7 DA ISENÇÃO PARCIAL
O Supremo Tribunal Federal, ao analisar o RE n.º 174.478-2/SP, entendeu que o sistema que reduz a base de cálculo do ICMS na saída de produtos equivaleria ao que parte da doutrina tributária brasileira denomina de isenção parcial.
Com supedâneo nesse entendimento, a Egrégia Corte afirmou que a situação em comento se enquadraria em uma das hipóteses constitucionais de limitação ao direito a crédito: isenção.
Com a devida vênia, tal entendimento, desprovido de fundamento, não merece prevalecer. Antes de se criticar a decisão em testilha, cumpre tecer esclarecimentos sobre o instituto da isenção parcial.
Consoante visto no capítulo 5, a isenção, numa concepção atual, ataca qualquer um dos critérios da regra-matriz de incidência tributária e não ocasiona o surgimento da relação jurídica entre o Fisco e o contribuinte. Pois bem.
Partindo-se dessa premissa, deve-se analisar a propriedade da expressão isenção parcial, pois existe corrente doutrinária que classifica a isenção como total ou parcial.
Nessa linha, Walter Barbosa Correa em Comentários ao Código Tributário Nacional pontifica que
Outra classificação decorrente de preceitos normativos especiais de leis de tributos é a que distingue a isenção total e a parcial. Aqui, prevalece o critério dos efeitos da exclusão sobre o crédito. O fenômeno consistente na isenção parcial é também conhecido por redução. [45]
Por outro lado, Paulo de Barros Carvalho adverte que a figura da isenção parcial não se confunde com a isenção tributária, postulando que
a diminuição que se processa no critério quantitativo, mas que não conduz ao desaparecimento do objeto, não é isenção, traduzindo singela providência modificativa que reduz o montante de tributo que deve ser pago. [46]
Parece mais correto o entendimento do titular da PUC/SP, ao afirmar que a diminuição no critério quantitativo que não ocasiona o desaparecimento da relação jurídica tributária não se trata do fenômeno isenção.
Consoante visto acima, a isenção impede o nascimento da relação jurídica tributária, não sendo lógico se falar em isenção parcial. Como se pode admitir o nascimento de uma parcial relação jurídica tributária?
Não existe incidência do tributo em parte, vale dizer, ou a norma tributária incide ou não incide.
É oportuna a lição de Sacha Calmon Navarro Coelho ao discorrer que:
Ocorre, no entanto, que, à luz da teoria da norma jurídica tributária, a denominação de isenção parcial do imposto a pagar, através das minorações diretas de base de cálculo e de alíquotas, afigura-se absolutamente incorreta e inaceitável. A isenção ou é total ou não é, porque a sua essentialia consiste em ser modo obstativo ao nascimento da obrigação. Isenção é o contrário de incidência. As reduções, ao invés, pressupõem a incidência e a existência do dever tributário instaurado com a realização do fato jurígeno previsto na hipótese de incidência da norma de tributação. As reduções são diminuições monetárias no quantum da obrigação, via base de cálculo rebaixada ou alíquota reduzida. [47] (grifo nosso)
Denota-se que há impropriedade em se falar isenção parcial, haja vista que a isenção se mostra total. Qualquer outro tipo de fenômeno que diminua o valor do tributo, mas que não impeça o surgimento da relação jurídica tributária não constitui isenção.
A título de comparação, no caso de tributação com base de cálculo reduzida, o contribuinte não se escusa do pagamento do imposto estadual em comento, mas apenas tem uma redução no valor a ser pago, o que demonstra a existência da incidência da norma tributária, diferente do que ocorre em caso de isenção.
Como bem ensina Paulo de Barros Carvalho, não se pode confundir subtração do campo de abrangência do critério da hipótese ou da conseqüência com mera redução da base de cálculo ou da alíquota, sem anulá-las. [48]
Em suma, a isenção corresponde à perda de um dos critérios da regra-matriz de incidência tributária impedindo, assim, o nascimento da obrigação tributária, ao passo que a redução da base de cálculo pressupõe a existência de obrigação tributária.
