4 Conclusão
No pensamento Ocidental, a fonte mais antiga que representa a dignidade da pessoa humana de forma similar a que se entende hoje, remonta à tradição judaico-cristã, que traz as idéias de parecença divina do homem, igualdade e auto-finalidade. Na Idade Moderna, despontam os pensamentos de KANT – que ressalta o valor intrínseco do homem, fundado na razão e na autonomia da vontade – e de HEGEL – que destaca o aspecto da dignidade condicionado à própria atuação da pessoa. A constitucionalização do conceito corresponde à inserção do valor no direito, no segundo pós-guerra, que o impede de se tornar um instrumento estruturado em termos meramente lógicos, capaz de servir a propósitos desumanos como o do nazi-fascismo.
A proteção jurídica da dignidade humana funda-se numa visão finalística do homem, dotado de potencialidades de realização, que, frustradas, submetem-no a uma situação degradante e desumana. Dentro dessa perspectiva, destacam-se as teorias da Dádiva, que expõe a qualidade intrínseca do homem, e da Prestação, que aponta a dignidade como uma tarefa a ser alcançada pelo próprio indivíduo. A despeito do aspecto cultural que compõe a condição humana, é possível traçar um mínimo comum de características que representem uma tendência universal.
O ingresso da dignidade da pessoa humana como resposta à crise de humanidade que culminou na Segunda Guerra Mundial, dá conta da consubstanciação de uma nova forma de ver o direito, agora dotado de valor como contraponto e limite à força política e, mesmo, à soberania popular, em um novo arranjo institucional denominado Estado Democrático de Direito. A natureza do instituto é, pois, emblemática da função inovadora da supremacia do direito como condição de realização do ser humano em sociedade.
Embora haja menções à dignidade nas Constituições anteriores, somente na de 1988, veio ela a ser incorporada com o sentido que atualmente possui. Sua inspiração advém das constituições da Alemanha e, mais, recentemente, de Portugal e Espanha, como resposta ao autoritarismo e constituindo-se em centro de valores de uma sociedade democrática.
O art. 1°, III, da Constituição de 1988, trata do ser humano individualmente considerado, em sua situação concreta, afirmando-lhe o valor intrínseco; todavia, sua concretização em sociedade pressupõe uma relação com os outros, o que implicará em uma limitação pela igualdade, uma co-dependência para alcançá-la e um sentido coletivo-cultural, que acompanhará as transformações da própria sociedade. A dignidade, como respeitabilidade, importa em uma relação com os outros; esse aspecto social possui um conteúdo e variável conforme as circunstâncias sociais, e mesmo uma concretização variável, conforme a disponibilidade econômica, e é justamente por ser uma relação com as demais pessoas que a torna passível de violação. Neste espectro, avulta a função do Estado, como responsável em garantir as circunstâncias externas necessárias à realização do ser humano como pessoa. A dignidade da pessoa humana, tal como se acha disposta na Constituição, mais do que um princípio, é um fundamento da República, valor fundante da vida em sociedade, consubstanciada na ordem política e jurídica, e meta permanente do Estado e do Direito.
Nessa condição, somente seria passível de relativização face aos demais fundamentos da República, que podem ser reunidos sob a égide de vontade popular. A conciliação entre ambas corresponde ao equilíbrio entre direito e política, que se ajustam mediante o pluralismo político; a razão prática funciona como meio de decidir, diante das várias formas possíveis (a pluralidade política, que decorre da própria pluralidade do ser humano), a que melhor se presta, diante da realidade fática, a concretizar os valores supremos da Constituição. O respeito ao pluralismo (decorrência da própria dignidade da pessoa humana), veda a aplicação direta dos princípios constitucionais, sob pena de privar o cidadão de participar das decisões que lhe concernem, e cair, necessariamente, em uma interpretação autoritária, o que faz indispensável o respeito à autonomia dos níveis do ordenamento. Da dignidade da pessoa humana, decorrem os valores supremos do ordenamento, bem como os direitos fundamentais (suas concretizações) que visam a garantir sua efetividade, podendo, excepcionalmente, a própria dignidade ser considerada um direito fundamental, como último recurso quando os demais falharem. A dignidade da pessoa humana não só limitará o poder como também o guiará para a sua satisfação; não obstante, a forma como ocorre essa atuação é, na seara jurídica, primordialmente negativa, como controle: o Estado Democrático de Direito exige a harmonia entre os três níveis do ordenamento, direito judiciário, ordinário e constitucional.
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