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A calota da discórdia: insignificância, tribunais e o Habeas Corpus nº 190.921/MG do Superior Tribunal de Justiça

26/10/2011 às 09:27

Resumo:


  • Análise de veículo Ford Fiesta, modelo 2008, revelou falta de calota em um dos pneus.

  • Estudo abordou polêmica sobre aplicação do princípio da insignificância em casos judiciais no Brasil.

  • Decisão do STJ aplicou princípio da insignificância para trancar ação penal por furto de calota de veículo avaliada em R$ 10,00.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Se não há conflitividade de certa relevância a afetar o bem jurídico, não se cumprirá a função conglobante do tipo objetivo; não havendo a função conglobante (tipicidade conglobante), não haverá tipo objetivo; assim, se não há tipo objetivo, não haverá tipicidade penal.

Estive há pouco tempo com meu irmão aqui em casa e analisei o veículo dele, um Ford Fiesta, cor preta, modelo 2008, quatro portas, ar condicionado... Olhei mais atentamente para os pneus e observei: "Vixe, cadê a calota do pneu dianteiro do lado direito?" Ele me respondeu: "Nossa, nem sei! Deve ter caído por aí. Nem me liguei".

Em recente estudo feito por este observador [01], foi demonstrada a ainda atual e divergente polêmica no que tange à aplicação do princípio da insignificância nos casos corriqueiramente processados e julgados pelo Poder Judiciário brasileiro.

Constando em um tópico específico no referido estudo, surge certo caso de furto simples tentado de calota de veículo avaliada em R$ 10,00, no qual o cidadão foi denunciado pelo Ministério Público nas iras do art. 155, caput, c/c o art. 14, inciso II, ambos do Código Penal.

O caso, pasmem, foi levado até o Superior Tribunal de Justiça (STJ) por meio de habeas corpus (HC nº 190.921/MG), tendo em vista a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG) em denegar o writ. O acórdão proferido pelo TJ mineiro foi assim ementado:

HABEAS CORPUS. FURTO. AÇÃO PENAL. TRANCAMENTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. NÃO-ACOLHIMENTO PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. PRINCÍPIO DA IRRELEVÂNCIA PENAL DO FATO. NÃO-APLICAÇÃO. ORDEM DENEGADA.

- O princípio da insignificância não encontra respaldo no ordenamento jurídico pátrio, que se contenta com a tipicidade formal, porque forjado em realidade distinta, onde a reiteração de pequenos delitos não apresenta-se como problema social a ser enfrentado também pela política criminal.

- O agente que detém maus antecedentes não pode se beneficiar da incidência do princípio da irrelevância penal do fato.

- Ordem denegada (destacou-se)

Mesmo no STJ, a liminar foi logo indeferida (em 15/12/2010), e somente após quatro meses foi julgado em definitivo o writ pela Quinta Turma (em 15/03/2011), aplicando in casu o postulado da insignificância como causa supralegal de exclusão da tipicidade:

HABEAS CORPUS. TENTATIVA DE FURTO SIMPLES. RES FURTIVA: CALOTA DE VEÍCULO AVALIADA EM R$ 10,00. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. PRECEDENTES DO STJ E DO STF. PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DO WRIT. ORDEM CONCEDIDA PARA DECLARAR ATÍPICA A CONDUTA PRATICADA, COM O CONSEQUENTE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.

1. O princípio da insignificância, que está diretamente ligado aos postulados da fragmentariedade e intervenção mínima do Estado em matéria penal, tem sido acolhido pelo magistério doutrinário e jurisprudencial tanto desta Corte, quanto do colendo Supremo Tribunal Federal, como causa supra-legal de exclusão de tipicidade. Vale dizer, uma conduta que se subsuma perfeitamente ao modelo abstrato previsto na legislação penal pode vir a ser considerada atípica por força deste postulado.

2. Verificada a excludente de aplicação da pena, por motivo de política criminal, é imprescindível que a sua aplicação se dê de forma prudente e criteriosa, razão pela qual é necessária a presença de certos elementos, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente; (b) a ausência total de periculosidade social da ação; (c) o ínfimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica ocasionada, consoante já assentado pelo colendo Pretório Excelso (HC 84.412/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJU 19.04.2004).

