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O império da interpretação enquanto poder simbólico.

A instrumentalização da hermenêutica jurídica a partir do pensamento de Pierre Bourdieu

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4. Normas e Competências enquanto Representação de Dois Espaços Hierárquicos

A coerência do ordenamento jurídico passa a entrelaçar duas ordens verticalizadas, sendo concorrentes na construção do que tomamos por Direito, estendendo-se também às ciências do Direito. A primeira organiza os textos que devem ser instrumentalizados, enquanto a segunda busca equilibrar as lutas simbólicas pelo sentido do texto: uma ordem trata das normas e suas fontes (Constituições, leis ordinárias e etc), enquanto a outra abrange os intérpretes conforme a sua localização na escala do poder (tribunais superiores, segundas e primeiras instâncias...). Relacionamos a coerência, decorrente do ideal sistemático do ordenamento jurídico, com a conveniência subjacente ao momento de expressar a sua neutralidade. O jurista universaliza e projeta para além do seu campo visões que são constituídas especificamente no seu campo, fazendo com que o conhecimento científico jurídico acabe por repousar para além da intervenção de suas circunstâncias sociais e econômicas, garantindo assim a sua pretensão de universalidade e neutralidade, inscrita desde já na linguagem técnica do jurista:

O efeito de apriorização, que está inscrito na lógica do funcionamento do campo jurídico, revela-se com toda a clareza na língua jurídica que, combinando elementos diretamente retirados da língua comum e elementos estranhos ao seu sistema, acusa todos os sinais de uma retórica da impersonalidade e da neutralidade (BOURDIEU, 2009, p. 215).

Esse duplo efeito retórico perpassa os mais distintos atos cotidianamente empregados pelo jurista. Desconhecer esse efeito não inviabiliza a sua reprodução contínua, ao contrário, torna-a mais intensa. Ao efeito de neutralização, Bourdieu ressalta o uso de elementos sintáticos, como frases impessoais, enquanto que o efeito de universalização é obtido através do "uso indicativo para enunciar normas, o emprego, próprio da retórica da atestação oficial e do auto, de verbos atestativos na terceira pessoa do singular do presente, ou passado composto que exprimem o aspecto realizado" (BOURDIEU, 2009, p.215-216). São esses os aspectos que, conforme o sociólogo francês, levaram os marxistas a vislumbrarem uma máscara ideológica que veste as ciências do Direito. Ele, porém, aí visualiza um contínuo processo de racionalização que subjaz o sistema das normas jurídicas (BOURDIEU, 2009, p.216).

Nesta análise social a pretensão de universalidade é elevada ao ponto de identificar-se com o sentido do Direito, no momento em que une os intérpretes das mais diversas posições aos aspectos de coerência jurídica subjacentes ao ordenamento. Assim aparecem as distinções gerais, como o público e o privado, ou então entre o direito processual e o direito material. Mais expressivo sob o ponto de vista da interpretação dos textos jurídicos encontra-se a distinção, quase que insuperável, entre teóricos e práticos.

Essa divisão permite a construção de uma "ponte" entre o corpo de regras e procedimentos com a pretensão universal, mostrando que a relação entre teoria e prática aqui se dá de maneira antagônica e complementar. Antagônica porque teóricos vão construir modelos jurídicos universais, atribuindo ao direito valores como coerência interna, sistematicidade, dentre outros, enquanto os práticos vão desenvolver formas de resolver os problemas jurídicos cotidianamente enfrentados por meio da manipulação do corpus jurídico. O antagonismo se torna claro a partir de duas formas muito distintas de se observar a prática do Direito, cada uma não apenas com problemas próprios, mas com entendimentos distintos sobre o que é um problema jurídico [11].

A complementariedade mostra-se na interdependência com que a pretensão universalizante é sustentada pelos dois lados simultaneamente, seja a partir da construção de teorias jurídicas auto referenciais, seja pela articulação do corpus técnico-jurídico como algo dissociado dos contextos sócio-políticos em que eles já se encontram. Em ambos os lados, a especificidade do problema jurídico, enquanto isolamento de seu campo, marca a produção simbólica do Direito por parte dos mais diversos agentes. A cisão entre os intérpretes autorizados acaba por gerar dois monopólios distintos, que se encontram firmemente relacionados aos limites das áreas em que atuam. Bourdieu considera essa divisão de trabalho entre teóricos e praticantes "uma forma subtil de divisão de trabalho de dominação simbólica na qual os adversários, objectivamente cúmplices, se servem uns aos outros" (BOURDIEU, 2009. p. 219).

