Artigo Destaque dos editores

A recepção ou não do inciso II, § 3º, do art. 138 do CP no crime de calúnia frente aos princípios da ampla defesa e da reserva legal

Exibindo página 1 de 3
13/10/2011 às 10:02
Leia nesta página:

A exceção da verdade no crime de calúnia não foi recepcionada pela Constitução de 1988. Faz-se necessária a aprovação de projeto de lei para alterar a norma penal.

RESUMO

O presente trabalho pretende abordar a recepção ou não do inciso II, parágrafo 3º do Art. 138 do CP no crime de calúnia, conjugados com os princípios da Ampla Defesa e da Reserva Legal, buscando apontar possíveis incongruências desse normativo frente à atual Constituição. Visa defender ainda a aprovação de projeto de lei, o qual busca alterar a norma penal ora citada.


INTRODUÇÃO

Foi-se o tempo em que ao homem era dado agir conforme sua vontade e seus instintos. O que outrora somente era freado por princípios morais, hoje o é pelas normas principiológicas escritas. Advogava anteriormente à sociedade moderna a possibilidade absoluta e irrestrita de efetuar tudo aquilo que não aberrasse a razão. No que toca à defesa de interesse próprio, o império da força comandava as atitudes.

Hodiernamente, com a transição/mediação entre "ser individual" e "ser social", impõe-se que algumas regras devam ser seguidas, e esse seguimento deve se dar através de normativos previamente estipulados. Fulcrado nessa trajetória é que o presente trabalho se apresenta com o intuito de discorrer sobre o princípio da Ampla Defesa e da Reserva Legal, restringindo-se ao inciso II, parágrafo 3º do Art. 138, conjugado com o inciso I do Art. 141, ambos do Código Penal, buscando por na berlinda a sua recepção frente à atual Constituição Federal, mercê sua aparente incongruência com os Standards supra mencionados.

O primeiro capítulo trará noções acerca do conceito de princípio e seu papel no ordenamento jurídico. De forma mais específica, assentar-se-á considerações sobre os princípios da Ampla Defesa e da Reserva legal.

No segundo capítulo será analisado o conceito de honra, bem como suas múltiplas variantes, ressaltando-se a sua proteção diante do ordenamento jurídico atual.

Já no terceiro capítulo serão abordados os crimes contra a honra, especialmente o crime de calúnia.

Por fim, o quarto está reservado à análise da "exceção da verdade", bem como da recepção das normas existentes frente a uma Constituição vindoura.


CAPÍTULO I - Princípio da Ampla defesa e da Reserva Legal: conceituação e preceitos legais

1.Conceito de princípio

O Atual Código Penal, em seu capítulo V, descreve os "Crimes contra a Honra", dentre os quais se inclui a calúnia.

Art. 138 "Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa". Em seu desdobramento, pondera a possibilidade do uso do instituto da "exceção da verdade", assim como sua restrição frente a determinadas pessoas, verbis:" (...) "§ 3º - Admite-se a prova da verdade, salvo(grifamos): (...) II - se o fato é imputado a qualquer das pessoas indicadas no nº I do art. 141".

Já o Art. 141, inciso I, faz referências às pessoas acima referidas "I - contra o Presidente da República, ou contra chefe de governo estrangeiro".

Assim, de forma sintética, temos os crimes contra a honra, frente aos quais, como regra, cabe a "exceção da verdade", (instituto este posteriormente abordado) sendo esta não aceita unicamente diante das pessoas elencadas no inciso I do Art. 141 do CP. Em outros termos: o instituto da "exceção da verdade", não poderá ser usado quando estamos diante do Presidente da República ou de Chefe de Governo Estrangeiro.

Para uma melhor compreensão, necessário que tenhamos uma noção geral de determinados institutos, dentre estes os princípios da Ampla Defesa, Reserva Legal, Exceção da Verdade, Honra, Calúnia e outros que se façam necessários.

Na concepção ordinária, a palavra princípio tem sentido denotativo de início, origem. Tal se faz sentir, inclusive, nos próprios ditames bíblicos [01]. Na versão jurídico-normativa a sua variante pluralizada possui significação diversa, dando a ideia de preceitos ou de regras frente aos quais as normas encontram amparo.