3. Tem-se que o valor do bem furtado pelo paciente, além de ser ínfimo, não afetou de forma expressiva o patrimônio da vítima, razão pela qual incide na espécie o princípio da insignificância, reconhecendo-se a inexistência do crime de furto pela exclusão da tipicidade material.

4. Ordem concedida para, aplicando o princípio da insignificância, declarar atípica a conduta praticada, com o consequente trancamento da Ação Penal, em que pese parecer ministerial em contrário (STJ, HC 190.921/MG, Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Quinta Turma, data do julgamento: 15 de março de 2011, data da publicação: 04 de abril de 2011).

Vale frisar também nesse caso o parecer dado pela Subprocuradora-Geral da República, opinando pelo prosseguimento da lide sob a argumentação de que os fatos descritos na denúncia constituem, ao menos em tese, crimes.

Dessa forma, juntaram-se opiniões e decisões as mais enfadonhas e mesquinhas possíveis no curso deste processo. Sob os argumentos de que "o princípio da insignificância não encontra respaldo no ordenamento jurídico pátrio", ou porque "o agente detém maus antecedentes", ou, ainda, que "os fatos descritos, ao menos em tese, constituem crimes", o TJMG e o MPF evidenciaram ainda estar atrelados a uma repugnante orientação positivista-legalista, extremamente apegados ao formalismo no âmbito penal.

É justamente nesse ponto a base da crítica formulada pelo eminente jurista Luiz Flávio Gomes, que discorre sobre os motivos nos quais fatos tão insignificantes, irrisórios como esse, continuam sendo levados às mais altas instâncias do Judiciário brasileiro:

[…] O principal (motivo) é o seguinte: o princípio da insignificância não está previsto expressamente na lei brasileira (salvo no Código Penal militar). E ainda existem muitos juízes que são extremamente legalistas (ou positivistas-legalistas). [...] Nossas faculdades, em regra, apegadas que são à velha metodologia legalista, só ensinam os códigos e as leis. Em outras palavras, ensinam um modelo de Direito totalmente ultrapassado. O juiz (salvo exceções) sai dessas faculdades com a cabeça totalmente positivista-legalista. [...] O formalismo, o comodismo, o ensino jurídico no Brasil, a metodologia dos concursos públicos para a magistratura (também aferrada ao formalismo legalista de Kelsen, Ihering e Savigny), tudo isso vem contribuindo decisivamente para a formação do juiz. Quando lhe aparece um caso de subtração de um queijo, de um frango, de biscoitos, de um xampu, de rolos de papel higiênico etc., ele tende a seguir a jurisprudência dos tribunais locais e reconhecer o crime de furto, aplicando a pena de reclusão de um a quatro anos [02].

O Excelso Supremo Tribunal Federal (STF) já inclusive assentou entendimento de que o princípio da insignificância, que se encontra umbilicalmente ligado aos postulados penais da intervenção mínima, da fragmentariedade e da subsidiariedade, possui também a sua importância em relação à descarcerização e ao descongestionamento da Justiça Penal, estando inserido, assim, em um relevante quadro de medida de política criminal. Dá-se ao direito penal, consagrando esse princípio da tolerância, uma visão humanitária e que, caso seja bem aplicado, não chega a estimular a nefasta idéia da impunidade.

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Em voto memorável do Ministro Celso de Mello [03], o Supremo consolidou posição de que é necessária a existência de quatro elementos para pelo menos ser possível a incidência do princípio, a saber:

a)a mínima ofensividade da conduta do agente;

b)a ausência total de periculosidade social da ação;

c)o ínfimo grau de reprovabilidade do comportamento;

d)a inexpressividade da lesão jurídica ocasionada.

Não sendo o objetivo principal deste pequeno artigo fazer a exposição didática do princípio em xeque, mas é de suma relevância neste momento trazer à baila as sempre brilhantes considerações feitas por Eugenio Raúl Zaffaroni.

