Resumo: Trabalho que se propõe a analisar, sob a perspectiva da teoria do direito, não propriamente a estrutura do ordenamento jurídico, como comumente se procede, mas sim a teoria funcionalista e a função promocional do direito, sendo esta utilizada mediante a concessão de sanções positivas e de incentivos.
Palavras-chave: Teoria do direito; teoria funcionalista; função promocional do direito; sanções positivas; incentivos.
Sumário: 1. Introdução; 2. Teoria estruturalista do direito de Kelsen e teoria funcionalista do direito de Bobbio; 3. Função promocional do direito; 4. Sanções e suas espécies; 5. Conclusão; 6. Referências.
1.Introdução
Neste artigo, pretende-se analisar a função promocional do direito exercida mediante sanções positivas e incentivos, temas fundamentais para adequar a teoria geral do direito às transformações da sociedade contemporânea e ao crescimento do Estado Social.
A escolha do tema se deu em virtude de a teoria geral do direito comumente abordar o direito sob uma perspectiva estrutural, notadamente a partir da obra de Kelsen, em detrimento de uma análise funcional do direito, ou seja, da análise dos objetivos a serem perseguidos pelo ordenamento jurídico.
Em tal desiderato, utilizou-se como texto-base a obra de Norberto Bobbio intitulada "Da estrutura à função" [01], onde o autor demonstra a evolução de seu pensamento, passando de uma análise meramente estrutural do direito, em que dava destaque à análise da norma e do ordenamento jurídico, para uma análise funcional do direito.
2.Teoria estruturalista do direito de Kelsen e Teoria funcionalista do direito de Bobbio
A teoria pura de direito, de Hans Kelsen, foi concebida como uma teoria do direito positivo em geral, como uma teoria geral do direito que procurava delimitar o objeto de conhecimento do direito, conferindo-lhe status científico, apartando-o de todos os elementos e ciências considerados como sendo estranhos à ciência jurídica, tais como os valores, a ciência política, a ética, a sociologia, etc. [02]
Com a teoria de Kelsen, houve grande avanço no estudo da teoria do direito, isso é inegável, considerando-se o ordenamento jurídico como um sistema de normas.
Segundo a natureza do fundamento de validade, o citado autor distingue dois tipos diferentes de sistemas de normas: a) um tipo estático, cujas regras estão interligadas pelo conteúdo, sendo que todas as normas já estariam contidas no conteúdo da norma pressuposta, de onde poderiam ser deduzidas por uma operação lógica; b) um tipo dinâmico, cujas normas estão interligadas pelo modo em que são produzidas, é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, isto é, a atribuição de um poder a uma autoridade legisladora. [03]
Nota-se que no sistema estático a norma fundamental fornece não só o fundamento de validade como também o conteúdo de validade das normas dela deduzidas logicamente, enquanto que no sistema dinâmico a norma fundamental fornece apenas o fundamento e não o conteúdo de validade das normas sobre elas fundadas.
O ordenamento jurídico é um sistema dinâmico de normas, pois uma norma não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela via de um raciocínio lógico da norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma forma determinada fixada pela norma fundamental. [04]
A norma fundamental, que é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma ordem normativa, então, pode ser resumida na proposição de que "devemos conduzir-nos como a Constituição prescreve". [05]
Percebe-se, assim, que a teoria pura estuda o direito em sua estrutura, constituindo-se o direito em uma técnica de controle social baseada na ameaça e na aplicação de sanções negativas.
Contudo, na obra de Kelsen, não há espaço para análise do aspecto funcional do direito. Ele apenas afirma que a ordem jurídica é instrumento para segurança coletiva, na medida em que protege os indivíduos que lhe estão submetidos contra o emprego da força por parte dos outros indivíduos. A segurança coletiva visa à paz, pois a paz é a ausência do emprego da força física, mas essa paz do direito é relativa, uma vez que o direito não exclui o uso da força, caracterizando-se por ser uma ordem coercitiva. [06]
Como adverte Bobbio [07], é preciso adequar a teoria geral do direito às transformações da sociedade contemporânea e ao crescimento do Estado Social, a fim de descrever com exatidão a passagem do Estado "garantista" para o Estado "dirigista", e, consequentemente, a transformação do direito como mero instrumento de "controle social" em instrumento de "direção social".