Precisas as palavras de De Plácido e Silva, para quem "Princípio é amplamente, indicativo do começo ou da origem de qualquer coisa. Princípios, no sentido jurídico, notadamente no plural, quer significar as normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa".

Consignando, ainda que [02] "Princípios jurídicos, sem dúvida, significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio Direito. Indicam o alicerce do Direito".

Noutro vocábulo, com similar síntese, tem-se o pensamento de Coqueijo Costa, para quem [03] "Princípio fundamental é algo que devemos admitir como pressuposto de todo ordenamento jurídico e aflora de modo expresso em múltiplas e diferentes normas, nas quais o legislador muitas vezes necessita mencioná-lo".

Os princípios fundamentais brotam e geralmente se encontram estampados nas Constituições, servindo de balizas para aquilo que vier a ser disciplinado pela legislação ordinária, seja ela anterior (caso de recepção da norma), seja ela posterior (caso de norma (in) constitucional).

A título de adendo, cabe anotar que existem princípios que, ainda que não se encontrem expressos no texto constitucional, devem ser levados em conta, haja vista representarem adágios universais. Assim, princípios acabam por delimitar o âmbito da norma, servindo de referência no desdobramento dos casos específicos a serem tutelados. Estando a norma em desacordo com aqueles, carregam o germe da inconstitucionalidade ou da não recepção.

Não se torna infecundo afirmar que toda a "arqueologia" do Estado de Direito tem como nascedouro a Constituição Federal (estruturada em princípios), norma esta fundamental para regulamentar as múltiplas relações sociais e direcionar os arranjos da ordem penal. Desse modo, o teor do Direito Penal e suas normas sancionatórias, devem estar a ela atrelados e acima de tudo, subordinados a tal. Qualquer desvio, como dito acima, torna a norma infraconstitucional maculada com o vício da inconstitucionalidade caso superveniente àquela, ou não recepcionada ao ordenamento, caso seja anterior à promulgação da constituição.

Apontada uma noção facial daquilo que vem a ser princípio, cumpre assentar ponderações atinentes aos princípios da Ampla Defesa e da Reserva Legal, a fim de considerarmos esses frente à CF/88 e ao Art. 138 do CP.

1.1.. Princípio da Ampla Defesa

O princípio da Ampla Defesa encontra guarida no Art. 5º, LV da CF/88, que dispõe: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes." Tal princípio é corolário do contraditório, encontrando-se estritamente ligados, pois efetivamente um depende da observância do outro.

Nesse sentido, Ada Pellegrine GRINOVER, Antonio Scarance FERNANDES e Antônio Magalhães GOMES FILHO lecionam [04]:

Defesa e contraditório estão indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório (visto em seu primeiro momento da informação) que brota o exercício da defesa; mas é esta – como poder correlato ao de ação – que garante o contraditório. A defesa, assim, garante o contraditório, mas também por este se manifesta e é garantida. Eis a íntima relação e interação da defesa e do contraditório.

O princípio do Contraditório tem seu núcleo na necessidade de confrontar as partes, dando ciência e oportunidade ao polo adverso, seja para exercer um ato formal, seja para exercer um ato material. A todo ato praticado por um opositor, corresponde o surgimento de uma faculdade à parte adversa. Possui esta, ou ao menos deveria possuir, o direito de exercer amplamente a sua defesa contraditando o que a outra parte suscita.

Assim, o constituinte originário e derivado buscaram dar garantias para quem, tendo seu direito atentado, possa se valer de todos os meios possíveis na busca de provar sua tese frente os fatos que estão postos.

1.2.Princípio da Ampla Defesa frente aos tribunais

Do mesmo modo, tal princípio recebe atenção especial frente aos tribunais. Nesse tocante seguem julgados do Superior Tribunal de Justiça, verbis [05]:

HABEAS CORPUS. INÉPCIA DA DENÚNCIA. ARTIGO 89 DA LEI Nº 8.666/93. ATRIBUIÇÃO GENÉRICA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA. CONSTRANGIMENTO. ORDEM CONCEDIDA.