O autor estabelece uma analogia entre o cânone jurídico e um banco central, na medida em que o cânone garante a autoridade dos atos jurídicos singulares, além de produzir inúmeras justificativas com o intuito de dissimular atos que visem a criar o Direito a partir da vontade do magistrado. A partir do momento em que o juiz decide ou cria, ele assim o faz porque reproduz uma visão legítima do ordenamento jurídico, e não a sua vontade enquanto expressão de sua concepção singular do ordenamento. Isso porque a legitimidade é tanto maior quanto menos o ato mostrar-se motivado pela valoração do intérprete jurídico, sendo esta substituída pela dita técnica jurídica. Neste sentido, de intérprete e construtor dos sentidos da lei, a figura do juiz se transforma na boca da lei, a expressão genuína de seu sentido e sua vontade. Nesta etapa, qualquer pretensão de clareza, ou busca analítica sobre o porquê de o juiz decidir de uma forma, e não de outra, perde sua razão de existir: a subsunção das normas transforma-se em um jogo de espelhos, onde a essência de qualquer disposição normativa restringe-se a sua aparência, ou seja, ao que a vontade do juiz, servindo-se da legitimidade do corpus jurídico, faz dela.

A relação de complementaridade mostra como teóricos e práticos continuam próximos sob uma perspectiva interdependente de construção do Direito, ainda que possuam visões de mundo distanciadas e divergentes acerca da constituição das ciências jurídicas. É o momento onde a pirâmide kelseniana, que é uma construção teórica, passa a ser largamente utilizada pelos especialistas em Direito constitucional, enquanto representação da estrutura hierárquica do ordenamento jurídico. Já as criações comumente relacionadas ao Direito Constitucional, como o controle de constitucionalidade, acabam por permear as preocupações dos teóricos quanto ao limite da atuação jurisdicional, as ligações entre Direito e política, dentre outras questões. Práticos fornecem elementos para a especulação teórica, enquanto os teóricos formulam respostas ou indagações sobre questões oriundas da atuação dos práticos. Daí Bourdieu relacionar a forma como as teorias do Direito e o cotidiano forense se interligam e a forma como teoremas matemáticos acabam sendo trabalhados pelos economistas:

Da mesma forma que o economista mais diretamente envolvido nos problemas práticos de gestão, permanece ligado, como numa "grande cadeia do Ser" à Lovejoy, ao teórico puro que produz alguns teoremas matemáticos pouco mais ou menos desprovidos de referente no mundo econômico real mas que se distingue ele mesmo de um puro matemático pelo reconhecimento que economistas mais impuros são obrigados a conceder às suas construções, também o simples juiz de instância (ou, para ir até aos últimos elos da corrente, o polícia ou o guarda prisional) está ligado ao teórico do direito puro e ao especialista do direito constitucional por uma cadeia de legitimidade que subtrai os seus actos ao estatuto da violência arbitrária. (BOURDIEU, 2009, p. 220)

O reconhecimento desse entrelaçamento não anula as tensões internas, ilustradas a partir da concorrência que envolve o exercício legítimo da competência jurídica. Os juristas teóricos comumente enxergam o Direito enquanto sistema autossuficiente e distinto, sendo essa separação o produto de uma abstração teórica que envolve o expurgamento das incertezas levantadas pelas lacunas e pelas incoerências que são observadas através do cotidiano forense, chocando-se assim frontalmente com os práticos. Os valores chaves de coerência e sistematicidade passam a assumir uma função de direcionar a reflexão teórica, sumindo os elementos que neste panorama não se encaixam. Por outro lado, os práticos conduzem o sentido do Direito para a resolução dos casos com que se defrontam, contestando a tranquilidade com que o teórico reflete acerca do Direito por via de um senso de urgência e "nervosismo" que caracterizam o cotidiano forense. Buscando incessantemente renovar o Direito, e atento às transformações sociais, os práticos realizam o trabalho complicado de adaptar a sistemática do Direito às exigências da realidade circundante:

É claro que os magistrados, por meio de sua prática jurídica, que os põe directamente perante a gestão dos conflitos e uma procura jurídica incessantemente renovada, tendem a assegurar a função de adaptação ao real num sistema que, entregue só a professores, correria o risco de se fechar na rigidez de um rigorismo racional: por meio da liberdade maior ou menor de apreciação que lhes é permitida na aplicação das regras, eles introduzem as mudanças e inovações indispensáveis à sobrevivência do sistema que os teóricos deverão integrar no sistema. (BOURDIEU, 2009, p. 220-221)

Se o campo jurídico necessita da atividade criadora dos praticantes que, por meio da instrumentalização da hermenêutica jurídica, dinamizam o Direito conforme seus interesses e necessidades, acabando também por servirem de "ponte" entre o sistema jurídico e a realidade circundante, a função dos teóricos não é menos importante. Deixado o Direito tão somente nas mãos dos praticantes, o elo acabaria por correr o risco de explicitamente se tornar uma "terra de ninguém", onde a vontade do juiz assume o referencial sagrado sob o qual devem se curvar aqueles que anseiam por uma decisão redentora. Qualquer relevância dos direitos e garantias positivados deixariam de existir, já que ao juiz é dada a possibilidade de instrumentalizar a interpretação para a direção que mandar a sua vontade, podendo muito bem ignorar, ou remover, as garantias que lhe vão de encontro através do controle da extensão dos efeitos normativos. Esse é o terreno por excelência da Kadijustiz, a justiça dos juízes.

Tudo isso nos levaria a acreditar que a função do teórico acaba sendo a de impor limites ao poder, ou de até mesmo buscar inviabilizar o surgimento das situações esboçadas acima. Contudo, a falha principal da situação anterior foi a clareza com que explicitamente a interpretação passou a ser instrumentalizada, viabilizando assim as mais diversas críticas e objeções quanto a prática do jurista [12]. Cabe ao teórico suprir essa falha, assimilando todas as incoerências levantadas pela prática jurídica ao ordenamento jurídico autônomo, racional, e coerente. O teórico também instrumentaliza a interpretação no momento em que, orientado pela visão de um Direito coerente e racional, atribui ao arbitrário o status de "anomalia" jurídica, tratando-o muito mais como uma raridade, uma exceção, do que um elemento presente e persistente na prática do jurista. A função de assimilação, atribuída ao teórico, longe de inviabilizar a arbitrariedade dos juízes, torna-a mais sofisticada por fazê-la menos evidente. Bourdieu comenta essa função:

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Por seu lado, os juristas, pelo trabalho de racionalização e de formalização a que submetem o corpo de regras, representam a função de assimilação, própria para assegurar a coerência e a constância ao longo do tempo de um conjunto sistemático de princípios e de regras irredutíveis à série por vezes contraditória, complexa e, a longo prazo, impossível... e ao mesmo tempo, oferecem aos juízes – sempre inclinados, pela sua posição e pelas suas atitudes, a confiar no seu sentido jurídico – o meio de subtraírem os seus veredictos ao arbitrário demasiado visível de uma Kadijustiz. (BOURDIEU, 2009, p. 221)

Não cabe ao jurista teórico a função de descrever minunciosamente o que ocorre na prática jurídica, como se fosse um observador externo, mas sim a de conferir uma forma aos princípios e regras que são empregados pelos juristas. Cria desse modo uma ciência nomológica, que atua em duas frentes: por um lado, tenta visualizar a justiça a partir da lei, por outro lado, faz uso do método dedutivo como instrumento de resolução dos casos particulares (BOURDIEU, 2009, p. 221). A finalidade aqui é a enunciação científica do dever-ser, ou seja, conciliar uma visão orientada para o alto, representada pela preocupação com o justo, e uma para baixo, representada pelo Direito positivo, conciliação esta que é tarefa da ciência normativa do Direito.