A análise meramente estrutural do ordenamento jurídico não é mais suficiente para explicar os fenômenos atuais, devendo a teoria do direito ser complementada por uma análise funcional do direito, com destaque para a função promocional, ou seja, a ação que o direito desenvolve pelo instrumento das sanções positivas, destinadas a promover a realização de atos socialmente desejáveis. [08]
A função do direito no Estado social deixou de ser meramente negativa, passando a uma concepção positiva, ou seja, o Estado passou a assumir deveres constitucionais que lhe exigiam uma maior intervenção no campo econômico e social, notadamente para garantia dos direitos sociais, a exemplo da garantia de uma efetiva igualdade de oportunidades a todos os seus cidadãos.
Contudo, segundo Bobbio, a função do direito é permitir a persecução daqueles fins sociais que não podem ser alcançados por outras formas mais brandas de controle social. Mas saber quais são esses fins especificamente é um problema histórico que não interessa à teoria do direito. [09]
3.Função promocional do direito
Com o advento do Estado social, surgiram novas técnicas de controle social que se diferenciam profundamente daquelas utilizadas pelo Estado liberal clássico, empregando-se cada vez mais técnicas de encorajamento em acréscimo, ou substituição, às técnicas tradicionais de desencorajamento, o que coloca em crise teorias ainda hoje dominantes na teoria do direito contemporânea, que concebem o direito apenas com função protetora em relação aos atos lícitos e repressora em relação aos atos ilícitos. [10]
Como adverte Bobbio [11] a respeito das medidas de encorajamento e desencorajamento, sob uma perspectiva funcional, as primeiras são utilizadas com o objetivo de mudança, enquanto que as medidas de desencorajamento são usadas com o objetivo de conservação social, de manutenção do status quo. Talvez por este motivo as técnicas de desencorajamento, notadamente as sanções negativas, ainda sejam dominantes na teoria geral do direito.
Entretanto, percebe-se que nas constituições pós-liberais ao lado da função de tutela ou garantia, aparece, cada vez com maior frequência, a função de promover. [12]
A Constituição brasileira de 1988, por exemplo, classificada pela doutrina como uma Constituição do Estado Social [13], prevê como objetivo da República "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação" (Art. 3, IV); é dever do Estado promover a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII), promover a defesa contra calamidades públicas (art. 21, XVIII), promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (art. 23, IX), combater as causas da pobreza e da marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos (art. 23, X); é dever dos Municípios promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local (art. 30,IX); é dever do Presidente o do Vice-Presidente da República prestar compromisso de promover o bem geral do povo brasileiro (art. 78); admissão da concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do país (art. 151, I); é dever do Estado promover e incentivar o turismo como fator de desenvolvimento social e econômico (art. 180); estruturação do sistema financeiro nacional de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país (art. 192); é dever do Poder Público promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro (art. 216, § 1º), promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas (art. 218), e promover a educação ambiental (art. 225, VI).
Segundo Bobbio [14], é possível distinguir um ordenamento protetivo-repressivo de um promocional com a seguinte afirmação:
ao primeiro, interessam, sobretudo, os comportamentos não desejados, sendo seu fim precípuo impedir o máximo possível a sua prática; ao segundo interessam, principalmente, os comportamentos socialmente desejáveis, sendo seu fim levar a realização destes até mesmo aos recalcitrantes.
Em um ordenamento unicamente protetivo-repressivo, característico do Estado liberal clássico, o desencorajamento é a técnica típica por meio da qual se realizam as medidas indiretas, ou seja, aquelas que não agem diretamente sobre o comportamento, mas sim buscando influenciar por meios psíquicos o agente, tornando o comportamento indesejado mais difícil, ou então, uma vez realizado, produtor de conseqüências desagradáveis, mediante a aplicação de sanções negativas.
Ao contrário, em um ordenamento promocional, característico de um Estado Social intervencionista, a técnica típica das medidas indiretas é o encorajamento, pelo qual se busca tornar o comportamento desejado mais fácil ou, uma vez realizado, produtor de conseqüências agradáveis, mediante a utilização de duas operações: a sanção positiva propriamente dita, sob a forma de recompensa (prêmio) de um comportamento já realizado; e o incentivo ou facilitação, que precede ou acompanha o comportamento que se pretende encorajar. [15]
4.Sanções e suas espécies
Como dito anteriormente, a partir do momento em que, devido às exigências impostas ao Estado assistencial contemporâneo, o direito não se limita a tutelar os atos conformes às normas e a reprimir os atos desviantes (função protetora-repressiva), mas tende a estimular atos inovadores (função promocional), surge, ao lado das sanções negativas, as sanções positivas. [16]
A distinção entre as duas espécies de sanção, positiva e negativa, já era reconhecida por Kelsen, quando afirmou que a ordem social pode estabelecer condutas e ligar a estas condutas a concessão de uma vantagem, de um prêmio, ou ligar à conduta oposta uma desvantagem, uma pena. O prêmio e o castigo, assim, poderiam compreender-se no conceito de sanção, embora usualmente designe-se por sanção somente a pena, isto é, uma mal a aplicar como conseqüência de uma determinada conduta indesejada. [17]
Como se vê, Kelsen atribui um papel apenas secundário às sanções positivas, entendendo que não constituem uma característica comum de todas as ordens sociais a que chamamos Direito [18]. Na verdade, ele concebe o direito como uma ordem de coerção em que as sanções, caracterizadas pelo uso da força física, podem ser de duas formas: pena e execução forçada [19]. Essas duas espécies de sanção, para Kelsen, consistem na atribuição de um mal, motivo por que as sanções positivas são por ele excluídas do rol das sanções jurídicas, uma vez que estas últimas consistem na atribuição de um prêmio como reação a uma conduta desejada.
