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Diálogos entre Democracia e Direito

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O aparato ‘legal’ e ‘judicial’ controlados pelo Estado, assim como o religioso e militar, dão-nos a falsa impressão de promover a paz, a justiça e a segurança, quando, verdadeiramente tem o condão de garantir que cada qual fique em seu lugar, que não se insurjam contra a ordem que cria mecanismos sociais para legitimar e validar o discurso dominante há séculos.

Resumo:

Tema revisitado por muitos pensadores ao longo de tantos anos, a Democracia é mais que um regime ou um termo, é o fundamento maior do ‘modelo’ de Estado inaugurado no século XVIII com a Revolução Fancesa e, até hoje, mundialmente consagrado por vários estadistas, principalmente os ocidentais. Objeto constante de análise, o termo Democracia traz em si, a própria ressignificação do Direito, antes, limitado à sua esfera conceitual e pequeno campo de aplicação social, dada a concepção religiosa a que estavam submetidos tanto o Direito quanto a Justiça, e por não ser o Direito entendido enquanto Ciência, mas sim, um "apêndice" do pensamento filosófico até o século XIX, momento em que o Direito, assim como outras áreas do saber, ganharam status de Ciências. Assim, no presente artigo pretende-se discutir a Democracia na concepção moderna e sua relação dialógica com o Direito dentro de suas variáveis e à luz da teoria democrática revisitada.

Palavras chaves: Diálogo, Democracia, direito, justiça, sociedade

Resumé:

Sujet revisité par beaucoup de penseurs, au long d'autant années, la Démocratie est plus qu'un régime, ou un terme, est le fondement le plus grand du modèle d'État inauguré dans le siècle XVIII avec la Révolution Fancesa et, jusqu'à aujourd'hui, mondialement consacré par plusieurs hommes d'État, principalement les occidentaux. Objet constant d'analyse, le terme Démocratie il apporte, dans lui, une nouvelle signification elle-même du Droit, plutôt, limité sa sphère conceptuelle et petit champ d'application sociale, donnée conception religieuse à lalaquelle ils étaient soumis de telle façon le Droit combien la Justice, et ne pas être le Droit compris comme Science, mais, une "annexe" de la pensée philosophique jusqu'au siècle XIX, moment où le Droit, ainsi qu'autres secteurs du savoir, ont gagné du statut de Sciences. Ainsi, dans présent article il se prétend discuter la Démocratie dans la conception Moderne et sa relation dialogique avec le Droit à l'intérieur de leurs variables et à la lumière de la théorie démocratique revisitée.

Mots clés: Dialogue, démocratie, droit, justice, société

"Acaso quem odeia o direito governará? Quererás tu condenar aquele que é justo e poderoso?"

(Livro de Jó: 34,17)


1. Introdução:

Entre ficção e realidade existem caminhos que me revelam e me confundem. São, a princípio, caminhos que me fazem pensar no que de fato é real mas, também, no que de fato é ficção e se há ou não limites entre estes termos quanto à sua existência [01] no mundo dos sentidos. Todavia, são esses caminhos que me revelam as dúvidas – parceiras que, ora me auxiliam, ora me deixam apreensivo – talvez porque, na dúvida, procuro repostas concretas, absolutas para tudo o que é relativo, até mesmo o que me parece real. Entre a(s) realidade(s) e a(s) ficção(ões) prefiro a(s) última(s), porque me dá(ão) liberdade para refletir sobre tudo o que se me apresenta enquanto consistente e existencial.

Dessa maneira, no campo da ficção deleito-me com a Literatura, porque ela, desde cedo, me causa fascínio, e, também, muita estranheza. Fascínio, porque na ficção literária tudo se mostra possível, realizável e existente. Estranheza, porque toda ficção traz em si elementos que a mim, representam o "ilimitado", à medida que permite-me estabelecer nexos – também ilimitados – entre o mundo sensível (real) e o mundo das idéias [02], todavia não tão visíveis aos meus sentidos. O universo dos sentidos a que estamos ligados depende de nossa compreensão e sensação dessa ‘realidade’. Politzer afirmara que, "a sensação é, com efeito, um reflexo parcial da realidade, que não nos dá, da realidade, senão os seus aspectos exteriores" [03].

