Resumo
O presente artigo aborda os contornos das máximas constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade, procurando apresentar uma visão panorâmica dos principais aspectos relacionados aos traços de diferenciação, conceito, conteúdo, natureza jurídica, estatura normativa constitucional, evolução e concretização enquanto parâmetros argumentativos de especial relevância para o discurso jurídico contemporâneo. A razoabilidade e a proporcionalidade assumem um papel central no debate jurídico atual, sobretudo no discurso judicial, funcionando como um importante fator de legítima racionalização e justificação das decisões. Estas são algumas das discussões inseridas no presente estudo.
Palavras-Chave: princípios constitucionais, razoabilidade, proporcionalidade, argumentação jurídica.
1. Considerações Iniciais
A metodologia constitucional, como de resto toda a cultura jurídica contemporânea, vem sofrendo uma profunda reestruturação em suas bases teóricas, bem como na interação com os diversos fatores que compõem a sociedade atual. A paulatina consolidação do neoconstitucionalismo [01] – sinal indelével de uma sensível superação das teses centrais do positivismo jurídico – tem refletido viva e fecundamente na consolidação de uma moderna teoria da Constituição, pautada pela força normativa dos princípios constitucionais, a eficácia dos direitos fundamentais e a supremacia da ordem constitucional.
A superação do positivismo jurídico torna inequívoca a importância central dos princípios constitucionais na consolidação de um efetivo Estado constitucional de direito. A partir de algumas das principais idéias que informam o pós-positivismo [02], sobretudo a fusão entre Direito e moral e a força normativa dos princípios constitucionais, resta a possibilidade de superação do modelo juspositivista dominante até as últimas décadas do século XX. O combate à posição coadjuvante que o positivismo jurídico reserva aos princípios jurídicos – reduzidos a fontes normativas subsidiárias – desponta como condição sine qua non à consolidação de uma efetiva teoria material da Constituição.
No neoconstitucionalismo os princípios jurídicos são alçados à condição de verdadeiras espécies normativas. Servem como base de sustentação lógica e axiológica a todo o ordenamento, na medida em que reforçam as idéias de ordem e unidade sistemática, funcionando como vias de inter-relação entre o Direito e a moral. Os princípios devem ser considerados como as janelas por onde a moralidade é irradiada para dentro do ordenamento jurídico, um canal aberto ao diálogo constante entre os discursos prático e jurídico.
Este contexto de consolidação do neoconstitucionalismo é de extrema fecundidade ao estudo da razoabilidade e da proporcionalidade, aqui definidas como verdadeiras máximas, cânones de interpretação, parâmetros de aferição da ordenação racional do sistema jurídico e da atuação do Poder Público.
Cabe, desde já, ressaltar que o presente trabalho afasta a relação de sinonímia entre as máximas da razoabilidade e da proporcionalidade, porquanto expressam construções técnico-jurídicas diversas, com pontos de especificidades tanto nas questões de origem, como nos aspectos de estrutura e aplicação.
A razoabilidade será analisada desde as origens históricas até sua consolidação enquanto parâmetro de conformidade substancial e teleológica dos atos do Poder Público. Pela máxima da razoabilidade é ultrapassada a análise da legalidade puramente formal da atividade do Poder Público, alcançando a legalidade substancial – ou melhor – as questões ligadas à juridicidade das leis e dos atos administrativos.
A proporcionalidade ganha relevo a partir do estudo de seus elementos constitutivos: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Pela máxima da adequação, é avaliado se a medida adotada está conforme aos fins previstos na lei, se é apropriada ao alcance dos objetivos dispostos no mandamento normativo. A máxima da necessidade exige que a providência eleita, dentre aquelas aptas à consecução dos objetivos pretendidos, desponte como a menos onerosa aos cidadãos, que traga a menor carga de restrição aos direitos fundamentais dos cidadãos. Sendo adequada e necessária, a intervenção adotada pelo Poder Público ainda deve vencer a máxima da ponderação. Muito embora adequadas e necessárias, algumas medidas podem trazer uma carga excessiva de restrições e limitações a direitos fundamentais. A máxima da ponderação ou proporcionalidade em sentido estrito exige uma relação de justa medida entre os valores restringidos e os efetivados pela medida limitadora. Quanto maior a limitação ao direito dos cidadãos, maior deverá ser a efetivação do direito resguardado.