No entanto, considera-se mais correta a interpretação que entende a sanção jurídica não como caracterizada pelo uso da força física, mas sim como uma reação à violação, qualquer que seja, mesmo econômica, social ou moral, que é garantida, em última instância, pelo uso as força física. [20] Com isso, entende-se que a coação é a garantia do cumprimento da sanção, o que permite considerar como sanções jurídicas também as sanções positivas, uma vez estas suscitam para o destinatário do prêmio uma pretensão ao cumprimento da promessa, mediante a utilização da força organizada dos podes públicos. [21]
Entendida, portanto, a sanção como uma reação a um comportamento relevante, no sentido negativo ou positivo, com o objetivo de exercer um controle sobre o conjunto de comportamentos sociais e direcioná-los a certos objetivos tidos como relevantes, ela já não pode ser considerada, na atualidade, como a única técnica apta a cumprir a função de desencorajamento ou encorajamento.
Trata-se de uma técnica diferente, chamada de técnica da "facilitação", correspondendo, na hipótese da função de desencorajemento, à técnica da "obstaculização". [22]
Bobbio conceitua a técnica da facilitação da seguinte maneira:
o conjunto de expedientes como os quais um grupo social organizado exerce um determinado tipo de controle sobre os comportamentos de seus membros, não pelo estabelecimento de uma recompensa à ação desejada, depois que esta tenha sido realizada, mas atuando de modo que a sua realização se torne mais fácil ou menos difícil. [23]
Como dito anteriormente, essa técnica utiliza-se de incentivos que precedem ou acompanham o comportamento que se pretende encorajar, diferindo das sanções positivas propriamente ditas, que se utilizam da concessão de prêmios como recompensa por uma ação desejada já praticada.
5.Conclusão
Com essas considerações, pretendeu-se chamar a atenção para a teoria funcionalista do direito, pela qual este consiste em um instrumento destinado a cumprir determinados objetivos sociais normativamente estabelecidos, para o que o Estado assistencialista contemporâneo utiliza a função promocional do direito, com a finalidade de premiar ou incentivar aqueles particulares que realizam determinadas ações socialmente desejáveis, conforme aqueles valores definidos pelo ordenamento jurídico.
Nesse panorama, não é mais suficiente uma análise apenas da estrutura do ordenamento jurídico, com a concepção de que o direito é um mero instrumento de controle social, ou seja, de manutenção da ordem vigente. Ao contrário, procurou-se consignar que o direito é instrumento também de direção social, com o que pode promover mudanças sociais, sempre com o escopo de alcançar aqueles fins definidos por cada ordenamento jurídico particular.
6.Referências
BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução de Daniela Baccaccia Versani. Barueri-SP: Editora Manole, 2007.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 21ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Notas
- BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução de Daniela Baccaccia Versani. Barueri-SP: Editora Manole, 2007.
- KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 1.
- Ibidem, pp. 217-219.
- Ibidem, p. 221.
- Ibidem, p. 224.
- Ob. Cit., pp. 40-41.
- Ob. Cit. Prefácio, pp. XI-XII.
- Ibidem, p. XII.
- Ob. Cit., p. 206.
- Ibidem, p. 2.
- Ibidem, p. 19.
- Ibidem, p. 13.
- BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 21ª ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2007, p. 371.
- Ob. Cit., p. 15.
- BOBBIO, Norberto. Ob. Cit., p. 16-17.
- Ibidem, p. 25.
- Ob. Cit., p. 26.
- Ibidem, pp. 32 e 37.
- Ibidem, pp. 121-122.
- Nesse sentido, BOBBIO, Norberto. Ob. Cit., p. 28.
- Ibidem, p. 29.
- Ibidem, pp. 29-30.
- Ibidem, p. 30.