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A desconsideração inversa da personalidade jurídica

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11/10/2011 às 08:14
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4 EFEITOS DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA

Incide a desconsideração inversa da personalidade jurídica, toda vez que os sócios fizerem uso indevido da personalidade da pessoa jurídica, ocorrendo assim o descortinamento momentâneo, ou seja, haverá o levantamento do "véu", alcançando o patrimônio da empresa, até o limite de bens transferidos pelo sócio para o patrimônio da sociedade com o intuito de burlar o adimplemento de terceiros credores da pessoa física do sócio.

Há que se destacar, o que ocorre é a desconsideração e não a despersonificação da empresa, visto que, aquela ocorrerá de forma rápida e momentânea, somente por tempo suficiente para restabelecer a divisão entre as personalidades do sócio e da sociedade, já que essa consiste em por fim a personalidade da pessoa jurídica.

Conclui-se que o ato de despersonificar é muito mais gravoso que a simples desconsideração, posto que a ficção jurídica do ente objeto de fraude é anulada, liquidando e empresa e, por conseguinte, dando baixa nos seus atos constitutivos.

Assim, toda vez que o judiciário deparar com a utilização da personalidade jurídica com fins escusos, deve proceder a retirada momentânea da personalidade, com o fim de restabelecer o patrimônio inicial tanto do sócio quanto da sociedade, para que cada qual arque com as suas obrigações, e não anular a pessoa jurídica, pondo fim a sua existência subjetiva.


5 MOMENTO DE APLICAÇÃO DA TEORIA

No tocante à aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica, pode-se dizer que tem cabimento toda vez que o sócio faz uso indevido da pessoa jurídica, mas verifica-se que a sua aplicação tem incidido, com mais freqüência, nos casos em que ocorre a confusão patrimonial, no dever de alimentar e no direito de família, quando o cônjuge, para burlar a partilha dos bens, faz uso da empresa para esvaziar o patrimônio do casal. Nesse sentido, têm-se três situações exemplificativas da aplicação do instituto ora em comento: patrimônio aparente, fraude no dever de prestar alimentos e, por fim, na dissolução da sociedade conjugal.

A aplicação inversa do instituto no primeiro caso, quanto à confusão patrimonial, tem tido grande aceitação por parte da doutrina e jurisprudência, visto que o sócio tem constituído sociedade para "esconder" o seu patrimônio, deixando o passivo em seu nome.

Assim, o terceiro que realiza negócio com o integrante pessoa física, baseado na teoria da aparência, imagina que os bens são do sócio, dada a ostentação realizada pelo mesmo mediante bons carros, boa moradia, restaurantes finos e bons colégios. Todo esse padrão de vida elevado leva o terceiro a crer que tal patrimônio pertence ao sócio, ora devedor, mas, na verdade, todos os bens pertencem à pessoa jurídica, criada para escudar o patrimônio e fraudar os credores, conforme exemplificado na decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, no voto da Ministra Nancy Andrighi:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇAO DE SENTENÇA. PENHORA DE BEM PERTENCENTE À EMPRESA DA QUAL É SÓCIO O EXECUTADO. TEORIA DA DESCONSIDERAÇAO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA. DISREGARD DOCTRINE.

I A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador.

II Considerando-se que a finalidade da disregard doctrine é combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica, conclui-se, de uma interpretação teleológica do art.

50 do CC/02, ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma.

III A desconsideração da personalidade jurídica configura-se como medida excepcional. Sua adoção somente é recomendada quando forem atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art.

50 do CC/02. Somente se forem verificados os requisitos de sua incidência, poderá o juiz, no próprio processo de execução, "levantar o véu" da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens da empresa.

IV À luz das provas produzidas, a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, entendeu, mediante minuciosa fundamentação, pela ocorrência de confusão patrimonial e abuso de direito por parte do recorrente, ao se utilizar indevidamente de sua empresa para adquirir bens de uso particular.

VI Em conclusão, a r. decisão atacada, ao manter a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, afigurou-se escorreita, merecendo assim ser mantida por seus próprios fundamentos.

Nesses termos, pode-se concluir, que a retirada da personalidade da pessoa jurídica deve ser o último meio para satisfação. (STJ, Processo nº RE- Nº 948.117 - MS (2007/0045262-5, Relatora Ministra Nancy Andrigh, Publicado em: 22/07/2010).