1. A denúncia deve descrever a conduta do agente, de modo a possibilitar o exercício da ampla defesa. 2. Se o fato ilícito não for descrito adequadamente, limitando-se o acusador a mencionar que o agente concorreu para a prática do delito, a ação deve ser trancada, por inépcia da denúncia. 3. Ordem concedida para trancar a ação penal.

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO PARA APRESENTAÇÃO DAS CONTRA-RAZÕES. NULIDADE. OCORRÊNCIA. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA. 1. O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento no sentido de que a ausência de intimação da defesa para apresentar contra-razões ao recurso do Ministério Público (art. 588 do CPP), interposto contra o não-recebimento da denúncia, viola os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. 2. Uma vez verificado que a paciente não teve oportunidade de apresentar as contra-razões ao recurso em sentido estrito, a melhor solução é abrir essa oportunidade para que ela possa exercer o seu direito à ampla defesa e ao contraditório, e assim regularizar a sua situação processual, direito concedido aos demais investigados e não a ela.

3. Ordem concedida para anular o julgamento do Recurso em Sentido Estrito 144.241.5/1, proferido pela 12ª Câmara do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, a fim de que seja dada a oportunidade à paciente de apresentar as contra-razões ao recurso. [06]

Na mesma trilha os julgados do Supremo Tribunal Federal avalizam o exposto:

E M E N T A: "HABEAS CORPUS" - DEFENSOR PÚBLICO QUE FOI INJUSTAMENTE IMPEDIDO DE FAZER SUSTENTAÇÃO ORAL, POR AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO PESSOAL QUANTO À DATA DA SESSÃO DE JULGAMENTO DO RECURSO DE APELAÇÃO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO - CONFIGURAÇÃO DE OFENSA À GARANTIA CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA - NULIDADE DO JULGAMENTO - PEDIDO DEFERIDO. - A sustentação oral compõe o estatuto constitucional do direito de defesa. (...) falta de intimação pessoal do Defensor Público para a sessão de julgamento do recurso de apelação interposto pelo Ministério Público, afeta, em sua própria substância, o princípio constitucional da amplitude de defesa.

[07]

EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA. ALEGAÇÃO DE OFENSA AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. HABEAS CORPUS CONCEDIDO (...)2. Firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de que "se o acusado, citado por edital, não comparece nem constitui advogado, pode o juiz, suspenso o processo, determinar produção antecipada de prova testemunhal, apenas quando esta seja urgente nos termos do art. 225 do Código de Processo Penal". Precedentes. 3. Ordem concedida.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos
(HC 96325 / SP - SÃO PAULO HABEAS CORPUS

Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA Julgamento:  19/05/2009           Órgão Julgador:  Primeira Turma

Parte(s) PACTE.(S): LUIZ ANTONIO ROCHA IMPTE.(S): DPE-SP - DANIELA SOLLBERGER CEMBRANELLI COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. [08]

Seguindo essa trilha, franqueado na esteira do garantismo constitucional, é que o presente trabalho visa a demonstrar que, na medida em que a "exceção da verdade" deixa de ser admitida quando determinadas pessoas estão envolvidas (Presidente da república e Chefe de Governo Estrangeiro) em um dos polos da ação penal, afronta de forma efetiva o princípio da Ampla Defesa.

1.3. Princípio da Reserva Legal Ou da Legalidade

O direito penal pós Iluminismo exige seus tributos. Dentre estes, impõe-se que a intervenção seja em pequena escala, sendo usado em última etapa. Afora isso, exige que, de forma absoluta ocorra punição dentro do campo legal, ou seja, crime há quando norma assim o diz. Em outros termos, todo crime e, por consequência a sua punição, deve estar esteado na reserva que a lei assim apresentar. Em verdade, o princípio da Legalidade não se dirige ao Estado e sim contra este. Sem incorrer em tautologia, o Estado "mutila-se", "acorrenta-se" para legitimar sua existência.

