4.O art. 267, § 3º do CPC e o agravo de instrumento
A doutrina freqüentemente refere-se ao art. 267, § 3º do CPC em relação a apelação.
Ocorre que, não há qualquer motivo para se excluir o agravo de instrumento do seu âmbito de incidência.
A esta conclusão já havíamos chegado sinteticamente em nosso "Condições da Ação", senão vejamos:
"Há de se indagar, por fim, se o tribunal poderá declarar a ausência do interesse de agir ou de qualquer outra condição da ação, em agravo de instrumento interposto de decisão interlocutória que não diz respeito à presença de tais requisitos, especialmente daquela que concedeu tutela antecipada.
Não vislumbramos qualquer diferença entre a apelação ou qualquer outro recurso, no que atine à aplicação do efeito translativo, o que nos permite dizer que as questões de ordem pública, sobre as quais não existe preclusão, podem ser apreciadas pelo tribunal, desde que o recurso seja conhecido, preenchendo todos os requisitos para sua admissibilidade.
Por exemplo: interposto agravo de instrumento da decisão que concedeu liminarmente o despejo, mesmo que o agravante não alegue a ausência do interesse de agir, poderá o tribunal se pronunciar a respeito, determinando a extinção do processo sem o julgamento do mérito"(28).
Aliás, se fizéssemos uma interpretação literal deste dispositivo legal, desprezando o sentido da norma, a translação das questões de ordem pública só ocorreria no agravo. Isto porque – como vimos –, apesar de o mesmo fazer referência a qualquer tempo ou grau de jurisdição, ressalva: enquanto não proferida a sentença de mérito.
Ademais, sabendo que o tribunal poderá apreciar esta matéria em apelação, porque não precipitar uma decisão do próprio tribunal no agravo de instrumento, em atenção ao princípio da economia processual, evitando-se, desta maneira, o prosseguimento de uma dispendiosa e inútil atividade estatal.
Por outro lado, se o relator, em decisão monocrática, pode conhecer do agravo de instrumento interposto contra a decisão que negou seguimento ao recurso especial ou extraordinário, para dar provimento ao próprio recurso especial ou extraordinário, ou para determinar a conversão do agravo em recurso especial ou recurso extraordinário (CPC, art. 544, § 3º) – hipótese que seria inimaginável, se não estivesse prevista em lei –, o que impede o órgão colegiado de conhecer da falta de um pressuposto processual ou de uma condição da ação, eventualmente extinguindo o processo, no próprio agravo de instrumento (CPC, art. 267, § 3º)?
Há que se ressaltar, entretanto, que o tribunal, para julgar o agravo de instrumento, não dispõe dos autos do processo. É preciso, desta forma, que os documentos anexados às razões e/ou contra-razões possibilitem aos julgadores o conhecimento da matéria de uma forma inequívoca.
Portanto, o tribunal não somente pode, mas deve conhecer da matéria prevista nos incisos IV, V ou VI do art. 267 do CPC, em agravo de instrumento, ainda que tal matéria não tenha sido suscitada pelo agravante.
Assim também se posicionou Teresa Arruda Alvim Wambier na última edição de sua conhecida obra sobre os agravos:
"Na mesma linha de raciocínio, entendemos que o Tribunal, desde que se trate de matéria de ordem pública cuja constatação possa ser feita icto oculi, pode extinguir o processo com base no art. 267, em julgando um agravo, em que a matéria não tenha sido ventilada"(29).
Na jurisprudência podemos encontrar algumas decisões neste sentido. Vejamos alguns exemplos:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO – Arrendamento Mercantil. Reintegração de Posse. Tempestividade do recurso da agravante. VRG cobrado antecipadamente. Falta de interesse-adequação para o ajuizamento da ação reintegratória. Recurso provido. Extinção do processo principal sem julgamento do mérito"(30).
No acórdão, a Juíza Rosa Maria de Andrade Nery relata que o agravo de instrumento fora interposto contra decisão a quo concessiva de liminar de reintegração de posse. Ao final, acompanhada pelos demais julgadores, dá provimento ao recurso, para cassar a liminar reintegratória concedida em primeiro grau, e extingue o processo sem julgamento do mérito, por falta de interesse-adequação do autor para ajuizar ação reintegratória, condenando a agravada a pagar custas, despesas processuais e honorários advocatícios(31).
