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A constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato: a tipicidade do porte de arma de fogo desmuniciada com base na jurisprudência do STJ e do STF

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19/01/2012 às 15:03
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2. OS CRIMES DE PERIGO

Os crimes de perigo, como serão estudados adiante, são aqueles que expõem a perigo um bem jurídico tutelado pela lei penal, ou seja, cujo preceito de não turbação ao bem jurídico tenha por consequência uma pena. [34]

Para Luzón Pena, os delitos de perigo consumam-se sem necessidade de lesão, com o simples perigo – inseguridade e probabilidade de lesão – do bem jurídico, supondo portanto um adiantamento das barreiras de proteção a uma fase anterior à da lesão; normalmente procedem da expressa tipificação de um conduta imprudente (de qualquer classe ou somente por imprudência consciente), sem necessidade de que se chegue à lesão e com ela à consumação do delito imprudente, e supõem portanto uma exceção à regra geral da impunidade das formas de imperfeita execução na imprudência. [35]

Crime de perigo é, pois, aquele que, sem destruir ou diminuir o bem jurídico tutelado pelo direito penal, representa uma ponderável ameaça ou turbação à existência ou segurança de ditos valores tutelados, haja vista a relevante probabilidade de dano a estes interesses.

Nas palavras de Rogério Greco, os

"crimes de perigo, que podem ser subdivididos em perigo abstrato e perigo concreto, constituem uma antecipação da punição levada a efeito pelo legislador, a fim de que o mal maior, consubstanciado no dano, seja evitado. Assim, podemos dizer que, punindo-se um comportamento entendido como perigoso, procura-se evitar a ocorrência do dano". [36]

Segundo a doutrina majoritária, nesse tipo de delito o agente deverá agir com dolo, pois que não existe a ressalva exigida ao reconhecimento do comportamento culposo, conforme determina o parágrafo único do art. 18 do Código Penal.

2.1. O CONCEITO DE PERIGO

Há autores que entendem o perigo como sendo sempre uma abstração, o que torna imprópria a diferenciação entre perigo concreto e perigo abstrato. No entanto, para outros autores, o perigo é sempre concreto, por tratar-se de "uma probabilidade de um evento concreto" [37].

Diferentemente entende Eugenio Raúl Zaffaroni, para quem "todos os perigos são ‘concretos’ e todos os perigos são abstratos, segundo o ponto de vista que se adote: ex ante são todos concretos, ex post são todos abstratos". [38] Pelo que se observa, a diversidade de compreensão da noção de perigo, sob esse primeiro aspecto, ou seja, de saber se é concreto ou abstrato, não sinaliza para um possível entendimento pacífico.

É de se observar que o direito extrai, ou seja, recorta da realidade as situações de perigo e as traz, em função da sua relevância, para o mundo jurídico, ou seja, por basear-se na realidade, o direito não inventa situações de perigo, mas seleciona-as mediante determinados critérios baseados na experiência. [39]

É claro que o perigo existe, independentemente da forma como tratado. Contudo, certos riscos são relevantes para o direito, outros não. Dessa forma, abstraindo as considerações metajurídicas, será perigoso (para o mundo jurídico) o que a lei assim considerar, o que demonstra o caráter normativo do conceito de perigo, ainda que não se negue o ontológico. [40]

A doutrina indica três teorias que tratam do conceito de perigo: a subjetiva, que tem como expoentes Janka, Von Buri e Finger; a obejtiva, que tem em Hälschner, Merkel, Von Kries, Binding, Von Liszt, Florian, Jannitti di Guyanga, Maggiore, Carnelutti, Ranieri e Madureira de Pinho seus seguidores; e a intermediária, defendida por Oppenheim.

Para a teoria denominada subjetiva, o perigo, objetivamente, não existe, ele é mero fruto da imaginação, decorrente da falha do nosso conhecimento, mera hipótese, uma representação mental oriunda do temor e da ignorância do homem, uma sensação que, sendo mero objeto do imaginário, não existe concretamente. [41]

Já a teoria objetiva prega que não é o perigo mero ente da imaginação, mas um ente real e objetivo, constituindo parte da realidade.