5. O lugar da teoria do direito e a reprodução do conhecimento jurídico: organização racional e evolução histórica

Já o vimos que o jurista teórico também desempenha a tarefa de preservar e reproduzir o conhecimento jurídico, apresentando-o como um lento trabalho de evolução de séculos e mais séculos de teorizações sobre o Direito, enfatizando ainda mais a força da tradição jurídica e a coerência das várias interpretações realizadas sob o Direito, sendo esta também uma forma de interpretação [13]. A reprodução do conhecimento jurídico se dá inicialmente nas faculdades, lugar onde encontramos o monopólio dos acadêmicos, que em sua maioria são teóricos. Estes interpretam e organizam a prática jurídica, reproduzindo também uma lógica de dominação, ainda que esta seja imperceptível para aquele que a reproduz. Um bom exemplo encontra-se na forma com que o método dedutivo passa a ser identificado como o próprio percurso decisório realizado pelo juiz. Está claro que se trata de uma leitura sobre um aspecto da prática jurídica, mas essa leitura é muitas vezes passada como a própria realidade. Essa ficção acaba sendo denunciada pelos juristas pertencentes ao realismo jurídico:

Como os "realistas" bem mostraram, é completamente vão procurar isolar uma metodologia jurídica perfeitamente racional: a aplicação necessária de uma regra de direito conforme um caso particular é na realidade uma confrontação de direitos antagonistas entre os quais o Tribunal deve escolher; a regra tirada de um caso precedente nunca pode ser pura e simplesmente aplicada a um novo caso, porque não há nunca simplesmente dois casos perfeitamente idênticos, devendo o juiz determinar se a regra aplicada ao primeiro caso pode ou não ser estendida de maneira a incluir o novo caso (BOURDIEU, 2009, p. 222).

O que se encontra por trás desta discussão é a substituição aparente da interpretação pela lógica. Neste jogo de aparência, a lógica resume-se a explicitação de uma dedução que escapa à vontade do juiz, consolidando a decisão como legítima e imparcial. Esse elemento criador e arbitrário, que integra o momento decisional, é o primeiro a ser desmentido e recalcado porque atenta contra a cientificidade do Direito e o princípio de sua universalização. Bourdieu vê na interpretação uma historicização da norma jurídica, momento em que a "ponte" que liga o campo jurídico à realidade social é cruzada, onde possibilidades interpretativas ainda não examinadas passam a serem descobertas conforme novos casos passam a serem examinados pelo poder judiciário. Esse trabalho de criação envolve também a destruição e esquecimento tanto das normas consideradas obsoletas, como das interpretações sobre as normas que não mais podem ser acolhidas a partir de uma nova realidade social.

É importante enfatizar também a relação entre reprodução do saber e dissimulação, já que para Pierre Bourdieu as relações de poder ganham força e se mantém a partir da dissimulação, enquanto omissão consciente de aspectos que expõem a lógica da dominação, com isso viabilizando a sua reprodução [14]. Do professor que apresenta aos alunos uma visão rigorosamente sistemática e coerente do Direito ao juiz que sentencia conforme a sua convicção íntima, em ambos os casos a interpretação é utilizada para dissimular a lógica de dominação subjacente ao campo jurídico, que como vimos é indispensável para a sua reprodução.

Os dois casos descritos servem como forma de ilustrar o poder que existe na operação hermenêutica chamada por Bourdieu de declaratio. A polissemia das normas jurídicas, agora enfatizadas ainda mais a partir da utilização exorbitante dos princípios jurídicos, permite aos juízes e demais juristas instrumentalizar a interpretação recorrendo aos mais diversos meios. Além da declaratio, pode-se fazer-se uso da restrictio, como meio de afastar a aplicação que seria necessária a partir de uma interpretação literal da norma, ou fazendo-se uso da extensio, aqui com o intuito de aplicar uma norma que se interpretada literalmente não caberia a sua aplicação. Esses mecanismos também acabam por mostrar as desigualdades entre os profissionais engajados nessa luta simbólica pelo ato de dizer o Direito.