Assim, as obras da ficção conseguem conduzir-me por caminhos reflexivos e exercícios hermenêuticos muito maiores que determinadas teorias que pretendem traduzir o real, mas mascaram-no. E entendo que o real nem sempre "é", ou seja, ele não é aquilo que tem permanência, mas sim, aquilo que, naquele instante – num determinado momento –, está posto dentro de um espaço–lapso temporal, porque o real, talvez nem exista, mas se faça existir enquanto algo fluido e solúvel. Talvez o real seja muito mais aquilo que percebo do que o que eu pretendo que seja ou desejo sentir. Ou, se assim entendermos, como afirmara Engels, "o mundo material, perceptível pelos sentidos ao qual pertencemos, é a única realidade" [04]A realidade, portanto, seria o sensível, mas de fato, entre a realidade e a ficção existe um ‘segredo’ que precisamos desvendar.

Kant nos revela que "é a idéia de que há um ‘segredo’ das coisas e que esse ‘segredo’, nos escapa; é o falso neutralismo imposto à escola burguesa, como se fosse possível manter a balança igual entre a verdade e o erro, a ciência e a ignorância"... E mais, "Kant parte da distinção entre a coisa em si, inconhecível, e a coisa para nós, a aparência (a aparência seria aquilo que entendo enquanto sensível ou perceptível), que resulta do choque produzido sobre os nossos órgãos dos sentidos pela coisa em si." [05] Para kant, "O arbítrio humano...é de índole tal que é, sem dúvida, afetado pelos impulsos, mas não determinado; portanto, não é puro por si (sem um habito racional adquirido), mas pode ser determinado às ações por uma vontade pura [06]"

Desta maneira, nessa seara, nos limites da ficção e do real, temos uma obra prima da Literatura Inglesa e também universal, neste caso, o conto de Lewis Carrol: "Alice no país das Maravilhas [07]", obra de ficção do século XVIII, cuja primeira edição foi publicada em Londres, no ano de 1865 e que, de lá para cá, tornou-se um bestseller traduzido e publicado em vários idiomas, inclusive no idioma tupiniquim, tornando-se muito mais conhecido em razão das versões cinematográficas que atraem, em especial, o público infantil, pela sedução aos personagens, que mesmo pelo enredo, o qual traz em si uma profunda complexidade acerca do "não dito", daquilo que está por trás das imagens e das ações, que se esconde e se protege do senso comum. [08]

Para esta reflexão, há um momento em especial na obra, dentre tantos outros, que me utilizarei pois ele me leva a refletir sobre as situações de inconstância e de mudança impostas às pessoas e, também, às sociedades com o advento dos ideais plenos de igualdade, fraternidade e liberdade, mas também o de Democracia enquanto o resumo e a ampliação de todos esses ideais. A liberdade, este primeiro e último ideal, é, talvez, o ideal maior do conjunto de ideais iluministas difundidos na "modernidade". Liberdade inspira e conota Direitos, como também inspira a igualdade e a fraternidade num conjunto determinado de ideais iluministas que ‘sobrevivem’.

Na obra, a "liberdade" é regra, e todo preço a ser pago por ela vale à pena, embora esta regra não seja levada a sério, no todo, no mundo real. Um dos momentos mais simbólicos e que pode ser visto e analisado na segunda versão do clássico para o cinema, é o momento em que a jovem Alice, já adolescente, e ao se sentir coagida por seus familiares e por seu noivo durante um pedido oficial de casamento, sai correndo pelo jardim e acaba caindo num buraco (a toca do coelho), indo parar no surreal "país das maravilhas", um mundo subterrâneo, onde a jovem supostamente estivera quando criança, e cujas cenas vividas na infância, apareciam constantemente em seus sonhos, fazendo-a crer que aquelas lembranças eram resultantes de produtos de sua mente. E talvez fossem.