"CITAÇÃO – Monitória – Efetivação via postal, recebida por pessoa que apenas tinha em comum com o citado, o último sobrenome – Insuficiência para que se desse por citado o réu, nos termos do art. 215 e 223, parágrafo único do CPC, em harmonia com o art. 224 do mesmo Estatuto – Ausência do pressuposto básico de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo – Art. 267, IV do CPC – Nulidade decretada de ofício (parágrafo 3º, do mesmo dispositivo) – Recurso improvido."(32)
"AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO COLIMANDO A DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA COBRANÇA DE TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA – LIMINAR DEFERIDA – MINISTÉRIO PÚBLICO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – EFEITOS – HIPÓTESE QUE LEVA A INVADIR COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO EXCELSO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – INVIABILIDADE – PREVALÊNCIA DO PRIMADO DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – CASO EM QUE VERTE TAMBÉM A ILEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL – IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO E CARÊNCIA DE AÇÃO – RECURSO PROVIDO PARA, DE OFÍCIO, DECRETAR A EXTINÇÃO DO PROCESSO PRINCIPAL SEM JULGAMENTO DE MÉRITO – INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 102, I, "A", E PARÁGRAFO 2º, 103 E 52, X DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E ART. 16 DA LEI N. 7.347"(33).
"AGRAVO DE INSTRUMENTO – Previdência social – IPREM – Ação de reconhecimento de relação de fato, c.c. condenação ao pagamento de pensão – Pensionamento integral da filha menor cortado para 50% após propositura da demanda – Ausência de pressupostos e condições da ação – Extinção do processo principal – Permanência da integralidade da pensão à menor – Recurso parcialmente provido"(34).
No julgamento deste agravo, aliás, o Desembargador Jovino de Sylos assim se expressou, ao proferir o seu voto: "Ante a irreversibilidade do "status quo", a ilegitimidade de parte, a inobservância de litisonsórcio necessário, a clara ausência de válida representação processual da menor...", "bem como de intervenção do Ministério Público, não há possibilidade de preservação do acionamento nos termos almejados. Caracteriza-se assim inegável falta de pressupostos e de condições da ação, levando inexoravelmente à extinção do processo (CPC, art. 267, IV e VI), providência essa perfeitamente autorizada a este Tribunal, que, na apreciação do agravo de instrumento, pode examinar livremente, sem provocação, matéria principal dessa natureza, cujo conhecimento de ofício, apresenta-se viável em qualquer tempo e grau de jurisdição, mormente enquanto não proferida decisão definitiva (CPC, arts. 267, § 3º, e 301, § 4º)".
E, por fim, no mesmo sentido, acórdão relatado pelo brilhantíssimo Desembargador Walter Swensson, que optou, no entanto, pelo não-conhecimento do recurso:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – Decisão que rejeitou impugnação ao valor da causa – Ausência de um dos pressupostos de constituição válida e regular do processo, qual seja, a Competência do MM. Juiz a quo para conhecer do feito principal, que deve, por isso, ser extinto – Agravo não conhecido e, de ofício, extinto o processo principal(35).
Esta posição também se aplica ao agravo retido, muito embora neste caso o tribunal possa se pronunciar sobre a ausência da condição da ação ou do pressuposto processual na própria apelação, e aos diversos agravos internos, também chamados de agravos regimentais, agravinhos, agravos de mesa ou agravos simples(36) (v.g., CPC, arts. 532, 545 e 557, § 1º).
Fazemos, entretanto, uma ressalva: interposto o recurso, com o procedimento ainda na fase postulatória, nada impede que tribunal, mesmo em sede de agravo, conceda um prazo ao autor para que sejam supridas ou corrigidas todas as irregularidades que porventura impeçam o julgamento do mérito, em atenção aos princípios da economia processual e da instrumentalidade das formas. Isto, evidentemente, na ocorrência de vícios sanáveis.
Por outro lado, interposto o agravo de instrumento, poderá o juiz se retratar – especialmente após o cumprimento do disposto no CPC, art. 526(37) –, conhecendo da ausência de qualquer dos pressupostos processuais ou das condições da ação. Esta decisão deverá ser comunicada imediatamente ao tribunal.
Observe-se, por fim, que, havendo a extinção do processo no agravo de instrumento, se a decisão não for unânime, por coerência lógica, deve caber, desta decisão, o recurso de embargos infringentes. Esta nos parece a melhor interpretação do art. 530 do CPC, coerente com a sua finalidade.