Segundo Zaffaroni, o moderno enunciado do princípio da insignificância ou da bagatela se traduz na ideia de que as afetações diminutas ao bem jurídico não possam se reputar como lesão relevante para os fins da tipicidade objetiva. De acordo com o autor,

[...] a consideração conglobante das normas dedutíveis dos tipos legais revela sua tendência de proibir condutas que provoquem conflitos de certa gravidade. Não se trata apenas de manifestação do princípio da ultima ratio, mas também do próprio princípio republicano, do qual dimana o princípio da proporcionalidade, como requisito de correspondência racional entre a lesão ao bem jurídico e a pena: não faz sentido considerar lesão corporal (art. 129 CP) a perfuração nas orelhas da criança para uso de brincos, entrever furto (art. 155 CP) na subtração de uma caixa de fósforos para acender cigarros, ou sequestro (art. 148 CP) no motorista rabugento que só freia o ônibus e abre a porta no ponto subsequente, a duzentos metros do solicitado, lobrigar corrupção (art. 333 CP) no livro com que o advogado presenteia o juiz etc. Em todos os tipos nos quais seja admissível gradualizar a lesão ao bem jurídico é possível conceber ofensas insignificantes [04].

Conforme entende corrente doutrinária majoritária, para a caracterização do delito deve o mesmo compreender um fato (pragma) típico, antijurídico e culpável. Mas, para Zaffaroni, o tipo, para se poder falar em tipicidade objetiva, deve cumprir duas funções quanto ao seu aspecto objetivo, quais sejam, (i) a função sistemática e a (ii) função conglobante.

Partindo desse pensamento, o mestre argentino destaca que a função conglobante do tipo objetivo remete à tarefa de se verificar a conflitividade do pragma, isto é, a constatação da lesividade de certa relevância a um bem jurídico (conflitividade), e se pode essa lesividade ser objetivamente imputável ao agente como obra própria dele (imputação por dominabilidade) [05].

A conclusão, trilhando esse entendimento do mestre, poderia ser assim formulada: se não há conflitividade de certa relevância a afetar o bem jurídico, não se cumprirá a função conglobante do tipo objetivo; não havendo a função conglobante (tipicidade conglobante), não haverá tipo objetivo; assim, se não há tipo objetivo, não haverá tipicidade penal, não se podendo, dessa forma, falar em fato típico; por conseguinte, como consequência lógica, se não há fato típico, excluído estará o crime.

Neste final, voltando à narrativa introdutória deste artigo, cumpre esclarecer que este observador foi naquele mesmo dia para o trabalho e constatou uma calota de pneu encostada no muro de uma casa, perto da lixeira, em frente ao seu apartamento, coincidentemente do mesmo modelo do automóvel do seu irmão. Imediatamente liguei do meu celular: "Pedro, você quer uma calota para colocar no seu Fiesta? Tem uma aqui na rua, aparentemente perdida ou jogada para o lixo... você quer que eu pegue? Ou, afinal... não seria essa a sua, que você perdeu?!"


REFERÊNCIAS:

GOMES, Luiz Flávio. Insignificância: é preciso ir ao STF para vê-lo reconhecido. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2140, 11 maio 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/12799>. Acesso em 27 abr. 2011.

MACHADO, Vitor Gonçalves. Análise atual sobre a aplicação do princípio da insignificância nos Tribunais Superiores brasileiros: o que é e o que não é atualmente insignificante para o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal. Boletim IBCCRIM, julho de 2011. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 03 ago. 2011.

ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro: teoria do delito – introdução histórica e metodológica, ação e tipicidade. V. 2. Rio de Janeiro: Revan, 2010.


Notas

  1. MACHADO, 2011.
  2. GOMES, 2009.
  3. Conferir: STF, HC 84.412/SP, Relator: Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, data do julgamento: 19 de outubro de 2004, data da publicação: 19 de novembro de 2004.
  4. ZAFFARONI et al, 2010, p. 229-230.
  5. ZAFFARONI et al, 2010, p. 159-160 e 212-214.
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Sobre o autor
Vitor Gonçalves Machado

Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pós-graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera/LFG. Pós-graduado em Direito do Estado pela Universidade Anhanguera/LFG. Bacharel em Direito pela UFES. Advogado do Banco do Estado do Espírito Santo. Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4463439U4.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Vitor Gonçalves. A calota da discórdia: insignificância, tribunais e o Habeas Corpus nº 190.921/MG do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3038, 26 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20287. Acesso em: 23 dez. 2024.

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