Diante do exposto acima, conclui-se que a isenção, por constituir óbice ao nascimento da relação jurídica tributária entre o fisco e o contribuinte, não pode ser parcial.
8 DAS CRÍTICAS À DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO N.º 174.478-2/SP
A Constituição Federal preconizou que o ICMS deve ser não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante que for cobrado nas anteriores.
Ademais, o texto constitucional fixou que em caso de isenção ou não-incidência não há crédito para compensar com o valor devido nas operações ou prestações seguintes e anula-se o crédito das operações ou prestações anteriores. Ou seja, tanto a isenção quanto a não-incidência afastam o direito ao crédito do contribuinte.
Como ficou consignado, o Supremo Tribunal Federal, analisando caso concreto, reformulou seu entendimento quanto à matéria em estudo e passou a equiparar a redução da base de cálculo do ICMS à isenção parcial, para fins de aplicação da vedação ao crédito prevista no artigo 155, parágrafo 2º, inciso II, do Texto Magno.
Cravou-se o posicionamento no sentido de que deve haver estorno proporcional dos créditos correspondentes à entrada de insumos usados em industrialização de produtos cujas saídas foram realizadas com a base de cálculo reduzida. Para justificar tal entendimento, a Corte Suprema equiparou a redução da base de cálculo a uma espécie de isenção, denominada isenção parcial.
Em que pese o entendimento da Corte Constitucional de que a redução da base de cálculo se equipara à isenção parcial, espécie do gênero isenção, depreende-se do exposto no Capítulo 5 que os institutos em nada se assemelham.
Como visto, a isenção impede o nascimento da obrigação tributária, não sendo possível se falar em nascimento de uma obrigação tributária em parte, ou melhor, em uma hipótese de isenção parcial.
Por outro lado, a redução da base de cálculo do imposto não impede o surgimento da relação jurídica tributária, proporcionando apenas a diminuição do valor a ser pago pelo contribuinte aos cofres públicos.
Sendo assim, é inadmissível que se igualem institutos que provocam efeitos tão distintos.
Reforçando a tese acima, Flávia Rodrigues Breda [49] registra que a própria Constituição Federal, no artigo 150, parágrafo 6º, tratou isenção e redução da base de cálculo como fenômenos distintos, ao estabelecer que
§ 6.º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g.
Ora, se o constituinte diferenciou o instituto isenção da redução da base de cálculo não cabe ao legislador ordinário ou ao Poder Judiciário equipará-las.
Ademais, sob outro prisma, o disposto no inciso II, do parágrafo 2º, do artigo 155 da Carta Maior traduz uma exceção ao princípio da não-cumulatividade do ICMS e, portanto, deve ser interpretado restritivamente.
A melhor doutrina ensina interpretam-se restritamente os dispositivos que instituem exceções às regras gerais firmadas pela Constituição. [50]
O Supremo Tribunal Federal, ao impedir que o contribuinte se creditasse do ICMS incidente na operação anterior nas hipóteses em que foi beneficiado com redução da base de cálculo na operação posterior, afrontou ao artigo 155, parágrafo 2º, inciso II, da Carta Magna, pois as únicas hipóteses em que se permite limitar o aproveitamento de crédito são as situações de isenção ou não-incidência.
Cumpre frisar que o texto constitucional atribuiu ao legislador ordinário apenas competência para ampliar o direito a crédito, pois o constituinte já esgotou as hipóteses de limitação ao direito a crédito de ICMS.
Não é dado ao intérprete jurídico no caso, o Supremo Tribunal Federal, ampliar as restrições ao direito a crédito impostas pela Constituição Federal.
O Poder Judiciário, ao alargar uma das hipóteses de limitação constitucional ao direito a crédito para incluir a figura da redução da base de cálculo, atuou como legislador, ferindo o pacto federativo preconizado pela Constituição Federal.