5.Conclusões
Apresentamos, então, as conclusões a que chegamos neste trabalho.
Os pressupostos processuais constituem categoria jurídica heterogênea. A decisão que declara a ausência de um pressuposto processual pode consistir numa decisão interlocutória ou numa sentença processual, cabendo agravo ou apelação, conforme o caso.
Já o julgado que reconhece a ausência de uma condição da ação terá natureza jurídica de sentença processual, sendo impugnável por apelação.
É possível, entretanto, que a sentença declaratória da inexistência de pressuposto processual ou condição da ação não gere – excepcionalmente – a extinção do processo (como um todo). Nesta hipótese, por uma questão de ordem prática, o recurso cabível será o agravo.
Os pressupostos processuais e as condições da ação são requisitos de admissibilidade para o julgamento do mérito.
A admissibilidade possui um caráter público, tendo em vista os altos custos do processo para as partes e – principalmente – para o Estado.
Este é razão pela qual as questões atinentes aos pressupostos processuais e às condições da ação são consideradas questões de ordem pública.
Por isso mesmo, não há preclusão pro judicato sobre a decisão do juiz, anterior à sentença, que declara a presença dos pressupostos processuais ou das condições da ação, a teor do CPC, art. 267, § 3º.
Da mesma forma, o CPC, art. 267, § 3º, permite que o órgão ad quem conheça de ofício sobre a ausência de pressuposto processual ou de condição da ação em grau de recurso.
Nada há em nosso direito que impeça a aplicação do CPC, art. 267, § 3º ao agravo de instrumento, podendo o tribunal conhecer de ofício da ausência de um pressuposto processual ou de uma condição da ação em sede de agravo de instrumento – de agravo retido ou de agravo interno ou regimental – que não verse sobre tal matéria.
Aliás, numa simples interpretação literal do texto legal – com a qual, é preciso deixar claro, não concordamos – só se poderia admitir a translação das questões de ordem pública no agravo de instrumento, tendo em vista que a norma faz a ressalva enquanto não proferida a sentença de mérito.
É preciso, entretanto, que o tribunal disponha de elementos suficientes para verificar a falta de um pressuposto processual ou de uma condição da ação nos autos do próprio agravo de instrumento, na medida em que não dispõe – neste recurso – dos autos do processo.
Ao juiz que proferiu a decisão recorrida também se permite a retratação, no agravo de instrumento, para declarar a ausência de qualquer dos requisitos de admissibilidade para o exame do mérito.
Ademais, se a decisão do agravo de instrumento extinguir o processo sem julgamento do mérito e não for unânime, será impugnável por meio de embargos infringentes.
Notas
1. Abordamos esse tema em nosso Condições da Ação. 1ª ed. 2ª tir. São Paulo: RT, 2000.
2. Excepcionalmente o objeto litigioso do processo poderá ser ampliado na contestação, quando a ação proposta tiver a natureza dúplice, v.g. ações possessórias, ação de prestação de contas e ação de divisão e/ou demarcação.
3. Mesmo ao se declarar impedido, o juiz profere decisão interlocutória irrecorrível, pois, em qualquer situação, faltaria interesse em recorrer.
4. Manuale di diritto processuale civile, p. 40.
5. É importante notar também que, em trabalho anterior ao próprio Manuale, Liebman se pronunciou favoravelmente à adoção de um quarto grupo de condições da ação, consistente na ausência de fatos extintivos da ação, como a coisa julgada e a perempção da ação conseqüente a três absolvições de instância, e de fatos suspensivos da ação, como o beneficium excussionis ("O despacho saneador e o julgamento do mérito", p. 223).
6. Conforme Dinamarco, "Coisa julgada, transação superveniente, aquiescência e ação rescisória", p. 1050-1051, espelhado nas lições de Carnelutti, [o interesse] "Resolve-se na capacidade, que um bem tenha, de proporcionar a um sujeito situações ou sensações mais felizes ou vantajosas que as preexistentes. Existe essa relação de complementariedade entre um sujeito e um provimento jurisdição (relação de utilidade, interesse) quando este for capaz de criar para aquele uma situação jurídica melhor, mais cômoda, mais feliz, mais vantajosa que a precedente".