O estudo adequado da razoabilidade e da proporcionalidade exige a rediscussão e a redefinição da hermenêutica constitucional clássica, pautada pela lógica formal-positivista, avançando-se para uma nova hermenêutica constitucional, vivificada pelo raciocínio tópico retórico e pela aplicação da máxima da proporcionalidade [03].
2. A razoabilidade e a proporcionalidade enquanto máximas
A consolidação de um efetivo Estado constitucional exige, inexoravelmente, um modelo de Estado de direito marcado por uma Constituição efetivamente garantista. Uma Constituição definidora dos fundamentos e objetivos norteadores das ações estatais, com força vinculante acerca das políticas públicas necessárias a sua consecução. Uma carta política asseguradora de direitos e garantias fundamentais – e o mais importante – capaz de impor aos poderes constituídos a inarredável obrigação de implementá-los.
Diante desse quadro jurídico-constitucional, o estudo da razoabilidade e da proporcionalidade ganha considerável relevo, porquanto possibilitam um exame da atividade dos produtores das leis e de seus aplicadores que supera em larga medida os aspectos da estrita legalidade.
Pelas máximas da razoabilidade e proporcionalidade pode-se aquilatar a conformação das atividades legislativa, administrativa e judicial do Estado com os valores e interesses inscritos, expressa ou implicitamente, na Constituição. Constituem-se, portanto, em verdadeiros limites à atuação do Poder Público, exigindo-lhe a fiel observância não apenas da lei em sentido estrito – princípio da legalidade estrita, mas de todo o ordenamento jurídico – princípio da juridicidade.
Neste trabalho, a razoabilidade e a proporcionalidade serão tratadas como verdadeiras máximas, cânones de interpretação. Entretanto, não se pode olvidar que são comumente designadas como princípios jurídicos. Por certo, sua designação terminológica como princípios constitucionais não se coaduna com aquele conceito alicerçado na teoria de Robert Alexy – enquanto espécies normativas contrapostas às regras jurídicas. Nos termos da doutrina do jurista alemão as regras expressam deveres definitivos, contendo determinações no âmbito do fática e juridicamente possível, somente podendo ser cumpridas ou não. Em contrapartida, os princípios expressam deveres prima facie, ordenando a máxima realização de determinado direito, conforme as possibilidades reais e jurídicas existentes. Seu conteúdo definitivo somente pode ser fixado após o sopesamento com outros princípios também aplicáveis à determinada situação, constituindo-se em verdadeiros mandamentos de otimização [04].
Resta, portanto, evidente a impropriedade terminológica consubstanciada na designação da razoabilidade e da proporcionalidade como princípios, porquanto ambas não entram em disputa com outros princípios constitucionais, em uma relação de precedência condicionada às peculiaridades fáticas e jurídicas do caso concreto. Configuram-se em parâmetros, critérios e padrões de interpretação que possibilitam o sopesamento entre princípios constitucionais contrapostos e a verificação da legitimidade e juridicidade dos atos legislativos, administrativos e judiciais.
Parece mais correto defini-las como máximas, verdadeiros cânones de interpretação, parâmetros de aferição da ordenação lógica e racional do sistema jurídico e da atuação do Poder Público. Segundo a teoria de Alexy, que divide as normas jurídicas em regras e princípios, as três máximas que compõem a proporcionalidade se afastam do conceito de princípios jurídicos enquanto mandamentos de otimização, podendo ser catalogadas como regras [05].
A questão da definição da razoabilidade e da proporcionalidade é enfrentada por Humberto Ávila de forma bastante coerente e inovadora. Segundo o autor, ambas não podem ser enquadradas nem na categoria de princípios e nem na categoria de regras. Não se pode considerá-las princípios, porque estes são definidos como normas imediatamente finalísticas, "normas que impõem a promoção de um estado ideal de coisas por meio da prescrição indireta de comportamentos cujos efeitos são havidos como necessários àquela promoção". Da mesma forma, não podem ser catalogadas como regras, porquanto estas "são normas imediatamente descritivas de comportamentos devidos ou atributivas de poder" [06].
Neste sentido, Ávila defende que razoabilidade e proporcionalidade devem ser entendidas como postulados normativos, superando-se o âmbito das normas para adentrar no terreno das metanormas. Há que se considerá-las como normas de segundo grau que informam a estrutura de aplicação das outras normas – as regras e os princípios. Não se pode falar, portanto, em violação dos postulados da razoabilidade ou proporcionalidade, mas sim em violação de regras e princípios que não foram aplicados conforme os referidos postulados, cuja interpretação foi empreendida em desacordo com sua estruturação. Em última análise, há que se entender os postulados normativos aplicativos como "deveres estruturantes da aplicação de outras normas" [07].