Como marco, o princípio da Reserva Legal procura adequar os comportamentos individuais ou estatais, às normas jurídicas legais. Com o advento do império da lei, busca-se limitar a vontade caprichosa do detentor do poder.

Nas colocações de Assis Toledo "O Princípio da Legalidade constitui uma real limitação ao poder estatal de interferir na esfera das liberdades individuais". [09]

Já para Damásio "O Princípio da Legalidade (ou da Reserva Legal) tem significado político, no sentido de ser uma garantia constitucional dos direitos do homem. Constitui a garantia fundamental da liberdade civil, que não consiste em fazer tudo o que se quer, mas somente aquilo que a lei permite", assentando que:

À lei e somente a ela compete fixar as limitações que destacam a atividade criminosa da atividade legítima. Esta é a condição de segurança e liberdade individual. Não haveria, com efeito, segurança ou liberdade se a lei atingisse, para os punir, condutas lícitas quando praticadas, e se os juízes pudessem punir os fatos ainda não incriminados pelo legislador. [10]

1.4.Princípio da Reserva Legal ou da Legalidade frente aos tribunais

Tudo o que fora consignado acima, vem explicitado de forma condensada no Art. 5º, inciso II da atual Constituição, segundo o qual "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei". Tal regra ganha especial atenção junto aos tribunais. Nesse pormenor seguem os seguintes arestos:

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. FURTO QUALIFICADO PELO CONCURSO DE AGENTES. APLICAÇÃO DA CAUSA DE AUMENTO DE PENA PREVISTA PARA O ROUBO PRATICADO EM CONCURSO DE AGENTES. INADMISSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL. PENA AQUÉM DO MÍNIMO LEGAL. ATENUANTES. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 231 DO STJ. REINCIDÊNCIA. ART. 61, I, DO CP. NEGATIVA DE VIGÊNCIA CONFIGURADA. NON BIS IN IDEM. AGRAVO IMPROVIDO. 2. Fere o referido dispositivo legal o decisum que, em nome dos princípios da proporcionalidade e da isonomia, aplica ao furto qualificado o aumento de pena previsto no § 2º do art. 157 do Código Penal, haja vista que, em obediência ao princípio da reserva legal, não cabe ao julgador criar figuras delitivas ou aplicar penas que o legislador não haja determinado. [11]

RECURSO ESPECIAL. DIREITO PENAL. HOMICÍDIO. PRONÚNCIA. QUALIFICADORA. MOTIVO FÚTIL. EXCLUSÃO. AUSÊNCIA DE MOTIVO NÃO SE EQUIPARA, À LUZ DO PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL, A FUTILIDADE. 1. Observa-se, na hipótese, que o juízo processante, ao afastar a qualificadora do motivo fútil, fê-lo mediante o cotejo do conjunto-probatório, ressaltando, expressamente, que "as provas produzidas não identificaram o motivo que ensejou o crime em questão." 2. Como é sabido, fútil é o motivo insignificante, apresentando desproporção entre o crime e sua causa moral. Não se pode confundir, como se pretende, ausência de motivo com futilidade. Assim, se o sujeito pratica o fato sem razão alguma, não incide essa qualificadora, à luz do princípio da reserva legal. 3. Recurso desprovido. [12]

O Princípio da Legalidade vem também explicitado no Art. 37, caput, da CF/88, que estabeleceu a vinculação de todo o agir administrativo à legalidade. Assim, a legalidade, como princípio da administração, significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei, e às exigências do bem-comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal.

Conforme veremos, a "exceção da verdade" é instrumento posto a disposição da parte ré como elemento de defesa. Essa nos crimes contra a honra, tem a oportunidade, através desse instrumento, de provar que aquilo que afirmou de fato se faz verdade.

Nada nega, nada desdiz. Ao revés, prossegue na sua empreitada inicial. Apenas insiste que seus atos iniciais são verdadeiros e por isso não cometeu crime algum, não respondendo dessa forma, pelo crime de calúnia. Nesse ato há uma mescla de defesa e acusação. Defesa quanto ao fato de jamais ter cometido crime contra a honra (calúnia); acusação na medida em que insiste e busca provar que aquele que lhe move a ação cometeu determinado crime.