Por fim, a posição intermediária concilia as duas concepções anteriores, defendendo que o perigo é ao mesmo tempo objetivo e subjetivo, ou seja, existe como realidade, e precisamente por isso é perceptível, revelando-se aí o aspecto subjetivo. [42]

Miguel Reale Júnior, baseando-se na obra de Rocco, define o perigo como sendo "a aptidão, a idoneidade de um fenômeno de ser causa de dano, ou seja, é a modificação de um estado verificado no mundo exterior com a potencialidade de produzir a perda ou diminuição de um bem, o sacrifício ou a restrição de um interesse". [43]

Avançando o debate, a doutrina procurou lançar os contornos da questão da configuração do perigo indagando se seria necessária somente a possibilidade de dano ou se haveria necessidade da presença de uma probabilidade, prevalecendo a corrente que sustenta ser necessária a probabilidade, contentando-se a corrente minoritária com a mera possibilidade.

A probabilidade situa-se em um nível mais intenso em confrontação com a possibilidade, configurando uma situação de real potencialidade para a ocorrência do evento, excluindo a eventualidade. Abrange o provável, enquanto a mera possibilidade admite também o improvável.

2.2. DIFERENCIAÇÃO ENTRE DOLO DE PERIGO E DOLO DE DANO

O dolo de perigo não se confunde com o dolo de dano, tampouco com culpa consciente, assumindo um conceito autônomo. Mas existem autores, dentre eles pode-se citar Basileu Garcia e David Baigún, que vêem no dolo de perigo um dolo eventual de dano.

Para que se configure o dolo de perigo, o agente deve estar ciente de sua conduta, do resultado potencialmente lesivo, ou seja, da exposição de perigo ao bem penalmente tutelado e do liame de causalidade entre aquela e este. Deve, pois, ter conhecimento da possibilidade do implemento do dano, sem que este seja perseguido ou mesmo admitido por ele. O agente labora exclusivamente em busca de impor à vítima uma situação de perigo. [44]

Para alguns autores, o dolo de perigo será forçosamente dolo necessário, haja vista o perigo "constituir" consequência inevitável da conduta. O agente prevê, aceita e atua em favor do implemento do perigo, mas sem desejar o dano, contudo não deixa de agir, ou seja, basta que o agente tenha consciência do perigo e não se abstenha de sua conduta, sabendo ser impossível levá-la a efeito sem impor o perigo. O agente não quer o dano, sabe-o possível sem aceitá-lo, mas não se demove de sua ação, agindo, assim, em prol do perigo.

Tendo em visa a precisão necessária do dano, mas não a sua aceitação, é que se fala em dolo de perigo como sendo necessário e, não em crime de perigo, necessariamente perpretado com dolo de perigo, pois há crimes de perigo que podem ser praticados com dolo de dano.

No entanto, existem incriminações que, pela forma como tipificadas, só podem ser informadas pelo dolo de perigo, como, por exemplo, o perigo de contágio venéreo na forma simples (art. 130, caput, do CP). [45]

Em suma, o crime de perigo somente exige o dolo de perigo quando for assim construído, ou seja, sob o reclamo do modelo legal, mas quando essa situação subjetiva ocorre é porque é inseparável do fato, por isso o dolo de perigo é necessário. Não é o crime de perigo que necessariamente deve consumar-se com o dolo de perigo do agente, mas, caso presente este, é porque se faz necessário, imprescindível ao fato. [46]

É importante que se diga a semelhança entre o dolo de perigo e a culpa consciente. Na lição de Rui Carlos Pereira:

"o dolo de perigo implica sempre a existência de negligência consciente do dano. Porém, não se pode identificar com ela, por haver situações de negligência consciente que não documentam a sua própria existência (em que haja um juízo de reflexão negativo ou em que a previsão seja imediatamente desalojada da consciência)". [47]

O dolo, ademais, abrange todos os elementos do tipo, quais sejam: conduta, resultado de periclitação ao bem jurídico e nexo causal, além do desejo de expor o bem jurídico ao perigo. De outro lado, o que caracteriza a culpa consciente como criminosa é o resultado, bastando a consciência deste e não o seu implemento. No crime com culpa consciente de perigo, o agente não admite sequer esse resultado.

Além dessa diferenciação, por conta do dolo de perigo, é importante diferenciar o crime de perigo do crime tentado, haja vista que eles são objetivamente idênticos, pois em ambos não é atingido um resultado danoso ao bem jurídico tutelado pela norma.