Os postulados, diversamente dos princípios, não impõem a promoção de um fim, mas sim estruturam a aplicação do dever de promover um fim; não prescrevem indiretamente comportamentos, mas sim raciocínios e argumentações relativos às normas que indiretamente prescrevem comportamentos. Da mesma forma, diferentemente da regras, os postulados não descrevem comportamentos, mas sim estruturam as normas que o fazem; não estão limitados à mera atividade de subsunção como ocorre com as regras, exigindo a ordenação e a relação entre vários elementos e não a simples análise da correspondência entre a hipótese da norma e a situação fática [08].
A defesa da razoabilidade e da proporcionalidade enquanto postulados normativos aplicativos, ressalvadas algumas peculiaridades, mostra-se bastante aproximada da idéia de máxima aqui defendida, ou seja, parâmetros de aferição da ordenação teleológica e racional das normas que compõem o sistema jurídico. Por outro lado, não é o nome que determina a natureza jurídica do instituto e querer remodelar a terminologia aplicada à razoabilidade e à proporcionalidade seria fazer olhos cegos à já consolidada cultura jurídica nacional. Entretanto, não obstante o tratamento consolidado na doutrina nacional, ambas serão designadas como máximas constitucionais.
3. A não sinonímia entre razoabilidade e proporcionalidade
Antes de se empreender o exame mais aprofundado e individualizado da razoabilidade e da proporcionalidade, que devem ser entendidas como verdadeiras máximas, parâmetros de interpretação acerca da validade e legitimidade da atuação legislativa e administrativa do Estado, faz-se mister abordar algumas peculiaridades que afastam a sua sinonímia, porquanto expressam construções técnico-jurídicas diversas.
Não se pode nega, por certo, que ambas apresentam forte semelhança, sobretudo no que toca à finalidade da sua aplicação, controlar e limitar a atuação do Poder Público. A aparente sinonímia é reforçada pela similaridade com que estes termos são usados na linguagem não-jurídica. Dizer que determinada situação ou atitude é desarrazoada ou desproporcional sugere a mesma idéia de reprovação. Até mesmo no meio jurídico, desde que empregados em um sentido laico, os dois termos podem encerrar o mesmo significado [09].
Na doutrina nacional a relação de sinonímia é defendida por inúmeros autores, que entendem não haver qualquer diferença no tratamento entre as duas máximas, por eles entendidas como princípios [10]. Ambas teriam o mesmo significado, havendo apenas diferença de nomenclatura, mas identidade de conteúdo e finalidade. A proporcionalidade do Direito alemão seria o equivalente terminológico da razoabilidade estadunidense. No entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello, a proporcionalidade nada mais é que uma faceta da razoabilidade [11].
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF também não faz diferença entre as duas máximas, referindo-se, por vezes, à razoabilidade e à proporcionalidade notoriamente como sinônimas [12]. Essa postura jurisprudencial tem contribuído negativamente para o efetivo estabelecimento dos contornos e especificidades técnico-estruturais dos dois institutos, reforçando a idéia da identidade plena.
Uma primeira diferença está na origem dos institutos. Enquanto a origem da razoabilidade remonta a Magna Carta inglesa de 1215 [13], a proporcionalidade é fruto da tentativa de limitação do poderes estatais, contemporâneos à passagem do Estado absolutista para o Estado de direito, tendo aplicação primeiramente no Direito Administrativo alemão.
Outro ponto que afasta a sinonímia entre a razoabilidade e a proporcionalidade relaciona-se a sua estrutura e aplicação. Enquanto a primeira constitui-se em pauta que exige que os atos estatais sejam razoáveis, devendo apresentar adequação entre meios e fins, a segunda foi desenvolvida pelo Tribunal Constitucional alemão em três níveis independentes e que devem ser ordenadamente aplicados na análise da legitimidade das leis ou atos do Poder Público: a adequação, a necessidade e a ponderação [14].
