (FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil – Elementos críticos do Direito de Família. Coord. Ricardo Pereira Lira, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 60),nem, por isso, deixando de se constituir em verdadeiro núcleo familiar.

Esse núcleo não tem mais, como paradigma ou motivo fundamental, a hierarquia paterna, o poder estatal, a submissão à Igreja ou qualquer outro referencial constatado através dos tempos. Apenas, tão-somente, tem o amor, a afetividade e a vontade de as pessoas permanecerem juntas, criarem seus filhos, sejam eles oriundos de vínculos anteriores (matrimoniais ou não), de adoção ou, simplesmente, do chamamento de pessoas estranhas ao corpo familiar sangüíneo, para a convivência pacífica e voltada à realização plena de cada membro daquele grupo, firmando-se como pessoas únicas, dotadas dos direitos subjetivos da personalidade, individualizadas e cada qual com suas características próprias. Nada mais há – e, talvez, não haverá – que possa manter pessoas unidas, coesas, juntas, que não seja o amor e o afeto.

Essa afirmação ecoa das palavras proferidas, em 1991, pelo então Desembargador e posteriormente Ministro do STJ e do STF Carlos Alberto Menezes Direito: "Tenho para mim que o que se deve buscar é o abrigo da proteção jurídica da vida em comum. Não se pretende robustecer a união ilegítima, mas sim criar condições jurídicas para proteger a constituição da família, independente de sua origem no ato civil do casamento" (DIREITO, Carlos Alberto Menezes. Da união estável como entidade familiar. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 667, maio 1991, p. 17).

Não há como se negar que o Direito privado – notadamente, o Direito Civil e, mais particularmente, o Direito de Família – é "um sistema em construção", recheado de cláusulas gerais, que deverão se interpretar, aplicar e complementar de conformidade com as alterações e evoluções sociais e humanas, como assevera Judith Hofmeister Martins-Costa (O Direito Privado como um "sistema em construção": as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 15, p. 129-154, 1998).

Entretanto, a sua construção só se oportunizará se houver, antes, abertura para a "desconstrução", entendida no sentido que lhe atribuiu Jacques Derrida: "Desfazer sem nunca destruir um sistema de pensamento hegemônico ou dominante, resistir à tirania do Um, resultante da força natural de mudança do ser humano" (DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã.... Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 9). Além disso, não é possível ignorar a notável dificuldade de se perseguir tal objetivo, como já afirmava Glória Steinem: "O primeiro problema para todos, homens e mulheres, não é aprender, mas desaprender" (STEINEM, Glória. A revolução interior. Tradução Myriam Campelo. Rio de Janeiro: Objetiva, 1992, p. 78). Afinal:

Dotadas que são de grande abertura semântica, não pretendem as cláusulas gerais dar, previamente, resposta a todos os problemas da realidade, uma vez que essas respostas são progressivamente construídas pela jurisprudência. [...] Conquanto tenha a cláusula geral a vantagem de criar aberturas do direito legislado à dinamicidade da vida social, tem, em contrapartida, a desvantagem de provocar – até que consolidada a jurisprudência – certa incerteza acerca da efetiva dimensão dos seus contornos. (MARTINS COSTA, 1998)

Não se ignora, também, que, para estruturar o direito com cláusulas abertas e gerais, faz-se necessário um Poder Judiciário atento às vicissitudes da população e conectado às alterações da malha social e, principalmente às alterações comportamentais que acarretam a modificação da própria noção de certo e errado das pessoas.

Parece que não restam dúvidas de que, em termos de direitos fundamentais, ao menos enfocados sob a ótica de sua respeitabilidade efetiva e concreta, ainda estamos engatinhando. Mas, a despeito disso, afirmou Paulo Mota Pinto, juiz do Tribunal Constitucional de Portugal e docente da Faculdade de Direito de Coimbra:

[...] o reconhecimento a todo o ser humano do valor de pessoa é hoje um verdadeiro postulado axiológico do jurídico, que não deve sofrer contestação relevante, pelos menos ao nível das proclamações. A personalidade do Homem é para o direito um prius, que o Direito encontra (não cria) e que deve ser reconhecido e tutelado pela ordem jurídica – pode mesmo dizer-se que o imperativo de respeito em todos os homens da sua dignidade de pessoa, através da atribuição de personalidade jurídica, resulta da consideração de um conteúdo mínimo de direito natural (no sentido de Hart), ou integra uma idéia de direito constitutivo do universo jurídico. A pessoa humana deve ser o centro das preocupações dos juristas, e o apelo que a estes é dirigido para a sua tutela jurídica emana do mais fundo substracto axiológico que constitui o direito como tal. Importa, pois, tratar dessa tutela. (PINTO, Paulo Mota. Notas sobre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e os direitos de personalidade no direito português. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição concretizada – Construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 61)