Desse modo, verifica-se o grau de importância da sedimentação do instituto como forma de inibir o uso inescrupuloso da personalidade jurídica das empresas, desvirtuando o fim pelo qual foi projetada a ficção jurídica, denominada Personalidade da Pessoa Jurídica.

No tocante à segunda, fraude no dever de prestar alimentos, tem merecido a guarida a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica por parte dos julgadores, toda vez que há fraude perpetrada pelo alimentante quanto ao dever de prestar alimentos ao alimentando.

O alimentante tem encobertado pelo "véu" jurídico o seu patrimônio, com o intuito de fraudar o pagamento da provisão alimentícia. Assim, com o seu patrimônio diminuído, o pagamento da provisão alimentícia é reduzido, visto que no momento da aplicação da regra capacidade versus necessidade, o julgador depara com uma condição financeira precária, ficando claro que se a desconsideração não ocorrer será o alimentado privado dos seus reais haveres.

Caso não se aplique a teoria, o juiz estipularia valores irrisórios a título de prestação alimentar, deixando de prover o alimentado das suas necessidades básicas.

Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao julgar a Apelação Cível nº 598082162 contra decisão proferida em execução de alimentos, entende que:

Descabe escudar-se o devedor na personalidade jurídica da sociedade comercial, em que está investido todo o seu patrimônio, para esquivar-se do pagamento da dívida alimentar. Impõe-se a adoção da disregard doctrine, admitindo-se a constrição de bens titulados em nome de pessoa jurídica para satisfazer débito.

Nota-se que é permitida a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica, toda vez que os sócios querendo furtar-se do pagamento de pensão alimentícia transferem todo o patrimônio pessoal para a pessoa jurídica onde mantêm o controle total sobre a sua administração.

No mesmo diapasão, Coelho (2005, p. 45) preleciona o seguinte:

O devedor transfere seus bens para a pessoa jurídica sobre a qual detém absoluto controle. Desse modo, continua a usufruí-los, apesar de não serem de sua propriedade, mas da pessoa jurídica controlada. Os seus credores, em princípio, não podem responsabilizá-lo executando tais bens. É certo que, em se tratando de pessoa jurídica de uma sociedade, ao sócio é atribuída a participação societária, isto é, quotas ou ações representativas de parcelas do capital social. Essas são em regra penhoráveis para a garantia do cumprimento das obrigações do seu titular.

Diante do explicitado, conclui-se que quando do esvaziamento patrimonial do alimentante, tem lugar a aplicação do disregard na sua forma inversa, para coibir a furtividade no adimplemento dos víveres alimentares.

No tocante à última modalidade de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica na sua forma inversa, sua aplicação está legitimada, quando o cônjuge na iminência do divórcio, intentando deixar fora da divisão parte do patrimônio do casal, transfere os bens de propriedade comum para uma pessoa jurídica. Nesta pessoa jurídica, o cônjuge possui certo controle administrativo, fraudando a partilha a ser realizada por força do termino da união matrimonial.

Em linha com isso, Coelho (2005, p. 45) explica:

A desconsideração invertida ampara, de forma especial, os direitos de família. Na desconstituição do vínculo de casamento ou união estável, a partilha dos bens comuns pode resultar fraudada. Se um dos cônjuges ou companheiros, ao adquirir bens de maior valor, registra-os em nome da pessoa jurídica sob o seu controle, eles não integram, sob o ponto de vista formal, a massa familiar. Ao se desconsiderar a autonomia patrimonial, será possível responsabilizar a pessoa jurídica pelo devido ao ex-cônjuge ou ex-companheiro do sócio, associado ou instituidor. [...] Nesse condão, para se ver livre e dispensado de prestar contas da circulação dos bens comuns, o cônjuge transfere todo e qualquer patrimônio para o rol de bens da pessoa jurídica que é administrada por ele, facilitando o trânsito do parceiro empresário. Seguindo a mesma linha, o cônjuge preocupado com a partilha judicial, retira-se da sociedade às vésperas do intento separatório, transferindo a sua participação para outro sócio. Após a separação judicial, ele retorna à empresa e à livre administração dos bens que eram comuns ao casal.