Mais uma vez, ali, no país das maravilhas, após tanto tempo, Alice vê-se diante de aventuras e desafios, dentre os quais a difícil tarefa de enfrentar a prepotente e "malvada" rainha vermelha e seu temível dragão protetor "Jaguadarte", que criara uma espécie de tirania contestada por muitos, mas não publicamente. Fato que só viria a acontecer quando Alice alia-se aos demais insatisfeitos e, na penúltima cena, após uma exaustiva batalha entre dois reinos inimigos, ela, Alice corta a cabeça do temível dragão. Com isto, a rainha vermelha vê-se desprotegida com a morte de seu protetor e que lhe mantinha no poder, fortalecendo e justificando o seu reinado de maldades. Ao que parece, toda vez que era desafiada, a rainha mandava cortar as cabeças de seus súditos insubordinados ou desafiantes a fim de intimidar aos demais.

Morto o dragão, a ‘rainha vermelha’ ordenou a seus soldados que matassem a Alice. Mas, para a sua surpresa, eles não a obedeceram [09] e baixaram as armas em sinal de rendição àquele momento simbólico. Em seguida, como num passe de mágica, a coroa que estava na cabeça da "Rainha Vermelha" voa para a cabeça da rainha branca que, coroada, automaticamente inicia o julgamento da "rainha má" e, também, de seu fiel escudeiro que, diante de uma nova rainha, pede-lhe compaixão, mas é condenado à mesma pena e a viver por toda a eternidade ao lado da "rainha vermelha".

Na obra, verifica-se que, em razão desse evento "simbólico" ocorre a transição de poderes, momento em que "Irasebet de Carmesim", a "rainha vermelha" é presa e julgada e condenada ali mesmo, diante de todos, por seus crimes praticados no mundo subterrâneo. Sentenciada, sem direito à defesa, de imediato, fora-lhe aplicada uma pena alternativa pela "rainha branca", que, ao invés de usar a regra e condenar a rainha vermelha à pena de morte (cortar-lhe a cabeça, como mandava o costume), condenou-a ao banimento e ao exílio em "marginália", local – provavelmente outro universo ou mundo paralelo – onde nenhum condenado havia de se comunicar por toda a eternidade.

Vencedora, Alice recebeu da nova rainha o seu preito de gratidão por tão grandioso feito no "país das maravilhas", ganhando com isso, o direito de escolher entre ficar naquele mundo ou retornar ao seu "mundo real". De volta, Alice percebe que naquele relativo lapso temporal em que esteve desaparecida, era esperada por seu noivo, seus parentes e convidados que já estavam aflitos com seu repentino desaparecimento, embora se percebesse que fora este, um curto tão curto, no sentido do universo real, como se o tempo houvesse parado no mundo real em razão de sua permanência no país das maravilhas, local onde o ‘tempo corria’ diferentemente do nosso.

Questionada sobre seu sumiço, Alice afirmara que havia se acidentado ao cair num buraco. Em seguida, após se explicar, Alice passou a resolver todas as questões que antes lhes afligia. Pediu ao noivo que a desculpasse, mas que não mais se casaria mais com ele. Deixando-o, dirigiu-se à sua irmã e à mesma disse que: "a vida era sua e assim ela decidiria sobre a própria vida"; ao cunhado adúltero, avisou-lhe que estaria "de olho nele" e que este tratasse a sua irmã com respeito. À sua tia, dissera que "não existiam príncipes" como ela acreditara e que a mesma precisaria se tratar com urgência, mandando-lhe procurar um médico.

Por último, olhando para o seu ex-sogro, Alice convida-o para uma conversa de negócios e encerra o diálogo lançando-se numa empreitada comercial com o mesmo, realizando uma viagem de negócios à China, algo bastante raro e incomum para mulheres de seu tempo. Alice, portanto, tornara-se uma mulher de negócios e foge à regra num período e numa sociedade cujos papéis de gênero estavam historicamente bem definidos. A saber que, décadas antes, em meados do século XVIII, esposas eram vendidas nas ruas de Londres e as diversas novas leis criadas para regular a sociedade, eram negadas e rejeitadas em razão da força dos costumes. [10]

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2. Conduzido "Pelas mãos de Alice [11]"