Levando em conta a estrutura técnico-jurídica, pode-se dizer que a razoabilidade corresponde ao primeiro dos três níveis que compõem a proporcionalidade, a exigência de adequação, de relação lógica e ordenada entre os meios empregados e os fins perseguidos. Desta forma, resta imperioso admitir a maior amplitude da proporcionalidade, que não se esgota na análise da compatibilidade entre meio e fins [15].
Certamente, não há intenção de negar a existência de semelhanças entre os dois institutos. Pretende-se sim, uma mais apurada análise dos mesmos, com suas especificidades estruturais, de origem e de conteúdo, até como mecanismo de otimização de sua aplicação pelos tribunais, possibilitando, ainda, uma melhor compreensão doutrinária. Na seqüência serão abordadas, com maior afinco, as alegadas especificidades e disparidades entre essas duas máximas constitucionais.
4. A máxima da razoabilidade
A máxima constitucional da razoabilidade está fortemente enraizada no ordenamento jurídico contemporâneo, fazendo parte de inúmeros sistemas normativos. Em diversos países consta expressamente na Constituição, sendo que em outros tantos é implicitamente reconhecido, ressaindo da própria ordem constitucional vigente.
No ordenamento constitucional brasileiro, há que se considerá-la como máxima constitucional expressa, que encontra sua "sedes materiae" na disposição normativa que disciplina o devido processo legal, o artigo 5°, LIV da CRFB, segundo o qual "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Não se pode olvidar que a cláusula do devido processo legal, conforme disposta na CRFB, encerra não somente o devido processo legal em seu caráter processual, mas principalmente o devido processo substantivo, onde descansa hialina a máxima da razoabilidade. Portanto, a razoabilidade está expressamente prevista na Constituição brasileira, a salvo de qualquer investida do poder constituinte derivado, porquanto amparada pela blindagem do artigo 60, § 4°, IV da CRFB, que veda expressamente a deliberação de proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias fundamentais.
A matriz jurídico-filosófica da razoabilidade é a cláusula do "due process of law", que se desenvolveu a partir do direito anglo-saxônico. Sua garantia, que em um primeiro momento restringiu-se a aspectos marcadamente processuais ("procedural due process"), evoluiu lenta e progressivamente para um âmbito substantivo ("substantive due process"), uma espécie de degrau evolutivo daquele [16].
A análise do conteúdo e dos contornos da razoabilidade exige o apanhado histórico de sua origem e evolução. Impende, portanto, traçar a trajetória da cláusula do "due process of law", desde o seu nascimento no direito anglo-saxônico até a substantivação pelo Direito estadunidense.
4.1. Origem e evolução da cláusula do "due process of law"
A formulação dos princípios que regem, modernamente, o ordenamento constitucional inglês, teve seu marco inicial na evolução da estrutura feudal britânica, em meados do século XI. As tensões sobre o arbítrio real culminaram no reinado de João Sem Terra, que, incapaz de resistir às pressões dos senhores feudais – verdadeira revolução política e social que se vinha avolumando desde a "Pequena Carta" – viu-se forçado a outorgar a "Magna Carta" em 1215. Este documento se consolidou enquanto estatuto fundamental do Direito inglês, estabelecendo os princípios básicos de sua estruturação política e jurídica. Cumpre esclarecer, todavia, que aquela carta política não "visava proteger os direitos individuais do cidadão", muito embora tenha sido um de seus reflexos. Foi concebida sim, essencialmente, "como um complexo limitador apenas da ação real e jamais do Parlamento" [17].
A Magna Carta inglesa, em seu capítulo 39, assegurava aos senhores feudais a inviolabilidade de seus direitos relativos à vida, liberdade e propriedade, cuja supressão só se daria por meio da "lei da terra" ("per legem terrae" ou "law of the land"). Passados alguns séculos, a expressão "per legem terrae" acabou, por motivos ignorados, sendo substituída pela expressão "due process of law", como encontrada na famosa "Petition of Rights" de 1628. A matriz do devido processo legal, portanto, remonta à "lei da terra" inscrita na Magna Carta [18].
Há que se considerar, por outro lado, com certa ressalva esse lugar de destaque emprestado à Magna Carta, como expressão primeira da cláusula do devido processo legal e estatuto fundamental do Direito inglês. Existem consideráveis controvérsias acerca do seu status de fonte informadora basilar do conjunto de direitos fundamentais que compõe o sistema jurídico anglo-saxônico. Esse verdadeiro mito consolidado em torno da Magna Carta acaba exacerbando sua real importância. Segundo uma versão histórica, o documento assinado no século XIII foi imediatamente descumprido pelo Rei João Sem Terra e rapidamente alcançou o esquecimento, somente sendo resgatado tempos mais tarde, em meados do século XVII [19].
