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“Não tem preço!”.

Como uma campanha publicitária pode influenciar a efetividade da jurisdição estatal?

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Magistrados se limitam a fixar elevados valores a título de multa diária, esquecendo-se da atipicidade dos meios de execução previstos no artigo 461 e 461-A do CPC, que, em várias situações, são mais efetivos para a parte autora e menos gravosos ao poder público.

"Existem coisas que o dinheiro não compra. Para todas as outras existe Mastercard." Esse slogan caiu no gosto do brasileiro, virou sucesso no mercado publicitário nacional e atingiu seu principal objetivo: divulgar e fidelizar a marca do mencionado cartão de crédito.

A campanha desenvolvida pela McCann Erickson, agência que cuida internacionalmente da conta da operadora de cartão de crédito, foi lançada em 1999 e propunha um novo jeito de encarar o ato de consumir. O consumo não deveria mais ser encarado por seu sentido frívolo de aquisição de bens, mas justificado pelo que produz emocionalmente nas pessoas.

E o que isso tem de relevante em termos jurídicos? Qual a correlação existente entre um processo judicial e uma campanha de marketing?

A princípio nada diretamente. Todavia, sob um enfoque estritamente utilitário do processo judicial, talvez a criatividade e versatilidade inerentes ao mundo publicitário possam ser aplicados pelos operadores do direito, sobretudo nas demandas de prestação em face do Poder Público.

Frequentemente nos deparamos com decisões judiciais concessivas de liminar, ou mesmo em sentenças concessivas de mandado de segurança, nas quais o Magistrado limita-se a impor multa diária como método de coerção indireta sobre o Administrador. Tais decisões visam o fornecimento de determinados bens da vida à população, tais como medicamentos, insumos hospitalares, inclusão de alunos em creches municipais, continuidade em concursos públicos, etc.

A grande questão que se coloca repousa justamente no método coercitivo que se tornou a grande panacéia no meio judiciário: a tão questionada multa diária, também conhecida como astreinte.

Com efeito, os Magistrados de um modo geral limitam-se a fixar elevados valores a título de multa diária, esquecendo-se completamente da atipicidade dos meios de execução previstos no artigo 461 e 461-A do Código de Processo Civil, meios estes que, em várias situações mostram-se mais efetivos para a parte autora e menos gravosos ao Poder Público.

A primazia da tutela específica que surgiu originalmente no art. 84 do Código de Defesa do Consumidor, sendo posteriormente incorporada ao Código de Processo Civil na reforma de 1994, representa avanço instrumental relevante, constituindo-se em poderosa ferramenta para a efetivação dos direitos fundamentas.

O que se tem verificado é que a multa diária fixada pelo Magistrado não possui o efeito coercitivo psicológico que dela se esperava, uma vez que recai sobre a Fazenda Pública, consubstanciando, em última análise, sanção que onera mais uma vez o contribuinte.

Em sendo assim, valendo-se de sua criatividade e responsabilidade social, cabe ao Magistrado, em cada situação específica, ponderar e optar pelo meio coercitivo mais adequado para assegurar as providências necessárias que assegurem o resultado prático equivalente à tutela jurisdicional postulada pela parte.

Em sede de mandado de segurança, resta, inclusive questionável a possibilidade de imposição de multa diária ao ente público, haja vista seu caráter mandamental de ordem, sem possibilidade de substituição por dinheiro.

Como ensina Hely Lopes Meirelles: "o mandado de segurança é ação mandamental e a execução da sentença concessiva da ordem é imediata, específica ou in natura, isto é, mediante o cumprimento da providência determinada pelo juiz, sem a possibilidade de ser substituída pela reparação pecuniária. O não atendimento do mandado judicial caracteriza o crime de desobediência a ordem legal (art. 330, do Código Penal), e por ele responde o impetrado renitente, sujeitando-se até mesmo a prisão em flagrante, dada a natureza permanente do delito." (Mandado de Segurança, São Paulo, Malheiros, 20ª edição, 1998, pag. 91/92)

Tal previsão foi inclusive positivada no art. 26 da Lei nº 12.016/2009, que também prevê a possibilidade de sanções administrativas decorrentes da caracterização de crime de responsabilidade ao gestor público contumaz no descumprimento de ordens judiciais, pondo fim à controvérsia doutrinária e jurisprudencial sobre a impossibilidade de o agente público ser sujeito ativo do referido delito.

Questão relevante diz respeito à ineficácia da imposição de multa diária ao Poder Público, sendo certo que, na maioria das situações, o descumprimento da ordem judicial não decorre de má fé por parte do servidor público, mas sim da demora inerente aos procedimentos administrativos burocráticos da máquina estatal.

Ademais, tendo em vista o disposto no art. 461, § 6º do Código de Processo Civil, o que se verifica ordinariamente, é redução do montante da multa cominatória quando de sua execução, haja vista a desproporção dos valores e a vedação do enriquecimento ilícito da parte autora em detrimento do interesse público.