Entretanto, há um distinção subjetiva entre eles, porquanto na tentativa o dolo é de dano (consumando), o agente busca o dano, ele o deseja, ao passo que no crime de perigo muitas vezes o agente não admite o dano, mas prevê e aceita o perigo, com exceção daquelas hipóteses em que o legislador constrói o tipo de perigo cujo elemento subjetivo seja o dolo de dano. [48]

2.4. SUBSIDIARIEDADE DOS CRIMES DE PERIGO EM RELAÇÃO AOS CRIMES DE DANO

Parte da doutrina entende que os crimes de perigo são subsidiários em relação aos crimes de dano, pois, como muito bem pontua Walter Coelho [49] "diante da relevância do bem jurídico tutelado, estende o Direito Penal a sua proteção desde a remota e potencial situação perigosa (contravenção), passando pelo perigo iminente ou próximo (crime de perigo), até a efetiva lesão do interesse a ser resguardado".

Para Diego Romero, com

"esta medida pretende a lei penals proteger o bem ou interesse jurídico que entende relevante para determinado grupo social, circunscrevendo todo seu âmbito com a proteção do Estado, presecrevendo crimes de perigo somente nos casos em que o bem jurídico necessita eminentemente de proteção. Esta questão da subsidiariedade fica clara quando enfocamos os crimes contra a vida, nos quais temos proteções desde o âmbito do mínimo perigo, conforme o art. 10 da Lei 9.437/97 (atirar com arma de fogo para o alto), passando para o artigo 132 (expor a vida a perigo), depois para o art. 129 (lesão corporal) e culminando na lesão máxima prevista no artigo 121 (homicídio), todos do Código Penal". [50]

2.5. CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES DE PERIGO

Ao se fazer uma comparação entre a legislação pátria e o direito norte americano, pode-se notar que este se encontra muito mais avançado do que aquela, que ainda está desenvolvendo a sua base. No direito norte-americano existe uma regulamentação muito mais ampla e abrangente, tendo inclusive precedentes jurisprudenciais sobre o tema, sendo que o mesmo não ocorre no Brasil, que sequer tem leis publicadas que tratem da questão.

2.4.1-Crimes de perigo concreto

Os crimes de perigo concreto caracterizam-se pela necessidade de comprovação real da existência da criação da situação de perigo ao objeto protegido pela norma. [51]

O fundamento da punição dos crimes de perigo concreto encontra-se no fato de "o legislador querer, sem dúvida, proteger determinado bem jurídico e pode fazê-lo porque considera que o pôr em perigo é elemento bastante para justificar uma pena criminal", como acentua Jose Francisco de Faria Costa. [52]

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Diego Romero entende que

"tais delitos são de resultado como os delitos de lesão, mas sua verificação importa em critérios de imputação divergentes, pois em vez de apresentarem um resultado lesivo de dano, apresentam um resultado de criação de perigo de resultado de dano, de assunção de risco de lesão não permitido pela norma". [53]

Em princípio, Angioni parte da premissa de que o juízo acerca dos crimes de perigo deve passar por três avaliações: a do momento da conduta típica, a do momento do resultado de perigo e a do momento do processo penal, de modo que quando a análise é feita antes do processo penal, fala-se numa perspectiva ex ante, enquanto a verificação, no curso do processo penal, deve ser tanto ex ante quanto ex post. [54]

Nos crimes de perigo concreto, a realização do tipo pressupõe efetiva produção de perigo para o objeto da ação, de modo que a ausência de lesão para o objeto atual da tutela penal pareça meramente obra do acaso. Juarez Cirino dos Santos aduz que "segundo a moderna teoria normativa do resultado de Schünemann, o perigo concreto se caracteriza pela ausência causal do resultado, e a causalidade representa circunstância em cuja ocorrência não se pode confiar". [55]

Na lição de Diego Romero,

"para a caracterização dos crimes de perigo concreto faz-se necessário a coexistência de no mínimo três situações, a saber: primeiramente, é fundamental existir um objeto tutelado que entre no âmbito de conhecimento e volição daquele que pratica determinada ação que acaba expondo tal objeto a perigo de dano; em segundo lugar, esta ação realizada deve criar real e individual perigo de dano ao objeto da ação; e em terceiro lugar, do ponto de vista do bem jurídico, esta exposição concreta a perigo traduz-se em uma situação em que, apresenta-se provável a causação de uma lesão, que não pode ser evitada de forma alguma". [56]

Miguel Reale Júnior leciona que os "comportamentos são sempre fundados em um valor ou presos a um desvalor, de modo que a norma se dirige, não à exteriorização da ação, mas ao comportamento no seu todo". [57]

O fato indicativo do comportamento desvalioso ou não do agente será o fato que deve ter por referência o bem jurídico.