No início, a cláusula do devido processo legal exigia simplesmente um processo judicial compatível à natureza do caso. Um processo ordenado, onde restasse assegurado aos litigantes ou acusados a previsão de atos processuais formalizados. Realmente, em um primeiro momento evolutivo, ressai o nítido caráter processual da norma. Somente por volta do século XVII é que o Direito inglês passou a reconhecer na cláusula do "due process of law" a garantia ao contraditório, com a prévia citação à demanda, e a oportunidade à defesa.
A garantia do devido processo legal, no Direito estadunidense, teve sua separação do Direito inglês com as inúmeras declarações de direitos das colônias americanas durante as lutas pela independência. "De fato, é nesse ensejo que o princípio se desliga de sua matriz inglesa e passa a integrar o sistema jurídico americano, numa trajetória que o transmudaria no mais fecundo de quantos instrumentos se criaram para a defesa de direitos individuais" [20].
A Constituição dos Estados Unidos da América de 1787, ainda que sentida, "no plano federal, a necessidade de se circunscrever a esfera privativa dos direitos individuais, imunes à interferência da União recém-organizada", não trouxe qualquer referência expressa à cláusula do "due process of law". Somente em 1791 é que tais garantias foram perfeitamente cristalizadas pelo texto da V Emenda Constitucional, segundo a qual "ninguém será privado da vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal". O conjunto de emendas à Constituição estadunidense, em número de dez, ficou conhecido como "Bill of Rights" [21].
O preceito estabelecido no texto da V Emenda, no entanto, vinculava apenas o Governo Federal. Sua abrangência era limitada, já que não obrigava o Governo dos Estados federados. Com a Guerra de Secessão, abalada a União em sua unidade, sentiu-se a necessidade de fortalecê-la mediante a centralização de poderes, fazendo-se imprescindível garantir a igualdade jurídica aos escravos dos Estados do Sul. Neste contexto histórico, em 1868 incorporou-se à Constituição estadunidense a XIV Emenda, vinculando os Estados federados às limitações previstas na cláusula do devido processo legal. Restou prescrito que "nenhum Estado privará qualquer pessoa da vida, liberdade, ou propriedade, sem o devido processo legal" [22].
Neste período, o princípio do devido processo legal ainda era visto apenas como uma norma de caráter processual, situação que se configurou em uma primeira fase do princípio no Direito estadunidense. Mas foi na fase do "substantive due process" que essa garantia se tornou fundamento de um criativo exercício de jurisdição constitucional [23].
4.2. A razoabilidade e o sentido substantivo do devido processo legal
Vencida a primeira fase, onde o princípio do devido processo legal buscava assegurar a regularidade processual, uma garantia à observância de certas formalidades procedimentais, a evolução jurisprudencial da Suprema Corte estadunidense conferiu nova roupagem à cláusula do "due process of law", que passou de instituto processual à garantia substantiva de direitos individuais.
O "substantive due process", juntamente com outros princípios constitucionais como a igualdade e a idéia de justiça, tornou-se instrumento importantíssimo na defesa dos direitos individuais, ferramenta limitadora do exercício arbitrário do Poder Legislativo e da discricionariedade administrativa. O controle da razoabilidade das leis e dos atos administrativos discricionários permitiu ao Poder Judiciário examinar os atos legislativos e administrativos sob o prisma da justiça, não só formal, mas sobretudo material.
Parece forçoso admitir que a máxima da razoabilidade encontra seu fundamento de aplicação, em última análise, no Direito natural, em decorrência de sua origem marcadamente influenciada pelas concepções jusnaturalistas do Direito estadunidense, em uma clara interação às idéias do liberalismo clássico. A razoabilidade – evolução material dos princípios da igualdade e da justiça processual – não se constitui em expressão de uma norma abstrata e superior. Pelo contrário, decorre da enunciação de valores históricos e relativos. Daí o caráter jusnaturalista defendido, que prescinde até da sua normatividade [24].