Misabel Abreu Machado Derzi e Sacha Calmon Navarro Coelho, expõem com clareza os argumentos acima utilizados:
A Constituição Brasileira de 1988 não contém nenhuma exceção ao princípio da não-cumulatividade, salvo aquela já referida, concernente à isenção ou não incidência. Poderá legislação infraconstitucional, ao disciplinar o princípio da não-cumulatividade, amesquinhá-lo, restringi-lo ou reduzi-lo? Doutrina cada vez mais sólida responde negativamente, delineando-se, entre nós, o consenso de que as limitações impostas em leis complementares, convênios e regulamentos são absolutamente inconstitucionais. [51]
A partir do momento em que o Supremo enquadrou a figura da redução da base de cálculo na categoria de isenção, mais precisamente como isenção parcial, vedando, dessa forma o aproveitamento total de crédito de ICMS pelo contribuinte, amesquinhou-se o importante princípio da não-cumulatividade que deve ser parte integrante do referido imposto estadual.
9 CONCLUSÃO
O Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e prestação de serviços, de competência estadual, é orientado pelo princípio da não-cumulatividade.
O princípio da não-cumulatividade, inserido no texto constitucional pela Emenda Constitucional n.º 18 de 1965, traduz a compensação do que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o que for cobrado nas anteriores pelos Estados ou Distrito Federal.
A não-cumulatividade é um princípio porque explicitada como tal pela Constituição Federal e uma técnica porque importa na compensação do valor cobrado de ICMS nas operações ou prestações anteriores com o devido nas operações ou prestações posteriores.
Conforme dito linhas retro, a não-cumulatividade deve ser entendida nos ditames da Magna Carta, não sendo correto o intérprete utilizar-se de conceitos econômicos para se aferir o verdadeiro conteúdo do aludido princípio.
O direito a crédito de ICMS, existente por conta da não-cumulatividade, nasce do próprio texto constitucional e, desse modo, não pode ser desconsiderado pelo legislador ordinário.
A partir do momento em que há incidência de ICMS, surge o direito a crédito, oponível em face do Poder Público.
O direito a crédito no ICMS não depende para surgir da cobrança efetiva do imposto estadual nas operações ou prestações anteriores, bem como não é necessário o recolhimento do tributo pelo contribuinte aos cofres públicos.
Verifica-se, portanto, que o direito a crédito não impõe condições para existir, sendo um direito subjetivo do sujeito passivo do ICMS, que não pode ser mitigado pelo Estado.
Somente em duas situações, expressamente estabelecidas pela Constituição Federal, o direito a crédito sofre restrições. São os casos de isenção e não-incidência em uma das etapas de circulação de mercadorias ou prestação de serviços.
Assim, de acordo com o Texto Maior, se os institutos tributários isenção e não-incidência ocorrerem na operação ou prestação anterior o contribuinte não poderá compensar o crédito na operação seguinte, ao passo que se ocorrerem na operação posterior anulam o crédito obtido na operação antecedente.
Há quem sustente que essas hipóteses de limitação ao crédito na verdade não excepcionam o princípio da não-cumulatividade, mas apenas confirmam-no.
O fato é que o constituinte somente determinou essas duas possibilidades de mitigação ao direito a crédito de ICMS, não sendo permitido ao legislador infraconstitucional ou ao Poder Judiciário ampliá-las.
A respeito do direito a crédito de ICMS e suas limitações constitucionais, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou no Recurso Extraordinário n.º 174.478-2/SP, tendo preconizado orientação diversa da seguida nos seus julgados anteriores.
Até 17 de março de 2005, data do julgamento do mencionado recurso extraordinário, o Supremo Tribunal Federal entendia que existia o direito a crédito de ICMS, ainda que em uma das operações tivesse ocorrido a redução da base de cálculo do imposto.
Sustentava-se que o direito a crédito só seria afastado caso ocorresse isenção ou não-incidência em uma das operações ou prestações. A Corte Suprema distinguia os institutos da redução da base de cálculo e da isenção.