Em síntese, os crimes de perigo concreto caracterizam-se pela exigência de constatar-se o perigo caso a caso e têm, em regra, o perigo indicado no tipo. Em determinados casos, ainda que o perigo não esteja indicado no tipo expressamente e este seja impreciso, aberto, não poderá configurar crime de perigo abstrato. Ou seja, ausente a taxatividade, dever-se-á, para adequar-se às exigências constitucionais, e para que a legitimidade não reste arranhada, considerar a infração penal como sendo de perigo concreto. [58]

2.4.2-Crimes de perigo abstrato ou presumido

Os crimes de perigo abstrato ou presumido são aqueles cujo perigo é ínsito na conduta e presumido, segundo a doutrina majoritária, juris et de jure. Eles prescindem da comprovação da existência da situação em que se colocou em perigo o bem jurídico protegido.

Para a sua configuração não se exige a comprovação do perigo real, pois este é presumido pela norma. Basta "a perigosidade da conduta, que é inerente à ação" [59]. Para que haja a punição não é necessário que a conduta praticada pelo agente seja apta a causar nenhum dano ou perigo concreto de dano ao bem jurídico-penal.

Na técnica de tipificação dos delitos de perigo abstrato, deve-se atender a uma necessidade decorrente da natureza das coisas, ou seja, as figuras delituosas tipificadas como de perigo abstrato devem atender ao reclamo de tutela baseado na lesividade que a ação encerra, em razão da inerência do perigo que guarda em si. [60]

Nas palavras de Pierpaolo Cruz Bottini,

"a expansão do direito penal atual prima pela utilização dos crimes de perigo abstrato como técnica de construção legislativa empregada para o enfrentamento dos novos contextos de risco. Pode-se afirmar que os tipos de perigo abstrato constituem o núcleo central do direito penal de risco. A configuração da sociedade contemporânea, o surgimento dos novos riscos e suas características respondem por este fenômeno, por diversos motivos". [61]

Uma das razões que justificam a proliferação dos crimes de perigo abstrato é o alto potencial lesivo de algumas atividades e produtos, que são oriundos dos resultados desencadeados pela utilização de novas tecnologias, que afetam, ou têm o potencial de afetar um volume crescente de bens jurídicos.

Sob esse ponto de vista, o que importa é evitar o resultado ou controlar as condutas, e não reprimir os resultados, que trariam um prejuízo enorme para a coletividade.

Pierpaolo Cruz Bottini aduz que

"não interessa ao gestor de riscos atuar após a ocorrência da lesão, mas antecipar-se a ela, diante da magnitude dos danos possíveis. Nestas circunstâncias, a norma penal surge como elemento de antecipação da tutela, sob uma perspectiva que acentua o papel preventivo do direito. Para isso, o tipo penal deve estar dirigido à conduta e não ao resultado. A atividade, em si, passa a ser o núcleo do injusto. A insegurança que acompanha estas condutas, e a extensão da ameaça, levam o legislador a optar pela norma de prevenção, através de descrições típicas que não reconheçam o resultado objetivo como elemento integrante do injusto, ou seja, através dos tipos penais de perigo abstrato". [62]

Nota-se que os crimes de perigo abstrato não buscam responder a determinado dano ou prejuízo social realizado pela conduta, como forma de vingança institucionalizada pela lesão do objeto protegido pela lei, como era no Direito Penal Clássico, mas evitá-la, barrá-la, protegendo o bem jurídico de lesão antes mesmo de sua exposição a perigo real, concreto, efetivo de dano. Ao se utilizar dessa modalidade delitiva, o Direito Penal atual busca proporcionar a sensação de segurança à sociedade.