Em síntese, apenas a lei em sentido formal pode obrigar as pessoas a um dever de abstenção ou de prestação. No caso em apreço, somente a lei poderia punir alguém que, imputando fato, ainda que verdadeiro, seja punido pelo crime de calúnia quando forem autoras aquelas pessoas declinadas no Art. 141, I do CP.


CAPÍTULO II - Honra: conceito, noção histórica e incidência.

2. A honra como bem jurídico tutelado

O Art. 11 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), promulgada pelo Decreto nº 678, de 6-11-92, preceitua que "toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade". Assim, forçoso que a honra deve merecer resguardo e reparação. Resguardo para não sofrer danos; reparação quando o molestamento já tenha ocorrido.

Para Hungria [13]

entre todos os povos e entre todos os tempos depara-se a noção de honra como um interesse ou direito tutelável. Já nas leis de Manu eram objetos de punições as imputações difamatórias e as expressões injuriosas. Na Grécia os crimes contra a honra eram previstos na legislação de Salon. Em Roma, desde a mais remota época eram punidas as ofensas illesaedignatatis status matibus ac legibus comprobatus. A honra, entre os romanos, era como um direito público dos cidadãos.

Segundo Magalhães Noronha, honra pode ser considerada [14] "o complexo ou conjunto de predicados ou condições de pessoa que lhe conferem consideração social e estima própria". De forma similar, Euclides Custódio da Silveira citado por Bitencourt, conceitua honra como [15] "o conjunto de dotes morais, intelectuais, físicos, e todas as demais qualidades determinantes do apreço que cada cidadão desfruta no meio social em que vive".

Nas preciosas palavras de Cavalieri [16]:

Em sua concepção atual, honra é o conjunto de predicados ou condições de uma pessoa, física ou jurídica, que lhe conferem consideração e credibilidade social; é o valor moral e social da pessoa que a lei protege ameaçando de sanção penal e civil a quem a ofende por palavras ou atos. Fala-se, modernamente, em honra profissional como uma variante da honra objetiva, entendida como valor social da pessoa perante o meio onde exerce sua atividade.

Assim, honra nada mais é que um patrimônio agregado à pessoa, recebendo reconhecimento do legislador como bem jurídico e, por conseqüência, a devida proteção. Contudo, como se demonstrará, a proteção extremada acaba por desguarnecer outros bem jurídicos e, até mesmo a honra da parte adversa.

2.1. Particularidades atinentes aos crimes contra a honra

Pode ser sujeito passivo do crime contra a honra qualquer pessoa, inclusive os inimputáveis. Nesse particular, apesar de discordarmos, Nelson Hungria citando Liepmann aduz que os [17] "enfermos e doentes mentais somente são passíveis de ofensa à honra quando possuam a capacidade de entender o sentido do ato contra eles dirigido". O legislador não apontou tal exceção, razão pela qual não cabe ao doutrinador fazê-la.

Tamanha é abrangência que se tutela até mesmo a honra dos mortos, sendo os seus parentes sujeitos passivos nesse caso, aptos, portanto, a buscar tanto no direito civil quanto no penal a devida reparação (art. 138, § 2°, CP).

No crime de calúnia se admite retratação, desde que esta aconteça antes da sentença (Art. 143, CP). É causa extintiva de punibilidade (Art. 107, VI do CP) tendo efeitos meramente penais, não impedindo a propositura de reparação de danos (art. 67, II, CPP). Não se torna infecundo reprisar que a retratação somente é admissível nos crimes de calúnia ou difamação, sendo vedada nos delitos de injúria. Contudo, se os crimes contra a honra forem praticados através da imprensa, a retratação é permitida nos três delitos (Art. 26 da Lei 5.250/67).

Cumpre anotar que em matéria de crime contra a honra vigora o princípio da disponibilidade. Processado o consentimento, inexiste o crime. A honra é um bem jurídico disponível, e o interesse social de sua tutela penal desaparece, desde que, antecipado ao consentimento do sujeito passivo. Nesse caso a lei reconhece a plena disponibilidade do direito á honra quando deixa ao arbítrio do titular a faculdade de intentar a ação penal, declarando inclusive a extinção da punibilidade pela renúncia ou perdão do ofendido.