7. Falar em carência de ação implica reconhecer que a ausência de uma condição da ação leva necessariamente à falta ou privação da própria ação, como dizia Liebman ("L’azione nella teoria del Processo civile", publicado em Problemi del Processo Civile, p. 47). Mas isto efetivamente não ocorre, senão tais requisitos seriam incompatíveis com a nossa Constituição Federal (art. 5º, XXXV). Ainda que possa parecer um mero jogo de palavras, é preciso observar que a ausência de uma condição da ação impede apenas o regular exercício do direito de ação e não a existência da própria ação.
8. Consoante Teresa Arruda Alvim Wambier, não é o critério topográfico que distingue a sentença dos demais pronunciamentos do juiz, nem a possibilidade de gerar a extinção do processo, mas o seu conteúdo pré-estabelecido em lei (Nulidades do processo e da sentença, p. 25-27).
9. "Admissibilidade e mérito na execução", p. 25; Mandado de segurança coletivo: legitimação ativa, p. 60-61.
10. Cf. denominação de Alfredo Buzaid, "Do despacho saneador", p. 7.
11. "Recursos de Efeito Devolutivo Restrito e a Possibilidade de Decisão Acerca de Questão de Ordem Pública sem que se Trate da Matéria Impugnada", p. 268.
12. Despacho Saneador, p. 160-162.
13. "Sobre a Eficácia Preclusiva da Decisão Declaratória de Saneamento", p. 54.
14. Nulidades..., p. 192.
15. Tratado de Direito Processual Civil, v. I, p. 322.
16. Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos, p. 415.
17. Idem.
18. Este prequestionamento só poderia ocorrer, aliás, em relação ao recurso especial, pois o CPC é, para todos os efeitos, Lei Federal.
19. STJ – 2ª Turma, EEROMS 66/DF, rel. Min. Eliana Calmon, j. 23.05.2000, DJU 28.08.2000, p. 00064.
20. Princípios..., p. 420.
21. STJ – 2ª Turma, REsp 41328/PR, rel. Min. Américo Luz, j. 04.04.1994, DJU 09.05.1994, p. 10860.
22. STJ – 2ª Turma, REsp 118587/SC, rel. Min. Peçanha Martins, j. 07.08.1997, DJU 24.11.1997, p. 61170.
23. STJ – 1ª Turma, REsp 109474/DF, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 09.09.1997, DJU 20.10.1997, p. 52978.
24. STJ – 3ª Turma, AGRESP 94883/SP, rel. Min. Ari Pargendler, j. 10.04.2000, DJU 08.05.2000, p. 00088.
25. STJ – 3ª Turma, AGRESP 197814/ES, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 26.09.2000, DJU 23.10.2000, p. 00134.
26. STJ – 2ª Turma, AGA 314612/SP, rel. Min. Eliana Calmon, j. 05.10.2000, DJU 13.11.2000, p. 00139.
27. "Recursos...", p. 269.
28. Condições..., p. 138-139.
29. Os Agravos no CPC brasileiro, p. 225.
30. 2º TACSP – 10ª Câm., Agravo de Instrumento n. 659.468-0/1-SP, rel. Juíza Rosa Maria de Andrade Nery, j. 18.10.2000, v.u., BAASP n. 2198, p. 1716 – j.
31. BAASP n. 2198, p. 1717 – j e 1720 – j.
32. 1º TACSP – 7ª Câm., Agravo de Instrumento n. 0926487-5, São Paulo, rel. Juiz Ulisses do Valle O. Ramos, j. 04.04.2000.
33. Tribunal de Alçada do Paraná – 1ª Câm. Cív., Agravo de Instrumento n. 127866400, Marechal Cândido Rondon, rel. Juiz Mário Rau, j. 11.05.1999, DJ 06.08.1999.
34. TJSP – 7ª Cam. De dir. Púb., Agravo de Instrumento n. 112267-5, São Paulo, rel. Des. Jovino de Sylos, 13.03.2000.
35. TJSP – 7ª Câm. de Dir. Púb., Agravo de Instrumento n. 176.111.5/5, rel. designado Des. Walter Swensson, j. 23.10.2000.
36. Cf. Bernardo Pimentel Souza, Introdução aos recursos cíveis e à ação rescisória, p. 214.
37. Embora o descumprimento quanto ao preceituado neste dispositivo legal não deva levar, em nossa concepção, ao não-conhecimento do recurso.
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