Todavia, no julgamento do recurso extraordinário em comento o Tribunal de interpretação da Constituição Federal alterou seu posicionamento e passou a equiparar a redução da base de cálculo do imposto à isenção, conferindo legitimidade à exigência de estorno proporcional de crédito feita pelo Estado de São Paulo ao contribuinte.
Entendeu-se que a redução da base de cálculo corresponde à isenção parcial, espécie do gênero isenção, sendo abrangida pela vedação ao crédito de ICMS contida no artigo 155, parágrafo 2º, inciso II, alíneas "a" e "b", da Constituição Federal.
O Ministro Cezar Peluso, no seu voto, consignou que a redução da base de cálculo e a isenção não são mecanismos distintos e que a questão é simplesmente de grau, sendo coerente a equiparação dos dois institutos.
Com essa equiparação das figuras tributárias, a maioria dos Ministros enquadrou a redução da base de cálculo na primeira hipótese de limitação constitucional ao direito a crédito, qual seja, a isenção.
Por outro lado, o Ministro Marco Aurélio, divergindo dos demais Ministros, defendeu que deve haver direito a crédito de ICMS ainda que a operação de circulação de mercadorias esteja acobertada pelo manto da isenção.
Para chegar a esse entendimento o ilustre Ministro explicitou que a isenção de imposto não-cumulativo, em qualquer das etapas do ciclo produtivo, anterior ou posterior, teria a natureza de simples diferimento se não fosse assegurado ao adquirente da mercadoria isenta o crédito do valor do imposto a ela referente.
E argumentou que, para a eficácia do princípio da não-cumulatividade, a isenção do imposto deveria equivaler ao seu pagamento. O voto do Ministro Marco Aurélio, porém, restou vencido no julgamento em tela.
A decisão do Supremo Tribunal Federal é suscetível a críticas, pois os institutos redução da base de cálculo e isenção mostram-se completamente diferentes.
Conforme restou explanado, a isenção impede o nascimento da obrigação tributária, ao passo que a redução da base de cálculo somente diminui o montante devido, tendo a obrigação tributária nascido normalmente.
Verifica-se a impropriedade de se falar em isenção parcial, eis que não há como admitir a existência de uma isenção que permita o nascimento da obrigação tributária apenas de forma parcial.
Frise-se ou a isenção é total, impedindo o nascimento da relação jurídica tributária ou não se pode falar em isenção.
Se a redução da base de cálculo fosse uma espécie de isenção não haveria imposto a recolher, eis que a norma de isenção impede totalmente a incidência da norma de tributação do ICMS.
Assim, resta claro que a redução da base de cálculo não pode ser comparada à isenção e, portanto, não se enquadra nas hipóteses de mitigação do direito ao crédito do ICMS, enumeradas pela Constituição Federal de 1988.
O Supremo Tribunal Federal ao ampliar as hipóteses de vedação ao direito a crédito de ICMS atuou em descompasso com a Constituição Federal brasileira.
O texto constitucional ao estatuir que as limitações constitucionais ao direito a crédito poderão ser afastadas por legislação em contrário, atribuiu competência ao legislador infraconstitucional apenas para ampliar o direito a crédito e não para mitigar esse direito.
O constituinte, quando da elaboração da Lei Maior, esgotou as hipóteses de vedação ao direito a crédito, não podendo o Poder Judiciário no caso, a Corte Suprema, incluir hipótese de vedação não mencionada pelo texto constitucional.
Sendo o princípio da não-cumulatividade uma garantia constitucional conferida ao contribuinte, os operadores do direito devem pugnar pela sua efetividade e não ampliar as limitações impostas pela Carta Magna ao direito a crédito.
De todo o exposto, conclui-se que o Supremo Tribunal Federal andou mal ao proferir decisão no sentido de que a redução da base de cálculo enquadra-se em uma das hipóteses de limitação constitucional ao direito a crédito de ICMS, determinando o estorno proporcional do crédito pelo contribuinte ao Fisco.
O festejado princípio da não-cumulatividade, constitucionalmente previsto, teve sua eficácia restringida por conta da decisão da Suprema Corte brasileira.