A lei fundamental, então, é que positiva os direitos concernentes à justiça, segurança, liberdade, igualdade, propriedade, herança etc. Antes, eles estavam no Código Civil ou, como diz Pietro Perlingieri,

o direito civil constitucional parece estar em busca de um fundamento ético, que não exclua o homem e seus interesses não-patrimoniais, da regulação patrimonial que sempre pretendeu ser – não se projetam a expulsão e a redução quantitativa do conteúdo patrimonial no sistema jurídico e naquele civilístico em especial. O momento econômico, como aspecto da realidade social organizada, não é eliminável. A divergência, não certamente de natureza técnica, concerne à avaliação quantitativa do momento econômico e à disposição de encontrar, na existência da tutela do homem, um aspecto idôneo, não a humilhar a aspiração econômica, mas, pelo menos, a atribuir-lhe uma justificativa institucional de suporte ao livre desenvolvimento da pessoa. (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil e Constitucional. Tradução Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 33)

Não há, por assim dizer, qualquer possibilidade de simplesmente se ignorar, diante da notável evolução do Direito como instrumento de tutela da pessoa humana, o seu valor matricial e fundamental na ordem existencial do mundo, as origens biológicas e afetivas da pessoa, seu reconhecimento interno e externo perante a sociedade, o mundo e as demais pessoas e a necessária convivência com outras pessoas, num microssistema constituído pela família, berço, amparo, reduto seguro, ponto de partida e chegada, porto seguro de todos nós.

O Direito Civil, portanto, há de ser mutável, flexível, poroso, permitindo que seja oxigenado e atualizado pelas mutações sociais resultantes da própria natureza humana de buscar, inovar e descobrir. A estagnação e a renúncia à mudanças conduzem à abdicação ao desenvolvimento, ao progresso e à aprendizagem

.

O que é a aprendizagem, senão o movimento entre aquilo que foi há instantes e aquilo que ainda não é? Aprender é um embate, é um ranger de espadas. Aprender é um risco atraente, é o risco de estarmos novamente – e a cada instante – além de nós mesmos, do que é conhecido, do que já fomos, do que somos. Aprender é contar com o tempo a nosso favor, ter desprendimento suficiente para se afastar dos chamados "portos seguros" em busca do desconhecido. Somente assim se cresce. Afinal, como diz Cora Coralina, "todos estamos matriculados na escola da vida, onde o mestre é o tempo e o que vale na vida não é ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim terás o que colher".

Faz-se vivo o ensinamento de Michel Serres:

Partir exige um dilaceramento que arranca uma parte do corpo à parte que permanece aderente à margem do nascimento, à vizinhança do parentesco, à casa e à idéia dos usuários, à cultura da língua e à rigidez dos hábitos. Quem não se mexe nada aprende. Sim, parte, divide-se em partes. Teus semelhantes talvez te condenem como um irmão desgarrado. Eras único e reverenciado. Tornar-te-ás vários, às vezes incoerente como o universo que, no início, explodiu-se, diz-se, com enorme estrondo. Parte, e tudo então começa. Partir, sair. Deixar-se um dia seduzir. Tornar-se vários, desbravar o exterior, bifurcar em algum lugar. Eis as três primeiras estranhezas, as três variedades de alteridade, os três primeiros modos de ser e expor. Porque não há aprendizagem sem exposição. (SERRES, Michel. Filosofia mestiça. Tradução Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 27)

Pensar, refletir, conhecer, partir, ficar e aprender são questões que se colocam com a crise dos nossos padrões de valor, que não é apenas a da fragilidade dos códigos até então vigentes, mas os riscos de um modo de se conduzir segundo regras prévias e externas que retiram daquele que age a prerrogativa de pensar para decidir o que fazer em cada situação que se apresenta. Busca-se, assim, tornar concreta a afirmação de Heráclito de que "a todos os homens é compartilhado o conhecer-se a si mesmo e pensar sensatamente" (HERÁCLITO. Fragmentos.In: Os pré-socráticos. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1978, p. 62 (B-116). (Coleção Os Pensadores).

E esse pensamento reflexivo há de ser compartilhado, democratizado, para que possa ganhar adeptos, opositores para o necessário tensionamento, para firmar-se, ou não, sendo, portanto importante que seja textualizado e exteriorizado.