A doutrina estadunidense do "substantive due process" começou a ser delineada no final do século XIX, como reação ao intervencionismo estatal na ordem econômica. Pode-se dizer que, em um primeiro momento, a máxima da razoabilidade teve cunho eminentemente liberal, um meio de diminuir a interferência do Poder Público nos negócios privados [25]. Posteriormente, no Governo do Presidente Franklin Roosevelt, em meados de 1930, sua aplicação sofreu sensível declínio, em face do aumento do intervencionismo estatal na economia e abdicação pela Suprema Corte, cedendo a pressões do Governo, do exame de mérito das normas de cunho econômico. Finalmente, em um terceiro momento, ascendeu como garantia constitucional aos direitos individuais, instrumento de controle dos atos arbitrários e injustos praticados pelo Legislativo e pela Administração Pública [26].
Certamente, até em razão da vagueza e indeterminação do termo jurídico, não é tarefa fácil estabelecer um conceito com pretensões de universalidade à máxima da razoabilidade. Seu conteúdo é bastante mutável e consideravelmente influenciado pelos padrões culturais da sociedade, variando nos aspectos temporais e espaciais [27]. Entretanto, ainda que reconhecido seu alto grau de abstração, deve-se perseguir a instituição de elementos objetivos na caracterização da razoabilidade dos atos legislativos e administrativos.
Deve-se, por certo, fixar certas circunstâncias, determinados fins que para serem atingidos demandam o emprego de determinados meios. Conforme Luiz Roberto Barroso, o princípio (máxima) da razoabilidade constitui-se em parâmetro de conformidade entre os atos do Poder Público e o valor superior da justiça que informa todo o ordenamento jurídico [28].
Segundo Juan Francisco Linares, ao termo razoabilidade podem ser emprestados diferentes significados jurídicos: desde significados técnico-jurídicos, quando se fala em meios razoáveis para alcançar determinado fim; axiológicos, quando se busca o fundamento dos valores específicos do plexo axiológico; e ligados à ciência do Direito, quando se busca a razão suficiente de uma conduta compartilhada [29].
A pluralidade de sentidos do termo razoabilidade é também reconhecida por Ávila, para quem se pode falar "em razoabilidade de uma alegação, razoabilidade de uma interpretação, razoabilidade de uma restrição, razoabilidade do fim legal, razoabilidade da função legislativa". De todas as possíveis acepções, o autor destaca as seguintes: "razoabilidade como eqüidade" – diretriz que exige a relação das normas gerais com as individualidades do caso concreto, tanto mostrando como a norma deve ser aplicada como indicando as hipóteses em que o caso individual não se enquadra na norma geral; "razoabilidade como congruência" – diretriz que exige uma ligação das normas jurídicas com a realidade, "seja reclamando a existência de um suporte empírico e adequado a qualquer ato jurídico, seja demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir"; e, "razoabilidade como equivalência" – diretriz que "exige uma relação de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona" [30].
A máxima constitucional da razoabilidade é uma orientação, uma diretiva interpretativa que permite a aferição acerca da legalidade substancial dos atos administrativos e legislativos, não o mero controle formalístico. Permite alcançar o sentido finalístico da norma, a conformidade teleológica entre o ato praticado e o mandamento normativo. Não a simples legalidade formal, em sentido estrito, mas a legalidade material, ou melhor, a juridicidade das leis e dos atos administrativos.
A busca de um conceito mais preciso e menos elástico não parece ostentar maior conveniência. Não se pode olvidar que o alto grau de indeterminação e a imprecisão conceitual são traços comuns e essenciais aos princípios e também às máximas jurídicas. O aprisionamento da razoabilidade em um conceito fechado e preciso acabaria por engessar sua aplicação no controle da juridicidade dos atos do Poder Público.
Os princípios jurídicos, enquanto canais de dialogo e interação entre o ordenamento jurídico positivo e a sociedade marcada pela extrema dinamicidade e complexidade, não devem ser confinados em uma disposição conceitual fechada e restritiva. A abertura e a indeterminação conceitual otimizam o desempenho de uma de suas principais funções, recepcionar as transformações processadas no seio da comunidade e, por vezes, estancá-las se afastadas do cerne substancial do ordenamento constitucional.
Uma discussão jurídico-filosófica bastante interessante acerca da definição de razoabilidade é empreendida por Atienza, quando procura estabelecer elementos para uma razoável definição de "razoável". Segundo o autor, a noção de razoabilidade é um componente comum dos conceitos jurídicos indeterminados, conceitos que resultam da aplicação, a campos distintos, de um mesmo conceito básico, o de razoabilidade. A afirmação de que este conceito no Direito é uma "noção de conteúdo variável" ou um "valor função", deve ser entendida tanto em um sentido histórico ou social – o que se entende como razoável está sujeito a circunstâncias temporais e especiais, como em um sentido lógico – o que se considera razoável em cada caso depende do seu campo de aplicação [31].