Ainda que majorada a valores consideráveis como forma de obrigar o Poder Público ao cumprimento de determinada obrigação, se comprovado posteriormente que o inadimplemento decorreu de fatores imprevistos, ou ainda, que não houve má fé por parte da Administração, a tendência da jurisprudência nacional é proceder a redução de tal penalidade, acarretando com isso, o esvaziamento do sentido coercitivo da sanção.

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O fato é que a multa cominatória decorrente do descumprimento de ordem judicial, além de ser ineficaz para o autor da demanda, representará prejuízos ao próprio contribuinte, que será onerado com a utilização de recursos públicos para o pagamento da referida sanção processual, significando, em última análise, ofensa ao interesse público primário.

Ora, se houver descumprimento proposital por parte de agente público de ordem judicial, impõe-se sua responsabilização pessoal tanto na seara administrativa como civil, não parecendo justo ou razoável onerar indevidamente a coletividade por conta da desídia de alguns poucos.

Comprova-se, sem grande esforço, que a multa que onera o erário não possui efeito coercitivo sobre o agente público, pois este não suportará o ônus decorrente do descumprimento da ordem judicial.

Impõe-se a adoção de medidas judiciais que afetem diretamente a esfera de direitos do responsável pelo efetivo adimplemento da prestação postulada, seja ele servidor, gestor, administrador, delegado ou concessionário público.

Logicamente, não se pretende a responsabilização pessoal de agentes públicos ou mesmo a arbitrária prisão de procuradores estatais, quando a obrigação recai, inarredavelmente, sobre a pessoa jurídica acionada.

Não se pode transferir para a pessoa do servidor o cumprimento de obrigações, a efetivação de prestações ou consecução de políticas públicas inerentes à Administração, todavia, resta imprescindível verificar se no caso concreto não houve omissão deliberada ou retardamento no cumprimento dos deveres de oficio inerentes à função desempenhada.

Eventuais deslizes podem ser comunicados à corregedoria dos diversos órgãos públicos determinando-se a adoção de providencias administrativas ou disciplinares, assim como resta possível a comunicação aos órgãos legislativos para que seja apurada a caracterização de crime de responsabilidade dos detentores de cargos políticos.

Outrossim, do ponto de vista daquele que busca a prestação jurisdicional, nenhuma relevância terá a fixação de multa diária ou mesmo a responsabilização criminal e administrativa de agentes públicos, pois o que a parte deseja efetivamente, é a fruição imediata do bem da vida postulado.

O Superior Tribunal de Justiça, em inúmeros precedentes já fixou entendimento sobre a possibilidade até mesmo do sequestro de verbas públicas visando a aquisição e fornecimento de medicamentos em ações ajuizadas em face do Poder Público. (AgRg no Resp 1.002.335-RS, AgRg no Resp 935.083-RS, Resp 900.458-RS)

Conforme preleciona o Ministro Luiz Fux, no julgamento do Resp 869.843-RS, "(...) O art. 461, §5.º do CPC, faz pressupor que o legislador, ao possibilitar ao juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas assecuratórias como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial, não o fez de forma taxativa, mas sim exemplificativa, pelo que, in casu, o sequestro ou bloqueio da verba necessária à aquisição de medicamento objeto da tutela deferida, providência excepcional adotada em face da urgência e imprescindibilidade da prestação dos mesmos, revela-se medida legítima, válida e razoável."

E prossegue em seu magistério: "(...) Outrossim, a tutela jurisdicional para ser efetiva deve dar ao lesado resultado prático equivalente ao que obteria se a prestação fosse cumprida voluntariamente. O meio de coerção tem validade quando capaz de subjugar a recalcitrância do devedor. O Poder Judiciário não deve compactuar com o proceder do Estado, que condenado pela urgência da situação a entregar medicamentos imprescindíveis proteção da saúde e da vida de cidadão necessitado, revela-se indiferente à tutela judicial deferida e aos valores fundamentais por ele eclipsados."

Para aquele que bate às portas do Poder Judiciário buscando determinado medicamento, a internação num leito de UTI para seu filho ou ente querido, ou ainda a efetivação de determinado procedimento cirúrgico imprescindível à continuidade de sua vida, certamente, "existem coisas que o dinheiro não compra", mostrando-se totalmente imprestável a fixação de multa diária ao Poder Público.

A busca pela efetiva entrega da prestação jurisdicional deve ser assegurada pelo magistrado, de modo que o cidadão tenha respeitado seu direito constitucional a uma tutela célere, efetiva e adequada, prestigiando-se a fruição imediata do bem da vida postulado.

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Sobre o autor
Cesar Augusto de Oliveira Queiroz Rosalino

Procurador Municipal de Santo André (SP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSALINO, Cesar Augusto Oliveira Queiroz. “Não tem preço!”.: Como uma campanha publicitária pode influenciar a efetividade da jurisdição estatal?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3075, 2 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20551. Acesso em: 26 abr. 2024.

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