E o que é fundamental para Hannah Arendt é que:

Os pensamentos, para acontecer, não precisam ser comunicados; mas não podem ocorrer sem ser falados – silenciosa ou sonoramente, em um diálogo, conforme o caso [...] e a razão – não porque o homem seja um ser pensante, mas porque ele só existe no plural – também quer a comunicação e tende a perder-se caso dela não tenha que privar; pois a razão, como observou Kant, não é de fato "talhada para isolar-se, para comunicar-se". A função desse discurso silencioso [...] é entrar em acordo com o que quer que possa ser dado aos nossos sentidos nas aparências do dia-a-dia; a necessidade da razão é dar conta [...] de qualquer coisa que possa ser ou ter sido. Isso é proporcionado não pela sede do conhecimento [...], mas pela busca do significado. O puro nomear das coisas, a criação das palavras é a maneira humana de apropriação e, por assim dizer, de desalienação do mundo no qual, afinal, cada um de nós nasce, como um recém-chegado, como um estranho. (ARENDT, Hannah, A vida do espírito. Tradução A. Abranches, C. A. R. Almeida e H. Martins. 3ª ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, p. 187)

Assim, neste início de século, com rompimento de barreiras, obstáculos, preconceitos, e no desfraldar de novos ares, novos conhecimentos e experiências, respaldados agora pela notável abertura semântica impulsionada pelo Código Civil e suas cláusulas e normas abertas, busca-se o conceito de família, a verdadeira face da filiação, da paternidade, da familia e dos motivos e fundamentos que conduzem as pessoas a permanecerem umas ao lado das outras, em pequenos núcleos de convivência ou ninhos de afetividade, como dito antes, sem qualquer outro tipo de imposição legal ou moral que assim o determine.

Esse porvir vem sendo descoberto e desvelado paulatinamente, com o amadurecimento dos relacionamentos e das próprias pessoas, penetradas e influenciadas pela sensibilidade e afetividade que permeiam toda e qualquer relação entre duas ou mais delas e que são as únicas verdadeiras condicionantes que fazem com que, ligadas ou não por vínculo sangüíneo, jurídico ou sexual, estejam e permaneçam juntas e felizes

.

No entanto, a busca dessa nova e diferente fisionomia das relações familiares e filiais, fundamentada no afeto, há de ser feita em conjunto com sensíveis valores éticos, sob pena de se estar condenando à morte um novo e belo filho que ainda sequer nasceu.

Outra não pode ser a postura ética da jurisprudência diante de situações similares. Ainda que sejam alvo do preconceito ou se originem de atitudes havidas por reprováveis, o juiz não pode afastar-se do princípio ético que deve nortear todas as decisões. O distanciamento dos parâmetros comportamentais majoritários ou socialmente aceitáveis não pode ser fonte geradora de favorecimentos, preconceitos e discriminações. Não ver fatos que estão diante dos olhos é manter a imagem da Justiça cega. Condenar à invisibilidade situações existentes é produzir irresponsabilidades: é olvidar que a ética condiciona todo o Direito e, principalmente, o Direito de Família.

Afinal, renunciar a tudo isso, ao porvir, ao prazer da descoberta, à adrenalina do novo, é simplesmente renunciar à própria vida, como expressado na letra poética da canção "Cuide bem do seu amor", de Herbert Viana:

Cuide bem do seu amor

Seja quem for

E cada segundo, cada momento, cada instante

É quase eterno, passa devagar

Se seu mundo for o mundo inteiro

Sua vida, seu amor, seu lar

Cuide tudo que for verdadeiro

Deixe tudo que não for passar!

Mas, para assim cuidar, exigem-se um cuidado, uma atenção e uma dedicação que são ingredientes certos e necessários ao espocar imorredouro do novo, do amanhã, das promessas da modernidade e, enfim, do sonho imaginado, existente, por certo, na parte mais íntima de cada um de nós: viver ao lado de quem se ama, para dividir os dias, as horas, os momentos bons e ruins, dedicando a vida a essa pessoa por um único e exclusivo argumento justificador – o amor.

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Sobre o autor
Mauro Nicolau Junior

Juiz titular da 48ª Vara Cível do Rio de Janeiro (RJ). Professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Cândido Mendes. Professor da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NICOLAU JUNIOR, Mauro. A decisão do STF, o princípio constitucional da igualdade e a vedação de discriminação.: O afeto como paradigma norteador da legitimidade das decisões judiciais. A família contemporânea e sua nova formatação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2998, 16 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20006. Acesso em: 26 abr. 2024.

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