Defendendo sua importância prática central na argumentação jurídica e na interpretação do Direito, Atienza situa a noção de razoável enquanto diversa da "estritamente racional", separando a razoabilidade da lógica do racional, a lógica formal. A lógica do razoável é uma lógica material, uma lógica dos conteúdos. Não que autor contraponha o razoável ao racional, o que obrigaria a aceitar que o razoável não é racional. Em um sentido amplo, o razoável também é racional, ainda que o racional possa não ser razoável. Assim, pode-se dizer que todo o razoável é racional, mas a recíproca não é verdadeira [32].
Atienza concorda que a razoabilidade, enquanto conceito variável histórica e socialmente, admite uma pluralidade de possíveis soluções jurídicas, ou seja, que duas ou mais decisões judiciais podem ser todas razoáveis. O que o autor pretende é uma reconstrução do conceito de razoabilidade a partir da prática da argumentação jurídica, no sentido de estabelecer critérios que auxiliem na justificação da decisão judicial, um esquema de critérios que ajude a justificar uma determinada interpretação ou decisão como preferível às demais também razoáveis.
A tentativa de estabelecer critérios capazes de nortear a decisão mais razoável, a decisão jurídica preferível entre duas ou mais decisões razoáveis, sobretudo nos chamados casos difíceis, apresenta-se de extrema relevância e dificuldade. A razoabilidade é uma máxima naturalmente vaga e imprecisa, um termo jurídico aberto e oscilante histórica e socialmente. Desta forma, não se pode negar que, partindo de um hábil exercício argumentativo, quase todas as decisões jurídicas poderiam ser justificadas a partir da razoabilidade.
Em uma situação onde existe uma contraposição entre valores ou princípios, a decisão razoável deve ser alcançada a partir do sopesamento dos princípios contrapostos, visando uma situação de equilíbrio. Este equilíbrio raramente, ou nunca, será o meio termo, porquanto os princípios podem ostentar pesos distintos, o que exige o deslocamento do ponto de equilíbrio para um dos extremos da ponderação bipolar [33].
Conforme Atienza, a escolha da decisão mais razoável, a que melhor alcança o equilíbrio entre os princípios contrapostos, deve ser pautada segundo o parâmetro da aceitação pela comunidade ou, sendo ambas aceitáveis, a que suscite um maior consenso [34].
Um caminho para alcançar a decisão mais razoável dentre outras também razoáveis, isto partindo do pressuposto de que a razoabilidade é uma máxima que admite o cumprimento em diferentes graus, pode ser a busca de pontos de acordo entre as diversas argumentações que fundamentam as decisões judiciais razoáveis, mesmo sabendo-se que tais acordos somente são alcançados no caso de princípios de caráter muito abstrato [35].
Partindo agora para a discussão acerca dos níveis de razoabilidade de um ato normativo ou outra medida estatal, Barroso sustenta que deve ser aferida enquanto razoabilidade interna – compatibilidade entre meios e fins, e razoabilidade externa – legitimidade dos fins. A primeira exige uma relação racional entre seus motivos, meio e fins. A razoabilidade deve ser cotejada dentro da lei. Constatada a regularidade interna da norma, há que se verificar sua adequação aos meios e fins preconizados pelo texto constitucional, a razoabilidade externa. Ainda que internamente razoável, se contrária aos valores e princípios albergados pela Constituição, a medida eleita deverá ser considerada desarrazoada [36].
Por conta de todas as dificuldades no estabelecimento de critérios hábeis à aferição gradual da razoabilidade, critérios que possibilitem a eleição da decisão mais razoável, pode-se dizer que ao Poder Judiciário não compete exercer um juízo positivo acerca da razoabilidade das leis e dos atos da Administração Pública. Incumbe-lhe, sim, a invalidação da atividade pública contrária à máxima da razoabilidade. Não se pode, por outro lado, afirmar que a razoabilidade constitui-se em fundamento suficiente à aferição da validade de determinado ato, porquanto afora o vício de razoabilidade outros podem contaminar a atividade legislativa e administrativa.