Gunther Jakobs [63], com base nessa visão, ensina que as condutas punidas por meio dos delitos de perigo abstrato são aquelas que perturbam não somente a ordem pública, mas lesionam um direito à segurança. Prossegue Jakobs doutrinando que

"o legislador costuma concretizar centralmente os postulador normativos, e o faz de tal modo que ele mesmo descreve – também sem mencionar de modo algum o resultado desejado da ação – a configuração dos comportamentos contrários à norma e com isso, o que vai se produzir descentralizadamente fica reduzido à simples de em que caso se dá tal configuração de comportamento. Assim, a lei proíbe coisas muito diferentes, desde o falso testemunho até a condução de veículo sob a influência de bebidas alcoólicas, e o faz também quando o indivíduo não vê resultado perigoso de seu comportamento, e quiçá, tampouco poderia vê-lo: nesses crimes de perigo abstrato, o tipo de comportamento se define como não permitido por si mesmo, é dizer, centralizadamente, sem atender a especialidades não centrais".

Outro fenômeno do direito penal do risco que contribui para a aparição significativa dos delitos de perigo abstrato é a proteção, cada vez mais acentuada, de bens jurídicos coletivos.

Por outro lado, da mesma forma que o legislador utiliza os delitos de perigo abstrato para restringir os riscos em atividades de alto potencial lesivo, em situações em que a relação de causalidade é de difícil comprovação, ou para proteger bens de índole coletiva, também se verifica a construção destes tipos penais para o enfrentamento de outro fenômeno da sociedade atual: os novos contextos de risco interacional. [64]

Para Pierpaolo Cruz Bottini, é fácil de entender

"o porquê da massificação dos delitos de perigo abstrato no direito penal do risco. Os novos âmbitos de periculosidade, com suas características inéditas, direcionam a atividade legislativa ao emprego desta técnica de tipificação, daí sua presença representativa nos diplomas legais contemporâneos. O perigo abstrato representa o sintoma mais nítido da expansão do direito penal, na ânsia por fazer frente aos temores que acompanham o desenvolvimento científico e econômico da atualidade". [65]

Nesse tipo de delito, o legislador busca facilitar as vias para a punição criminal, pois há renúncia da prova do dano e do nexo causal entre a conduta e o resultado, já que este é presumido, na busca de uma efetiva repressão ao crime. [66]

2.4.3-Crimes de perigo abstrato com presunção juris tantum

As três últimas classificações dos crimes de perigo aqui tratadas não são tratadas por toda a doutrina, que se atém simplesmente aos crimes de perigo concreto e aos crimes de perigo abstrato, tendo sido extraídas da obra de Ângelo Roberto Ilha da Silva, por serem relevantes para fins didáticos.

Pondera-se que os crimes de perigo abstrato, ás vezes, devem gozar de presunção juris tantum no que tange à vulneração do bem jurídico, porque casos há em que o bem tutelado não se mostra concretamente ameaçado, o que teria como efeito a descaracterização do delito. [67]

Para parte da doutrina, como Rabl, Schröder, U. Weber, Patalano, Beristain, nos crimes de perigo presumido as condutas genericamente perigosas admitiriam prova em contrário no caso concreto.

Patalano faz a sua crítica com base no princípio da igualdade tratado no art. 3º da Constituição italiana, entendendo que este restaria violado em razão do fato de se tratarem igualmente situações diversas em que umas se apresentam "seguramente ofensivas" a um bem jurídico e outras se apresentem sem possibilidade de ofensa, no caso concreto. Segundo o autor, tal tratamento, além de afrontar o princípio da igualdade, seria destituído de razoabilidade. [68]

No outro extremo está Zaffaroni, que entende que a infração penal jamais poderá assumir presunção absoluta do perigo nas hipóteses do delito em questão, afirmando que "podemos admitir com respeito ao perigo ‘abstrato’ é que são tipos em que opera uma presunção juris tantum do perigo". [69]

Já para Kindhäuser, a possibilidade de contraprova nos delitos de perigo abstrato no caso concreto seria incorrer em uma inversão ilegítima do ônus da prova e uma contradição ao princípio in dubio pro reo. [70]

João Mestieri defende uma posição intermediária, pregando que existem crimes de perigo abstrato, uns como presunção absoluta, outros com presunção relativa da ocorrência do perigo. Como exemplo dos primeiros ele cita a rixa (art. 137 do CP), e dos últimos o abandono de incapaz (art. 133 do CP) e os maus-tratos (art. 136 do CP). [71]

Ângelo Roberto Ilha da Silva defende que tratando-se

"de crime de perigo abstrato, em que o perigo é (deve ser) ínsito na conduta, hipótese verdadeiramente possível de presunção relativa ocorre quando o legislador, de forma equivocada, empreende uma tipificação sem atender ao bom senso e à natureza da ação criando um modelo de perigo abstrato de forma artificial, ou seja, em situações nas quais o perigo não é, no plano da realidade, inerente à conduta. Noutras palavras, o delito se ajustaria a um modelo de perigo concreto em que o perigo poderá ocorrer ao desencadear a conduta, mas não necessariamente ocorre, e o exemplo mais exclarecedor é o do avanço do semáfaro vermelho". [72]

No entanto, como regra, os delitos de perigo abstrato devem manter a presunção absoluta, pressupondo que esteja adequadamente tipificados.

