Capa da publicação Atentado terrorista: análise do contrato de seguro
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O contrato e a semântica, a semântica do contrato.

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5. O ACORDO

O ordenamento jurídico norte-americano é totalmente particular, e pauta-se por um sistema misto da Common Law e Civil Law, embora as características daquela prevaleçam sobre as desta[27]. Assim, a diferença entre o sistema vigente no Direito dos Estados Unidos e o predominante no Brasil paira, exatamente, no método adotado por ambos, pois “enquanto no nosso sistema a primeira leitura do advogado e do juiz é a lei escrita e, subsidiariamente, a jurisprudência, na Common Law o caminho é inverso: primeiro os cases e, a partir da constatação de uma lacuna, vai-se à lei escrita.”[28]

Esses, denominados, cases são a mais pura essência da tradição jurídica anglo-saxã. Enraizam-se profundamente na pragmática, deixando, em segundo plano, o fruto legítimo da atividade legislativa. Dá-se ênfase ao “judge-made law”, em detrimento do “state law”.[29]

Especificamente ao caso das seguradoras do World Trade Center e do evento (ou dos eventos), os precedentes (a jurisprudência) foram fundamentais na obtenção de um acordo. O caminho percorrido foi (ou deveria ter sido) o seguinte:

se meios alternativos de resolução de conflitos falharem, a lei do contrato solucionará a disputa. Sob o ordenamento jurídico de Nova Iorque, apólice de seguro é um contrato pelo qual o tribunal irá interpretar conforme a vontade mútua das partes. Os tribunais devem se esforçar para averiguar a real intenção dos contratantes. Para tanto, deverão, inicialmente, interpretar a simples redação do contrato e, só então, considerar os aspectos extrínsecos a ele (por exemplo, regras de mercado e histórico de negociações). Caso esse método não prospere, ou seja, se a linguagem do contrato restar ambígua, o tribunal interpretará o contrato de forma a torná-lo coerente com as razoáveis expectativas do segurado à época de sua celebração. Se esse método também não funcionar, então a cláusula é genericamente interpretada contra a parte responsável pela redação imprecisa.[30]

Acontece que a jurisprudência já trazia algumas formas de interpretação das imprecisões nas, assim chamadas cláusulas “per occorruence”, que se dividem em três: prova de causa, prova de efeitos e prova de caso fortuito.[31]

A prova de causa, majoritariamente utilizada pela jurisprudência estadunidense, define que múltiplos danos provenientes diretamente de uma ação são tratados como um único evento, independentemente de quantos sejam esses danos. Já a prova de efeitos leva em consideração o número de danos sofridos, para definir o total de eventos consolidados. Finalmente, a prova do caso fortuito, adotada pelos tribunais de Nova Iorque, destaca o standard do homem médio e da sua definição de caso fortuito, ou seja, quantos forem os casos fortuitos considerados pelo padrão de homem médio, tantos serão os eventos seguráveis.

Diante dessas interpretações e de todo o complexo emaranhado de teses e argumentos levantados por Silverstein, de um lado, e pelas seguradoras, de outro, no dia 23 de maio de 2007, o caso finalmente foi decidido por um acordo entre as partes.

Inicialmente, Silverstein havia ajuizado ação, questionando o teto indenizatório de US$ 3,5 bilhões, previsto pela apólice de seguro que cobria possíveis danos ao World Trade Center. Naquele mesmo ano, mesmo reconhecendo a ocorrência de dois eventos, a corte norte-americana responsável pelo caso estipulou que a indenização não poderia ultrapassar o montante de US$ 4,6 bilhões, muito além da proposta das seguradoras (3,5 bilhões de dólares) e muito aquém do pedido de Silverstein (US$7 bilhões).

O acordo se dividiu em duas partes: primeiro, houve um consenso entre Silverstein e parte das 25 resseguradoras, que assumiriam o pagamento de algo em torno de US$ 2,5 bilhões. Em seguida, um novo acordo, dessa vez com sete das resseguradoras[32], estipulou uma nova indenização de mais US$ 2 bilhões.

Ao final, Silverstein teve sua tese acatada (do ataque terrorista ao complexo do WTC ter-se configurado em dois eventos distintos), mas acabou levando a singela quantia de US$ 4,6 bilhões. Esse dinheiro, segundo o empresário, será revertido à construção, no local onde existia o World Trade Center, da chamada Torre da Liberdade, um arranha-céu de 541 metros, cujas obras já se iniciaram e têm previsão de término para 2012.


6. CONCLUSÃO

Independentemente de se dar razão aos advogados do arrendatário, é inegável que, no direito contratual brasileiro, a boa-fé é elemento fundamental, tanto para a conclusão do negócio, quanto para a sua execução.