O leitor deverá estar se fazendo algumas perguntas, dentre as quais: Qual a relação entre a obra aludida e a temática deste artigo? Não se trata de uma forçação de barra, ao tentar estabelecer relações entre o clássico da literatura universal, o Direito e a Democracia, a Justiça, a Liberdade e o Direito? Acredito que não! Encaro este exercício como algo natural, embora desafiador, principalmente para ser esgotado somente em um artigo. Antes, lembremo-nos, da intrigante e inovadora tarefa de Luhmann, que se utilizou de conceitos advindos de outras áreas do saber e das ciências – interdisciplinariedade –, como a biologia, por exemplo, e das mais atualizadas e inovadoras tecnologias, como a cibernética e a neurofisiologia para explicar a Sociedade, mas também o Direito.

Para ele, os tradicionais conceitos da sociologia foram fundamentais para o Iluminismo, pertencendo atualmente ao que chamou de "velho pensamento europeu", mas não conseguem resolver os problemas da sociedade contemporânea. Seria necessário, portanto, um "iluminismo do iluminismo", com novos conceitos adequados à complexidade da sociedade moderna. [12]

Assim, tal exercício não tem fugido à proposta do método interdisciplinar da análise ‘Luhmanniana’, ao contrário, pretende estar mais próxima da idéia do que vem a ser os sistemas, e o Direito, enquanto um desses Sistemas, será támbém, nosso objeto de análise por meio da análise literária e sociológica. Então vejamos:

A obra, cujo título original é "Alices Adventures in Wonderland", e modificada para o Cinema sob o título de "Alice in Wonderland", foi criada no século XIX, pelo escritor inglês Lewis Carrol e retrata parte do cotidiano da sociedade londrina, na Inglaterra, portanto, no período e no local em que nascera e se difundira parte do pensamento iluminista, que tanto ali, quanto na França, promoveram mudanças importantes sobre as Ciências e nas relações de trabalho com o advento das I e II Revoluções Industriais, assim como os demais fatos que desencadearam outros eventos emblemáticos na contemporaneidade.

Assim, inicialmente, fui tomado pelas "mãos de Alice", que me conduziu ao seu universo imaginário e que, posteriormente me levou a realizar o exercício de analisar o sentido político e sociológico de instituições presentes no filme, como o Direito por exemplo, não só na obra que servi-me para iniciar ou introduzir-me neste artigo, mas também a partir do "significado e da sginificante" [13] que essas instituições tem na construção do sentido real mas, também, ficto de Justiça e de Democracia.

A princípio, a obra, em seu sentido aparente, trata de fantasias oníricas e lúdicas acerca da linguagem e da realidade, e porque não dizer "realidades". De início, temos a impressão de que o autor explora a aparente ausência de sentido nas sentenças que são gramaticalmente corretas e cujo enredo é construido sob uma narrativa carregada de "não ditos", de códigos que a torna complexa demais para crianças ou até mesmo para adultos que não se propõem a desnudar a obra.

Também, vale lembrar, que o autor da obra, Carrol, é considerado um dos pioneiros na construção do processo de pesquisa de uma nova ciência do discurso, isto por meio da simbolização, ou seja, o processo que procura expressar o raciocínio por meio de um sistema simbólico. A análise desse sistema simbólico pode ser entendida a partir da análise da obra feita por Bruna Perrela Brito, em seu artigo intitulado: "Alice no País das Maravilhas: Uma Crítica à Inglaterra Vitoriana", em que a referida autora afirma que:

Quando se volta o olhar para a obra de Lewis Carroll, percebe-se que ela, pelo menos aparentemente, não se enquadra em nenhum dos dois tipos de textos produzidos pela época vitoriana, sendo o autor considerado, em seu tempo, um escritor que escrevia para o entretenimento das crianças. Contudo, um olhar mais atento e analítico sobre suas obras, especificamente sobre Alice no país das maravilhas, revela que este livro é, em sua essência, uma crítica à condição do indivíduo de sua época, sufocado por inúmeras exigências e regras sociais. Carroll mostra, por meio da fuga da realidade para um mundo mágico, uma maneira de escapar, ainda que por meio da fantasia, da fixidez vitoriana e de sua moral rígida. O autor será, portanto, considerado um indivíduo que faz parte da sociedade e que, ao mesmo tempo em que é influenciado por ela, tenta influenciá-la por meio de sua obra. [14]