2.2 Honra e suas modalidades. Conceituação.

Conforme a doutrina clássica, a honra subjetiva concerne à [18] psique do indivíduo, suscetível de ofensa mediante atos que ultrajem a dignidade, auto-estima e respeito ao ser humano, provocando-lhe dor. Em outras palavras: é o sentimento de cada um a respeito de seus atributos físicos, intelectuais, morais e demais dotes da pessoa humana, sendo que a sua violação enseja responsabilização pelo crime de injúria, conceituação estéril para o presente trabalho. Contudo, seu assento se faz útil para que possamos traçar um paralelo com a honra objetiva, bem este maculado nos crimes de calúnia.

A honra objetiva cinge-se ao conceito de respeito ou admiração reconhecido à pessoa pelo meio social. É aquilo que os demais pensam sobre determinada pessoa. Violando a honra objetiva ofende-se a reputação que a pessoa goza no âmbito social e, em conseqüência, reduzido é o seu valor frente à opinião pública, podendo resultar nos crimes de difamaçãoe de calúnia.

Cézar Bitencourt distingue a honra objetiva da honra subjetiva. Esta [19] "representa o sentimento ou a concepção que temos a nosso respeito" ao passo que aquela "constitui o sentimento ou o conceito que os demais membros da sociedade têm sobre nós, sobre nossos atributos". Segundo o mesmo autor, "a honra, independentemente do conceito que se lhe atribua, tem sido através dos tempos um direito ou interesse penalmente protegido (...)" postulando que: "A proteção de honra, como bem jurídico autônomo, não constitui interesse exclusivo do indivíduo, mas da própria coletividade, que tem o interesse na preservação da honra, da incolumidade moral e da intimidade, além de outros bens jurídicos indispensáveis para a harmonia social.

Afora a distinção entre honra objetiva e honra subjetiva, alguns autores diferenciam a honra dignidade, a qual representaria o sentimento da pessoa a respeito de seus atributos morais, de honestidade e bons costumes, da honra decoro, que se refere ao sentimento pessoal relacionado aos dotes ou qualidades do homem (físicos, intelectuais e sociais), qualidades indispensáveis à vida condigna no seio da comunidade. A honra dignidade será atingida quando se atribui, por exemplo, que fulano é estelionatário ou que praticou determinado furto; macula-se a honra decoro quando se diz que a vitima é um aleijão, ignorante, etc.

Para alguns doutrinadores haveria uma terceira diferenciação a ser feita no que toca à honra, qual seja, honra comum e honra especial ou profissional. A honra comum seria aquela circunscrita a todos os homens; a todos direcionadas. Assim, qualquer um poderia ser sujeito passível de ofensa.

De outro modo teríamos a honra especial ou profissional, que seria aquela referente a determinado grupo social ou profissional. Tais delitos atingem essas pessoas em relação aos seus deveres profissionais. Como afirma Marcelo Fortes Barbosa [20]

é algo de muito mais sério chamar-se um militar de covarde, do que referir-se dessa maneira a um cidadão do povo, que não tem no destemor nenhum centro de convergência de atividades. O mesmo, dizer-se que um advogado é "coveiro de causas", que o médico é um "açougueiro", que um motorista é um "barbeiro, etc.

Dada uma noção preambular daquilo que venha a ser honra, assim como das suas múltiplas variantes, impõe-se discorrermos acerca do crime de calúnia, objetivando especificar o tema principal.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Leandro Brescovit

Graduado pela Universidade Federal de Pelotas - UFPel. Analista Jurídico da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, lotado na Procuradoria Regional de Caxias do Sul/RS, Pós graduado em Direito Tributário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRESCOVIT, Leandro. A recepção ou não do inciso II, § 3º, do art. 138 do CP no crime de calúnia frente aos princípios da ampla defesa e da reserva legal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3025, 13 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20215. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos