9. A JUSTIÇA CONECTADA À MODERNIDADE E SEUS VALORES. A RESPONSABILIDADE DO JULGAMENTO.
O julgamento é uma, se não a mais importante atividade em que ocorre esse compartilhar-o-mundo.
Hannah Arendt
A justiça é muito mais utilizada para manter as minorias dominantes com a conivência de um poder tirado da classe média do que para servir de embate entre o máximo e o mínimo. Nessa liturgia, realmente, saem prejudicadas as categorias inferiores. [11]
Vê-se, sem grandes dificuldades, que a busca da justiça como equidade funda-se numa base filosófica e moral aceitável para as instituições democráticas. Para responder à questão de como atender às exigências da liberdade e da igualdade que têm como pressuposto a existência de uma sociedade formada por pessoas livres e iguais, afirma John Rawls:
Para a justiça como equidade os cidadãos estão envolvidos na cooperação social, e, portanto são plenamente capazes de fazer isso durante toda a vida. Pessoas assim consideradas têm aquilo que poderíamos chamar de "as duas faculdades morais", descritas como segue: I – Uma dessas faculdades é a capacidade de ter um senso de justiça: é a capacidade de compreender e aplicar os princípios de justiça política que determinam os termos eqüitativos de cooperação social, e de agir a partir deles (e não apenas de acordo com eles). II – A outra faculdade moral é a capacidade de formar uma concepção do bem: é a capacidade de ter, revisar e buscar atingir de modo racional uma concepção do bem. Tal concepção é uma família ordenada de fins últimos que determinam a concepção que uma pessoa tem do que tem valor, na vida humana ou, em outras palavras, do que se considera uma vida digna de ser vivida. Os elementos dessa concepção costumam fazer parte de, e ser interpretados por, certas doutrinas religiosas, filosóficas ou morais abrangentes à luz das quais os vários fins são ordenados e compreendidos. (RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. Organização de Erin Kelly. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 26)
O juiz não pode prostrar-se diante do caso concreto como uma máquina insensível. Sua atividade desenvolve-se com o objetivo de pacificar com justiça o conflito de interesses submetido à sua apreciação. Para tanto, não pode o julgador acomodar-se. Sob os influxos da lógica de lo razonable, [12] o juiz moderno é desafiado a assumir, cada vez mais, um papel ativo e criativo na interpretação da lei, adaptando-a, em nome da justiça, aos princípios e valores de seu tempo.
É este homem do direito atual que relê o que efetivamente restou de perene, após o desmoronamento de uma secular estrutura de dogmas, afastando de si a segurança da fossilização e da estagnação de conceitos e de normas, para admitir a abertura de castelos – ou de prisões – em prol da atenção às transformações geradoras da crise, em prol da vivificação dos valores da vida e dos anseios atuais
É deste ser de incansável movimento e de infinitos sonhos que se está a falar. Fala-se de sua vivacidade, sua inteligência ímpar, sua aguda percepção dos fenômenos, sua supremacia na escala biológica. Tudo isso que o colocou em pé, uma primeira vez, prossegue agigantando-se em seu espírito, não lhe conferindo paz, serenidade ou repouso, mas, antes, incitando-o eternamente a caminhar além, a esmiuçar segredos e a constranger costumes ancestrais.
Esse caminhar desvenda-lhe outros mistérios, inova-lhe o espírito, estabelece novos horizontes de contemplação de sua ambientação jurídica. Fá-lo novo e faz novos os seus projetos. Por isso, novo há de ser também o direito que dimensiona e organiza a sua vida privada. O desafio, profetiza Luiz Edson Fachin, consiste em trocar práticas de medievo pelos saberes construídos às portas do terceiro milênio. E este é apenas o singelo ponto de partida rumo ao que abre o terceiro milênio. (Teoria crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 5).
Não se há, contudo, de destruir, mas sim desconstruir [13] o que se tem até agora, para que outro modelo possa emergir, possibilitando-se lançar um novo olhar a partir da perspectiva de se colocar, como centro de todo o sistema, o próprio ser humano, e não mais a propriedade, o contrato, o patrimônio ou qualquer outro valor típico do liberalismo e do individualismo que, não se duvida nem se questiona, teve seu momento e seu valor histórico, mas não pode ainda ser aceito num mundo moderno, globalizado e, acima de tudo, que se quer solidário e humano.
A função primordial do intérprete no Direito atual é essencial para explicar por que determinadas palavras podem fazer várias coisas, e não outras. Nas palavras de Karl Larenz, interpretar é uma atividade de mediação, pela qual o intérprete traz à compreensão o sentido de um texto que se lhe torna problemático. (LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997, p. 439).
Para essa atividade, o saber jurídico ocupa papel de relevo e não se restringe a um conjunto de códigos, mas tem de ser concebido como um processo de diálogo, de troca entre o ser e o mundo, necessariamente entendido como uma reação ao positivismo. A própria norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade, a sua essência reside no fato de que a relação por ela regulada venha a ser concretizada na realidade. E ela se complementa com a idéia de interpretação, trazida por Peter Häberle, de que "não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada" (Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição – Contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental" da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997, p. 55).
Para ele, interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo à realidade pública, mesmo com espaço para participação das potências públicas pluralistas, concretizando-se uma interpretação democrática.
Fica-se aqui, com o primado de Paulo Bonavides (Curso de Direito Constitucional. 7ª ed.São Paulo: Malheiros, 2000, p. 399) para quem a interpretação jurídica, em si, é a reconstrução do conteúdo da lei, sua elucidação, de modo a operar-se uma restituição do sentido do texto viciado, obscuro ou não condizente com a realidade temporal-geográfica. Em verdade, a interpretação mostra o Direito vivendo plenamente a fase concreta e integrativa, objetivando-se na realidade. Observa Rogério Gesta Leal:
se é verdade que a Modernidade não cumpriu com suas promessas emancipatórias à civilização ocidental, cumpre verificar como podemos conviver e solucionar os impasses que se apresentam no âmbito das demandas sociais emergentes, todas dizendo respeito à necessidade de concretização dos direitos assegurados pelas Cartas Políticas vigentes. (Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 156)
Faz-se forte a responsabilidade dos intérpretes e aplicadores do Direito para que, num Estado democrático constitucional de direito, se adote o sistema de cláusulas abertas [14] como feito na Constituição e no Código Civil, por exemplo, com os conceitos como "pessoa", "direito subjetivo", "bem jurídico" e "regular funcionamento das instituições democráticas".
Esse sistema permite modificar os significados sem necessidade de se alterar a lei "positiva" e, dessa forma, proceder à adequação de seus textos à realidade atual e histórica vivenciada pela sociedade no momento e por ocasião de sua aplicação.
Exatamente nesse contexto, John Rawls avança com a distinção entre um conceito de justiça e as diversas concepções de justiça. Ele afirma que as regras jurídicas
tanto podem conter preceitos bem precisos, que não requerem nenhuma interpretação especial, posto que o seu significado é sempre o mesmo, as chamadas "concepções", que o legislador quis que perdurassem como decisões globais de sistema, como podem incorporar ainda temas vagos, referências a padrões ou condutas, cuja concretização depende essencialmente das idéias do momento, os chamados "conceitos", que reclamam dos juizes e dos tribunais uma complementação ou concretização posteriores. (Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 22)
Afinal, não se está aqui mencionando acesso ou direito patrimonial ou que possa determinar a riqueza ou a miséria de uma pessoa, mas sim valor muito maior, muito mais elevado e essencial, que se relaciona com a própria vida da pessoa, com seu próprio significado no universo: a identidade do sujeito, seu reconhecimento como pessoa.
Talvez esteja aí o caminho e o fundamento mais íntimo da afirmação de que o elo maior que pode unir duas pessoas não é o legal, o contratual ou o biológico, mas sim o afetivo, que produz efeitos duradouros e plenos
.A Constituição, ao abandonar o casamento como único tipo de família juridicamente tutelada, abdicou dos valores que justificavam a norma de exclusão e passou a privilegiar o fundamento comum a todas as entidades, ou seja, o afeto, que é necessário para realização pessoal de seus integrantes. O advento do divórcio direto (ou a livre dissolução na união estável) demonstrou que apenas a afetividade, e não a lei, mantém unidas essas entidades familiares.
A afetividade é construção cultural que se dá na convivência, sem interesses materiais
, os quais apenas secundariamente emergem quando ela se extingue. Ela se revela em ambiente de solidariedade e responsabilidade. Como todo princípio, ostenta fraca densidade semântica, que se determina pela mediação concretizadora do intérprete, ante cada situação real.Paulo Luiz Netto Lobo (Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. 2004 a. Disponível em: <http://www.ibdfam.com.br/inf_geral.asp?codInf=297&CodTema=54&Tipo=1>. acesso em: 1 abr. 2004) afirma que a Constituição Federal abandonou a idéia clássica de que a família só se constitui pelo casamento. O autor vai mais longe quando conclui que, mesmo as demais formas de constituição familiar previstas na Constituição, não encerram em si as únicas possibilidades de construção do núcleo familiar e a exclusão de modelos familiares não expressamente previstos, não estaria na Constituição, mas sim no olhar vesgo e retrógrado do intérprete, que não acompanhou, na prática, a ideologia libertária e libertadora do legislador constituinte. Conclui Lobo:
No caput do art. 226 operou-se a mais radical transformação, no tocante ao âmbito de vigência da tutela constitucional à família. Não há qualquer referência a determinado tipo de família, como ocorreu com as constituições brasileiras anteriores. Ao suprimir a locução "constituída pelo casamento" (art. 175 da Constituição de 1967-69), sem substituí-la por qualquer outra, pôs sob a tutela constitucional "a família", ou seja, qualquer família. A cláusula de exclusão desapareceu. O fato de, em seus parágrafos, referir a tipos determinados, para atribuir-lhes certas conseqüências jurídicas, não significa que reinstituiu a cláusula de exclusão, como se ali estivesse a locução "a família, constituída pelo casamento, pela união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos". A interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos.
Mais uma vez, é fundamental o papel do intérprete como elemento determinante da realização e concretização das normas e princípios constitucionais consagradores dos direitos do ser humano.
Essa interação, esse ajudar mútuo, solidário e recíproco constitui-se, em verdade, num ponto de contato e similitude até mesmo entre duas formas de governo absolutamente diversas, e mesmo antagônicas, como são o liberalismo e o socialismo, que, na visão atualizadíssima de John Rawls, consiste no fato de que:
A idéia de utopia realista reconcilia-nos com o nosso mundo social, mostrando que é possível uma democracia constitucional razoavelmente justa, existindo como membro de uma Sociedade dos Povos razoavelmente justa. Ela estabelece que tal mundo pode existir em algum lugar e em algum tempo, mas não que tem de existir ou que existirá. Ainda assim, podemos sentir que a possibilidade de tal ordem política e social, liberal e decente, é inteiramente irrelevante enquanto essa possibilidade não é concretizada.
Embora a concretização, não seja, naturalmente, destituída de importância, creio que a própria possibilidade de tal ordem social pode, ela própria, reconciliar-nos com o mundo social. Ela não é uma mera possibilidade lógica, mas uma possibilidade que se liga às tendências e inclinações profundas do mundo social. Enquanto acreditarmos, por boas razões, que é possível uma ordem política e social razoavelmente justa e capaz de sustentar a si mesma, dentro do país e no exterior, poderemos ter esperança razoável de que nós ou outros, algum dia, em algum lugar, a conquistaremos.(O direito dos povos. Tradução de Luiz Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 167)
Esse é o desafio lançado ao Direito na modernidade. A sociedade exige dele atuação eficaz na concretização dos direitos humanos fundamentais, entre os quais está o direito à plenitude da personalidade, como inserido na Constituição Federal de 1988.
Para se entender o espírito que se pode considerar como ideal na leitura, interpretação e aplicação do Direito como instrumento de convivência social pacífica, convoca-se mais uma vez, e sempre, a lição de Miguel Reale, que, ao tentar esclarecer a relação entre o Direito e a felicidade, diz:
Se os homens fossem iguais como igual é a natural inclinação que nos leva à felicidade, não haveria Direito Positivo e nem mesmo necessidade de Justiça. A Justiça é um valor que só se revela na vida social, sendo conhecida a lição que Santo Tomás de Aquino nos deixou ao observar com admirável precisão que a virtude de justiça se concretiza pela sua objetividade, implicando uma proposição "ad alterum". (Fundamentos do Direito. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 306).
Engendrando-se e acomodando-se o sistema jurídico à realidade, com os olhos sempre voltados ao valor precípuo e objetivo impostergável do Direito, que é a garantia efetiva dos direitos fundamentais, chega-se à conclusão de que tal valor passa pela consecução da felicidade, da plenitude e da realização pessoal e familiar, sem as quais haverá sempre um vazio a ser preenchido, um ponto obscuro de incerteza a acompanhar a pessoa durante toda a vida. Essa completude só se fará possível através da superação de obstáculos e dogmas ligados, normalmente, ao preconceito, ao prejulgamento e à discriminação, permitindo-se pensar num valor maior ligado ao afeto, à relação social entre as pessoas, o qual haverá de ser utilizado como parâmetro ao julgamento das lides e à solução dos conflitos.
Amor daqueles que unem pessoas de forma definitiva, ainda que um dia possa vir a não mais existir, mas que tenha valido a pena, eterno enquanto dure, que tenha sido daqueles que nos completa e nos mostra quanta beleza há a ser vivida, amor daqueles descritos pelo poeta dom Marcos Barbosa, que, de forma significativa, mostra que o princípio da vida é a felicidade e, como os princípios se interpenetram, o princípio da felicidade é o princípio do amor:
Nossos caminhos são agora um só caminho, nossas almas uma só alma, os mesmos pássaros cantarão para nós, os mesmos anjos desdobrarão sobre nós as suas invisibilidades. Temos agora no espelho os nossos olhos, o teu riso dirá a minha alegria e o teu pranto a minha tristeza, se eu fechar os olhos, tu estarás presente e serás ao despertar, o sol que desponta. Iremos depois nos descobrindo nos filhos que crescem, e não mais saberemos distinguir em cada um, os teus e os meus traços, o teu e o meu gesto, e, então, nos tornaremos parecidos, e nem o mundo e nem a guerra e nem a morte poderá separar-nos. Que eu não tenha outro amparo da tua mão nem outro alimento do teu sorriso nem outro repouso do teu peito e, quando eu fechar os olhos para a grande noite, que sejam tuas as mãos que hão de cerrá-los, para quando os abrir para a visão de Deus possa contemplar-te como o caminho que me levou, dia após dia, à fonte de todo amor. (BARBOSA, Dom Marcos. Cântico de núpcias. Disponível em: <www.secrel.com.br/jpoesia/mbarbosa1.html>. Acesso em: 4 jun. 2003)