Com efeito, o conteúdo prático da lei que se revela no veredicto é o resultado de uma luta simbólica entre profissionais dotados de competências técnicas e sociais desiguais, portanto, capazes de mobilizar, embora de modo desigual, os meios ou recursos jurídicos disponíveis, pela exploração das "regras possíveis", e de os utilizar eficazmente, quer dizer, como armas simbólicas, para fazerem triunfar a sua causa; o efeito jurídico da regra, quer dizer, a sua significação real, determina-se na relação de força específica entre os profissionais... (BOURDIEU, 2009, p. 224)

Por trás dos rituais formais que impregnam a prática jurídica, a funcionalidade da hermenêutica jurídica também se encontra dissimulada, na medida em que vem a se tornar mais um artifício para mostrar como a decisão do juiz exprime a vontade da lei (voluntas legis), ou do legislador (voluntas legislatoris). Trata-se da atuação do elemento dissimulante, que não apenas intensifica o poder, como também faz com que ele seja reproduzido:

É próprio da eficácia simbólica, como se sabe, não poder exercer-se senão com a cumplicidade – tanto mais certa quanto mais inconsciente, e até mesmo mais subtilmente extorquida – daqueles que a suportam. Forma por excelência do discurso legítimo, o direito só pode exercer a sua eficácia específica na medida em que obtém o reconhecimento, quer dizer, na medida em que permanece desconhecida a parte maior ou menor de arbitrário que está na origem do seu funcionamento. (BOURDIEU, 2009, p.243)

Essa cumplicidade sentencia a todo e qualquer jurista ao papel problemático de hipócrita. Longe de ser apenas um adjetivo moral, a hipocrisia opera por uma reversão entre aparência/essência, instituindo um jogo onde se toma por essência aquilo que é a aparência. Mas para que essa ilusão se mantenha firme é indispensável fazer com que a aparência manifeste-se o mais próximo possível de uma realidade fictícia, mas amplamente compartilhada, ainda que jamais venha a sê-la: é necessário que o mentiroso, ou o charlatão, venha a parecer nos mínimos detalhes com uma pessoa de bem, caso contrário o encanto é quebrado.

A ilusão que os juristas praticantes produzem é a própria representação social do que é uma instituição jurídica. A seriedade que se imprime na cara dos operadores do Direito, o jargão pomposo que os distingue dos demais falantes da língua portuguesa, os trajes, tudo aponta para um universo distinto e isolado, mas que deles, operadores do Direito, todos nós necessitamos. A arbitrariedade integra o jogo, mas não pode ser admitida, sob pena de romper com toda a imposição que os juristas criam em torno de si, unindo o prestígio profissional à influência social. As operações hermenêuticas se passam por saber profundo, que por si só resolvem casos complexos e atestam a perícia técnica do advogado, sem fazer menção ao modo como o próprio magistrado instrumentalizou a hermenêutica jurídica, e quais eram as suas convicções para ter optado por essa linha de argumentação na hora de sentenciar. A seriedade que mantém a legitimidade do Direito deve ser preservada custe o que custar.

Os vereditos emitidos pelo poder judicial acabam por identificar-se com uma visão impessoal, "de cima", incomunicável e inconfundível com as perspectivas particulares dos agentes sociais singulares. O que se tem é a própria manifestação da visão geral e soberana do Estado (BOURDIEU, 2009, p. 236). A proximidade com o poder coloca o jurista em uma posição dúbia: por um lado, torna-se símbolo de densas transformações sociais, propondo leituras novas para normas jurídicas que já não mais se encontram em consonância com as necessidades levantadas pela sociedade, por outro lado, o jurista encontra-se intimamente ligado ao poder soberano, tomando para si o delicado ofício de legitimar a ordem vigente a partir da interpretação de disposições normativas que devem fazer valer a voz do Estado, ainda que por meio da fala do juiz monocrático, ou órgãos colegiados, sendo todos esses meandros dissimulados a partir da racionalização do discurso jurídico. O jurista não apenas cria e reforma o seu mundo, como assegura a sua permanência:

O direito é, sem dúvida, a forma por excelência do poder simbólico de nomeação que cria as coisas nomeadas e, em particular, os grupos; ele confere a estas realidades surgidas das suas operações de classificação toda a permanência, a das coisas, que uma instituição histórica é capaz de conferir a instituições históricas. (BOURDIEU, 2009, p. 237)

A ênfase na atividade classificatória realizada pelo jurista não é sem sentido, já que para Bourdieu nós percebemos e compreendemos o mundo ao nosso redor via esquemas construídos social e historicamente. Mas ele quis evitar posições extremas e desbalanceadas: nem o sujeito, por si só e através das suas categorias, constrói e impõe sentido ao mundo, nem o sujeito é completamente estruturado pelas estruturas sociais que lhe circundam. Ocorre que os esquemas acabam por contribuir com a construção do sentido das coisas que se encontram no mundo, mas necessitam de uma correspondência com as estruturas preexistentes. Como ao Direito é dada a função performática de criar coisas através da nomeação, impor hierarquias e fazer valer a ordem, encontra-se justificado o porquê de Bourdieu considerar o Direito como "forma por excelência do poder simbólico de nomeação".