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Nessa mesma linha, segue o julgado do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, onde decidindo a Apelação Cível nº 1999.001.14506 asseverou:

SEPARAÇÃO JUDICIAL. RECONVENÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. MEAÇÃO. O abuso de confiança na utilização do mandato, com desvio de bens do patrimônio do casal, representa injúria grave do cônjuge, tornando-o culpado pela separação. Inexistindo prova da exagerada ingestão de bebida alcoólica, improcede a pretensão reconvencional. É possível a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, usada como instrumento de fraude ou abuso à meação do cônjuge promovente da ação declaratória, para que estes bens sejam considerados comuns e comunicáveis entre os cônjuges, sendo objeto de partilha. A exclusão da meação da mulher em relação às dívidas unilateralmente pelo varão, só pode ser reconhecida em ação própria, com ciência dos credores.

Para corroborar essa nova tendência, quanto à aplicação efetiva na ceara do direito de família, como forma de inibir a fraude, na maioria das vezes, por parte do pater familiae,é cabível colacionar outro julgado, dessa vez realizado pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em julgamento da Apelação Cível nº 598082162, na qual decidiu em votação unânime:

A conveniência de sua utilização no âmbito do Direito de Família já foi abordado por Rolf Madaleno, em seu artigo intitulado A disregard no Direito de Família, publicado na Revista Ajuris 57/57-66: O usual, dentro da teoria da despersonalização, é equiparar o sócio à sociedade e que dentro dela se esconde, para desconsiderar seu ato ou negócio fraudulento ou abusivo e, destarte, alcançar seu patrimônio pessoal, por obrigação da sociedade. Já no Direito de Família sua utilização dar-se-á de hábito, na via inversa, desconsiderando o ato, para alcançar bem da sociedade, para pagamento do cônjuge credor familial, principalmente frente à diuturna constatação nas disputas matrimoniais, de o cônjuge empresário esconder-se sob as vestes da sociedade, para a qual faz despejar, senão todo, ao menos o rol mais significativo dos bens comuns.

Acrescente-se ainda que os efeitos da desconsideração inversa da personalidade jurídica podem ser aplicados, não só na dissolução do casamento, mas também no fim da união estável, visto que a própria Carta Magna no seu art. 226, parágrafo 3°, reconhece a existência da união estável e dá especial proteção.

Nessa perspectiva, para evitar as manobras do cônjuge fraudador, tem sido deferido cautelar em favor do lesado, com o fim de assegurar a futura partilha dos bens transferidos para a sociedade de forma fraudulenta, abusiva e simulada. Assim, deixa-se sob a guarda de um depositário judicial até o final do deslinde.

Dessa mesma idéia comunga Madaleno (apud FILGUEIRAS, http://jusvi.com/artigos/26439/1) quando assevera que:

A tutela cautelar trará, com efeito, resultado útil ao processo, evitando e acautelando a triste constatação, em sentido contrário, de que empresa e cônjuge-sócio só se serviram mutuamente para lucrar com a separação, enquanto ingenuamente negadas tutelas jurisdicionais que seriam capazes de preservar o resultado útil de uma extenuante demanda que cuida de selar a ruptura judicial de uma união de duas pessoas que já não mais se entendem.

De outro modo, o judiciário tem decidido pela compensação da parte do cônjuge lesado, cedendo quotas até o montante dos bens comuns do casal, transferido de forma escusa para o patrimônio da pessoa jurídica, utilizada de forma ilegal.

Por último, merece destaque a modificação contratual da empresa, com o fim de fraudar a partilha, reduzindo a participação do cônjuge, que, por confiança, concorda com o novo contrato, sem saber que o seu quinhão foi diminuído de forma substancial.

Desse modo, faz-se necessária a intervenção do judiciário, no uso da disregard, para que os bens transferidos tenham o seu retorno garantido ao monte a ser partilhado, extirpando, assim, o objetivo fraudulento do cônjuge.

Como exposto, verifica-se a grande importância do instituto para a questão patrimonial na sociedade conjugal, mais precisamente no regime de comunhão universal e comunhão parcial de bens, visto a fragilidade, ou melhor, a confiança que existe entre o casal, a facilitar de forma substancial a perpetração de fraude quanto aos bens adquiridos pelo casal na constância da sociedade conjugal, pois, como sabido, ocorrerá a união dos patrimônios trazidos ou adquiridos na constância do casamento.

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Sobre o autor
Hélio Marcos de Jesus

Assistente juridico, estudante do 5º ano de direito da Universidade de Uberaba

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS, Hélio Marcos. A desconsideração inversa da personalidade jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3023, 11 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20189. Acesso em: 29 mar. 2024.

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