Pelo que se viu, a formação da apólice, ou, na verdade, do pré-contrato, na falta de unificação daquela entre as seguradoras, visava a proteger um valor segurável de US$ 3,55 bilhões para cada evento que danificasse o complexo.

Assim, abriu-se possibilidade para as partes, na falta de uma definição precisa de “occurrence”, e usando-se das circunstâncias factuais (concorrentes ao país, vítima maior dos atentados terroristas), alterarem a semântica de terminologia do contrato, com o fim de beneficiarem-se, não obstante terem, a princípio, procurado assegurar-se da cobertura que melhor lhes convinha.

Parece ser impossível se querer julgar um caso determinado de Commom Law à luz do nosso ordenamento jurídico, tão peculiar que é. Porém, vale a reflexão sobre a mudança semântica de certo termo, em vista da situação fática relacionada com o contexto em que se insere.

É fato que os casos de Direito Civil, no direito norte-americano, podem ser julgados por júri popular (o que para nós, à primeira vista, parece impensável). Assim, o que se observa no resultado do caso – como se viu, o patamar do acordo firmado foi maior que o valor que seria devido a uma indenização, embora aquém do pedido inicial – é o receio das seguradoras em permitir que aqueles mais afetados pelo principal atentado terrorista do século XXI pudessem determinar o sentido de ocorrência em face ao que fora determinado no contrato. Receio maior ainda, porque a decisão da Corte Sul de Nova Iorque poderia vincular outros litígios, criando precedentes questionáveis.

Desde o surgimento do Direito (se se puder definir, exatamente, um momento em que o Direito passou a existir), ele sempre se mostrou como uma ciência social. Ou seja, as peculiaridades da sociedade em que é aplicado, bem como as idiossincrasias de quem sofre seus efeitos, estabelecem, decisivamente, os limites e contornos da ciência jurídica. Exatamente por isso, não se parece inteligível imaginar que um prédio ou monumento público brasileiro, arrendado por particular, seja destruído por um atentado terrorista, principalmente em vista de nossas relações diplomáticas, quando comparadas com as norte-americanas. Menos ainda, quando se leva em consideração as dimensões do ocorrido com o Wolrd Trade Center (talvez, a decisão que declare o atentado como dois eventos esteja impregnada de um sentimento anti-terrorista, típico norte-americano, que no Brasil não é tão latente; poderia, assim, ser decidido aqui como um único evento).

Ainda assim, considerando-se essa hipótese, além dos argumentos usados por ambas as partes, poder-se-ia questionar qual a (“melhor”) resposta que o nosso ordenamento daria a tão esdrúxula situação?

Pela previsão dos artigos 462 a 466, do nosso Código Civil vigente, e pelas informações de que se dispõe, a apólice temporária obtida era uma espécie de contrato preliminar de seguro, que, como tal, já possuía, em certa medida, conteúdo necessário para a conclusão do negócio.

Assim, presentes os requisitos do Código Civil, de 2002, não se poderia negar efetividade ao contrato, ainda que a apólice não estivesse completa, já que, em princípio, os atos jurídicos unilaterais formadores do contrato eram existentes e válidos.

Quanto à vontade dos contratantes, é nela que se encontra o cerne da questão. A reclamação dos advogados pela configuração de dois eventos, ao questionar a hermenêutica do contrato em um sentido mais formalista, poderia ser interpretada como de má-fé, o que deslegitimaria tal pedido. Por outro lado, o protesto pela ocorrência de um único evento também poderia ser concebido nesse sentido, o que traria, novamente, um impasse insolúvel.

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Demonstradas as situações, calculados os riscos pelas seguradoras, com base na declaração do requerente nos formulários predispostos e por ser o direito securitário brasileiro extremamente indenizatório, não caberia a alegação do requerente, cabendo assim, inicialmente, apenas o pagamento simples.

Enfim, independentemente do final a que se levou o caso, é certo que, seja dentro ou fora do ramo securitário, a manifestação de vontade das partes influi mais em uma decisão que o mero texto contratual por elas consagrado.


7. BIBLIOGRAFIA

ALVIM, Pedro. O seguro e o Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

CANÇADO, Márcia. Manual de semântica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

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The Editors of Enciclopaedia Britannica. Law in America: how and why it works. Bantam Books: New York, 1979.

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Sobre os autores
Hugo Cremonez Sirena

Advogado em Curitiba (PR).

Rogério Alves Vilela

Advogado em Curitiba (PR).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIRENA, Hugo Cremonez ; VILELA, Rogério Alves. O contrato e a semântica, a semântica do contrato.: A análise de um atentado terrorista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3074, 1 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20546. Acesso em: 28 mar. 2024.

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