Concluindo, haverá espaço para os tipos de perigo abstrato com presunção relativa, principalmente no caso de o legislador ter sido infeliz na técnica de tipificação, optando pelo modelo abstrato de forma inadequada ou desnecessária, o que não ocorrerá quando a experiência estiver a demonstrar a inerência insuperável do perigo à conduta.

2.4.4-Crimes de perigo abstrato-concreto

Leciona Ângelo Roberto Ilha da Silva que existem autores

"que superam a clássica divisão bipartida dos crimes de perigo concreto, adimitindo o tertium genus crime de perigo abstrato-concreto. A partir do final da década de sessenta é que se passou a falar em tais delitos, os quais configurariam uma categoria intermediária entre os crimes de perigo abstrato e os crimes de perigo concreto". [73]

Ensina Angioni [74] que tais crimes são apresentados por Schröder de duas formas. Na primeira, o legislador delimita o campo de investigação do juiz a certos elementos dados pela lei e que se prestam a provocar perigo, ou seja, a lei diz que o fato é abstratamente perigoso, mas apresenta elementos que o juiz deve ter em conta concretamente. O segundo tipo compreende os casos em que "a lei leva a elemento do tipo a idoneidade de uma coisa ou de uma ação a ocasionar determinados eventos, sem esclarecer contra qual bem jurídico e contra quais objetos (materiais) se deve dirigir no caso concreto o perigo (ou fato perigoso)". [75]

Entre os autores brasileiros, Luiz Flávio Gomes utiliza a expressão "perigo concreto indeterminado", e dá a sua versão:

"Consoante a doutrina alemã, o perigo abstrato no sentido de que não exige a apresentação de uma vítima concreta do perigo; seria ao mesmo tempo concreto, no sentido de que a conduta deve ser concretamente adequada para poder lesionar um bem jurídico individual (vida, integridade física, patrimônio, etc.)". [76]

Faria Costa apresenta um conceito diferente dos já estudados dos delitos de perigo abstrato-concreto, que, na sua visão, seriam aqueles "em que a prova da inexistência do perigo determina o não preenchimento do tipo". [77] Na referida situação, para outros autores, o que estaria configurado seriam os crimes de perigo abstrato ou presumido com presunção relativa.

2.4.5-Crimes de perigo comum e de perigo individual

Duas categorias de suma importância, pois consagradas invariavelmente nos diplomas penais, são a dos crimes de perigo comum e a dos crimes de perigo individual.

O crime de perigo comum ou coletivo é aquele que tem por referência pessoas indeterminadas ou um indefinido número de pessoas e que constituem as infrações penais do Capítulo I do Título VIII da Parte Especial do Código Penal brasileiro, ou seja, o capítulo primeiro do título "Dos crimes contra a incolumidade pública". [78]

Já os crimes de perigo individual são aqueles que afetam um indivíduo certo ou determinando bem, ou, ainda, um reduzido e determinado número de pessoas. Constituem o Capítulo III do Título I da Parte Especial do Código Penal, intitulado "Da periclitação da vida e da saúde".

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Sobre a autora
Renata Carvalho Derzié Luz

Advogada. Ex-Funcionária Pública Federal do Superior Tribunal de Justiça. Ex-Assessora de ministro. Bacheralada em Direito pelo UniCeub - Centro Universitário de Brasília, com área de concentração em Direito Penal. Pós-graduada pela Fundação Escola do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios no Curso Ordem Jurídica e Ministério Público. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Sevilha (Espanha). Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Sevilha (Espanha).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUZ, Renata Carvalho Derzié. A constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato: a tipicidade do porte de arma de fogo desmuniciada com base na jurisprudência do STJ e do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3123, 19 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20877. Acesso em: 27 abr. 2024.

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