Através de forte uso de um sistema simbólico, a obra fascina e intriga, pois é aparentemente destinada às crianças, embora, traga ocultos, questionamentos de toda espécie, sejam lógicos ou semânticos, problemas de natureza psicológica, identitária mas, também, abordagens de cunho político. E é nesta última abordagem que vamos dispensar nossa maior preocupação.

Ainda que de forma oculta, o sentido político que o clássico se nos revela e apresenta é uma luta pela afirmação de princípios como as liberdades individuais e coletivas e temas, como as formas de governos e constantes lutas por direitos políticos, em um mundo de regimes autoritários, mas com grande possibilidade de se fazer nascer a Democracia e outras formas institucionalizadas de poder.

A proposta da obra, segundo Brito está na análise de que,

alguns aspectos do esquema narrativo principal de Alice e da análise da subversão de um símbolo da sociedade inglesa vitoriana nesse livro, pretende-se mostrar que Alice pode ser lido como uma crítica a essa opressão moralizadora e pedagógica da literatura e da sociedade inglesa vitoriana, que desejava controlar o indivíduo, ditando padrões fixos e pré-definidos. [15]

O contexto histórico da obra é definidor quando se analisa o século XIX daquela Europa de Alice. Aquele momento é de fato, um momento de descobertas científicas, em que teorias se firmam, dentre elas o positivismo e o evolucionismo, mas também o socialismo, opondo-se ao ‘modelo’ capitalista e à proposta liberal burguesa de economia e sociedade.

É o momento em que a Ásia mas, também, e principalmente a África passa a ser novamente alvo de exploração de mão-de-obra, não mais escrava, mas barata, e também, fonte principal de riquezas naturais, das matérias-primas para a pujante indústria européia, que embora estivesse beirando crises políticas e econômicas, via no continente africano oportunidades para o expansionismo e a implementação de uma nova etapa do capitalismo sob os moldes euopeus.

A análise histórica da obra nos permite afirmar que aquele século em que se desenvolveram as Ciências Humanas e Socais, se desenvolveram, também, o imperialismo e o neocolonialismo afro-asiático; é o período em que as sociedades européias enfrentaram crises isoladas, muitas de ordem interna, mas também vislumbraram avanços em diversos setores, como na Indústria e nas Ciências, por exemplo. Na Inglaterra da ‘Era Vitoriana’, marcada por um período de efetivo controle social, incertezas e extremo rigor, não seria diferente do cotidiano vivido no ‘País das Maravilhas’.

Desta maneira, o mundo que Alice vê ou cria é o mundo ideal, para uma Inglaterra que ainda pretendia continuar impondo-se internamente, enquanto nação próspera e progressista, mas sem perder a sua tradição, sendo o que era desde as suas revoluções liberais, mas também, diante do mundo. Portanto, ressignificando-se para outras nações e povos que cresciam paralelamente a ela, todavia, que já aspiravam um regime de governo diferente do conservador e tradicional regime monarquista/parlamentarista britânico.

Destarte, o primeiro e grande ponto a ser analisado, como dissera antes, é o sentido político do clássico. Em especial, o ideal do princípio da "liberdade" tão presente e ratificado no filme. A liberdade é, talvez, o sonho maior de qualquer ser humano em todas as épocas. A liberdade é princípio, meio e fim, para os ‘súditos’ de um Estado. E, conforme nos orienta Bobbio ao tratar das definições sobre Liberdade, afirma-nos que:

As definições descritivas de Liberdade caracterizam situações identificáveis empiricamente e podem ser aceitas por qualquer pessoa, independentemente dos pontos de vista normativos de cada um no que diz respeito à Liberdade (§§ I-IV). A Liberdade em sentido valorativo (§§ V-VIII) é utilizada mais a nível de exortação do que de descrição; conseqüentemente, apresenta diferentes significações, conforme os diferentes ‘modelo’s éticos que inspiram os autores. [16]