Longe de ser um produto de dedução lógica, essas ordens hierárquicas decorrem da própria interpretação que o jurista realiza a partir do seu mundo, como também partindo de uma leitura sobre a "vontade" do ente estatal soberano. Contudo, a exposição do caráter contingente da interpretação poderá subtrair ao discurso do jurista uma vantagem retórica de grande importância, a saber, o peso da cientificidade, do distanciamento e do rigor que encontramos na lógica, mas desconfiamos que exista na interpretação. Ao invés de esclarecer que, ao falar do mundo, ele assim o faz conforme a sua leitura, o jurista pula essa etapa, sentindo-se mais a vontade ao desvelar a ordem que há no mundo, e mostrar o quanto essa ordem que ele enxerga é legitima, necessária e que precisa ser defendida.

O que se encontra por trás da hermenêutica jurídica, o que lhe é específico e distinto, é a sua dimensão performática que dela não pode ser dissociada. A interpretação realizada pelo jurista, ou pelo juiz, não apenas constata um sentido de uma suposta norma jurídica: ela transforma o entendimento sobre essa norma, podendo também intervir diretamente sobre um estado de coisas preexistentes, modificando-os a partir da força da lei. É por isso que a interpretação jurídica é o momento central na decisão judicial, já que é neste momento onde o texto é semanticamente conduzido para provocar os efeitos esperados.

A generalização universalizante e o jogo das dissimulações acaba por colonizar a moralidade da sociedade. Interpretando a ordem social e construindo a mesma, as instituições sociais passam a serem juridificadas, identificando-se a normalidade com aquilo que prescreve o Direito, ou seja, a normalidade jurídica. Práticas que se desviam, ou destoam daquelas que são prescritas pelo jurista acabam por serem interpretadas como deslocadas, ou desviantes. A simples não correspondência com o que é prescrito pelo jurista já é suficiente para despertar suspeitas quanto a procedência desses atos. Essa dimensão universalizante do Direito, que encara todo e qualquer fenômeno social tão somente enquanto algo que se relaciona com o Direto, não tem como evitar terminar em um etnocentrismo:

Vê-se que a tendência para universalizar o seu próprio estilo de vida, vivido e largamente reconhecido como exemplar, o qual é um dos efeitos do etnocentrismo dos dominantes, fundamentador da crença na universalidade do direito, está também na origem da ideologia que tende a fazer do direito um instrumento de transformação das relações sociais e de que as análises precedentes permitem compreender que ela encontre a aparência de um fundamento na realidade... (BOURDIEU, 2009. p.247)

O etnocentrismo produz percepções contraditórias sobre o Direito e os juristas. Ao visualizarem os acontecimentos externos a partir de suas idiossincrasias, eles são vistos como herméticos, excessivamente formais, ou conservadores. Não necessariamente representariam o que há de pior em termos ideológicos dentro do espaço social, mas é alguém que por habitar a indefinição, pode se beneficiar tanto das mais radicais mudanças sociais, como também da conservação do status quo. Ao repudiar o elemento ideológico no Direito mediante uma ênfase na técnica das resoluções do conflito, a ideologia acaba sendo apenas mais um elemento latente no processo de interpretação e decisão.

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Sobre o autor
Leonardo Monteiro Crespo de Almeida

Professor, Mestrando em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (FDR), Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Bacharel em Direito pela Faculdades Integradas Barros Melos (FIBAM)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Leonardo Monteiro Crespo. O império da interpretação enquanto poder simbólico.: A instrumentalização da hermenêutica jurídica a partir do pensamento de Pierre Bourdieu. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3035, 23 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20197. Acesso em: 19 abr. 2024.

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