O ‘País das Maravilhas’ para Alice, era, além de seu refúgio, o local onde a liberdade podia ser exercitada quase que livremente, onde Alice manifesta o seu livre arbítrio, embora saiba que será constantemente vigiada, assim como no mundo real, porém, sua consciência de liberdade em criar o ‘destino’, ou de lhe alterar a ordem e o seu próprio caminho a partir de suas escolhas [17], lhe confere o status que o Direito já possui, o de auto-criar-se, a autopoiese. Porque o Direito, a partir da teoria sistêmica, e, ao contrário do que pensavam, pretende ter vida própria, e a tem, como afirmara Luhmann em sua ‘Teoria dos Sistemas’, ao que se imaginou, ser o mesmo, produto ou artefato de uma construção social, o Direito para ele (Luhmann), é autopoiético e não produto de uma teoria social-econômica, em oposição à interpretação marxista do Direito.

Se, no país das maravilhas, os seres inanimados ganham vida, porque Alice é livre para pensar e suas escolhas tem um sentido e um significado para si, mas que interdependem no mundo ao seu entorno, no mundo do Direito isto não é diferente. Podemos afirmar categoricamente que o Direito não só é autocriador como ele é o fio condutor que toma forma e vida e cria a cena e os papéis para sua autoreformulação.

É o direito – enquanto ‘corpo imperativo’ e ‘universo hermenêutico [18]’ que tem vida própria e ‘reina’ – que conduz e se conduz sob o falso espectro de um ‘Espírito das Leis’ capaz de influenciar a tudo e a todo um ‘Sistema’ social e que se ressignifica e se redefine constantemente como um organismo em constante mutação [19], um organismo sistêmico que não se pretende estar pronto, mas em constante transformação, sob a premissa da ordem, mas que trabalha na ‘desordem’, sim, por que as coisas que estão em ordem não mudam. E, portanto, esta aparente estabilidade do Direito, nada mais é que um mecanismo dissuatório que ora conduz a um caminho, ora a outro. E é aí que invocamos, novamente, o construto de quebra de valores, regras e conceitos morais, tal como ocorria no ‘País das Maravilhas’, à medida que Alice transgridia as regras, e as coisas tomam nova forma, mas também as perdia em razão da não aceitação àquele sistema de coisas. Senão vejamos na análise literária a seguir:

Enfrentar a Rainha é uma maneira de se opor ao sistema, uma vez que a rainha é a representante dele, ou seja, esse ato é a concretização da busca da libertação de uma rigidez, que diz o que deve ser feito. Alice, uma criança, enfrenta a Rainha e põe "em xeque" o seu poder, no primeiro trecho, e o seu julgamento, no segundo. Em uma obra que pode ser lida como a representação da fuga da realidade para um mundo de fantasia livre das regras vitorianas, um mundo que critica tal realidade, enfrentar o poder real e não ser punido é o ápice da libertação da rigidez e da opressão. E Alice é a representante de tal desejo, concretizando-o no mundo da fantasia, livre da punição que esse desrespeito com a autoridade da rainha traria como conseqüência. [20]

Tanto no ‘País das Maravilhas’, quanto no mundo real, dos sentidos, romper com as regras, é antes, negar o próprio Direito Positivado. É negar ao que não é natural, mas sim, socialmente definido enquanto comportamentalmente aceito. É negar a própria liberdade individual de poer decidir em estar atrelado à liberdade de terceiros, como fazem os demais seres vivos, ditos ‘não racionais’.

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Sobre o autor
Cleidivaldo de Almeida Sacramento

Mestre em História-UFBA;Pós-graduado em História-UEFS, Educação - FTC; Direito Administrativo-FIJ;Professor de Direito e Antropologia Jurídica das Faculdades São Salvador e UNIJORGE;Coordenador do Núcleo de Pesquisas da Faculdade São Salvador;Servidor público do Estado da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SACRAMENTO, Cleidivaldo Almeida. Diálogos entre Democracia e Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3023, 11 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20213. Acesso em: 28 mar. 2024.

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