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A constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato: a tipicidade do porte de arma de fogo desmuniciada com base na jurisprudência do STJ e do STF

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19/01/2012 às 15:03
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3. A CONSTITUCIONALIDADE DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO

A sociedade se modificou e se modifica constantemente, trazendo para dentro da vida social, modelos que nem sempre o direito consegue acompanhar. Com o avanço social, novas figuras penais aparecem, assim como aumenta a periculosidade, a violência, que são figuras presentes, hoje, na vida em sociedade, em virtude do sistema capitalista, das novas interações sociais, das novas tecnologias.

A partir daí, surgiu para o direito a tarefa de zelar para que a harmonia se faça sempre presente na coletividade, de modo que sejam sempre respeitados, de forma contundente e efetiva, não só os direitos coletivos, mas também os individuais.

Foi justamente sob esse novo panorama social que foram criados, como já estudados, os crimes de perigo, principalmente os de perigo abstrato, para que haja uma efetiva tutela dos bens jurídicos penalmente protegidos, do espaço do próximo, da sua integridade, da sua liberdade.

No entanto, até que ponto esses delitos efetivamente trazem essa proteção que pregam? Até que ponto essa "pseudo-proteção", se pode-se assim dizer, é tão eficiente a ponto de justificar um certo desrespeito a princípios constitucionais fundamentais do indivíduo, da lei?

É justamente essa análise que faremos agora neste capítulo.

3.1. DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS

Os princípios constitucionais penais, explícitos e implícitos na Constituição, traçam a política criminal do nosso Estado Democrático de Direito. Eles são o alicerce do Direito Penal, são os limites positivos e negativos do direito penal punitivo.

Os princípios exercem dupla função: guiam a atividade do legislador, no momento de criar a norma incriminadora, e guiam a atividade dos operadores na aplicação do direito. O poder legislativo está vinculado aos princípios constitucionais na criação da norma incriminadora, assim como o poder judiciário está vinculado aos princípios constitucionais na aplicação da norma incriminadora.

Os princípios constitucionais penais não são princípios programáticos, eles são normativos, eles têm eficácia imediata, concreta para reger as relações.

São os princípios constitucionais penais que dão suporte a uma teoria constitucionalista do delito. São eles que vão guiar a nossa atividade, a nossa política criminal, que vai nos permitir afastar do dogmatismo puro de alguns finalistas, permitindo a mitigação do finalismo, com as idéias da política criminal do funcionalismo.

Vamos analisar, para posterior confrontação com os crimes de perigo abstrato, os princípios da legalidade, da intervenção mínima, da lesividade (ou ofensividade), da presunção de inocência e da culpabilidade.

3.1.1-Princípio da legalidade

O princípio da legalidade surge com Estado moderno, no Estado Liberal, por influência das obras de Beccaria, de Feverbach.

No Direito Romano e na Carta de D. João Sem Terra, não tinha a legalidade com os contornos atuais, para homens livres. A atual legalidade surgiu no século XVIII, após as Revoluções Burguesas. A legalidade para todos iguais perante a lei, só surgiu com a Revolução Francesa, principalmente com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em seu art. 8º, de 1789, embora, segundo a doutrina, nós já tivéssemos expressão do princípio da legalidade no Código Austríaco de 1787. Mas ele é mais conhecido, como exigência de lei para tratar de crime, anterior ao fato, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Ele veda a tipologia aberta, indeterminada, pois a tipologia aberta permite que o legislador faça uma ampliação da norma punitiva. No entanto, no Código Penal brasileiro encontram-se muitas normas de tipologia aberta, como nos delitos culposos, como no art. 13, § 2º, a, b, c, do CP.

O princípio da legalidade veda, ainda, a criação de tipos por costumes, por medida provisória, por decreto, por portaria, por resolução, por regulamento.

Este princípio visa controlar o poder punitivo do Estado, mais precisamente, segundo Muñoz Conde e Mercedes Garcia, citados por Cezar Roberto Bittencourt e Luiz Régis Prado, busca confinar sua aplicação em limites que excluam toda arbitrariedade e excesso do poder punitivo. [79]

Os dois citados doutrinadores ainda chamam a atenção para algo muito pertinente ao nosso tema: "A lei deve definir com precisão e de forma cristalina a conduta proibida".

O princípio da legalidade está estritamente ligado com o princípio da reserva legal, que, por sua vez, determina que só lei (ordinária) pode criar crime (competência exclusiva da união). Lei complementar não pode criar crime, mas, ao tratar de outras matérias, ela pode criar tipos. Tratado ratificado também pode trazer tipo penal (o problema do tratado é a tipologia aberta).

Na visão do princípio da legalidade, o tipo penal é um tipo garantia, pois o cidadão só pode ser punido se houver um tipo previsto e respectiva pena, não há crime sem tipo; e um tipo constitutivo, pois, só através do tipo que pode haver a previsão de um crime.

3.1.2-Princípio da intervenção mínima

O princípio da intervenção mínima subdivide-se em subsidiariedade e insignificância.

O Supremo Tribunal Federal, no RHC n. 89.624/RS, reconheceu a sua aplicação, conforme se extrai da seguinte ementa:

EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PENAL MILITAR. PROCESSUAL PENAL MILITAR. FURTO. INEXISTÊNCIA DE LESÃO A BEM JURIDICAMENTE PROTEGIDO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO PENAL MILITAR. 1. Os bens subtraídos pelo Paciente não resultaram em dano ou perigo concreto relevante, de modo a lesionar ou colocar em perigo o bem jurídico reclamado pelo princípio da ofensividade. Tal fato não tem importância relevante na seara penal, pois, apesar de haver lesão a bem juridicamente tutelado pela norma penal, incide, na espécie, o princípio da insignificância, que reduz o âmbito de proibição aparente da tipicidade legal e, por conseqüência, torna atípico o fato denunciado. É manifesta a ausência de justa causa para a propositura da ação penal contra o ora Recorrente. Não há se subestimar a natureza subsidiária, fragmentária do Direito Penal, que só deve ser acionado quando os outros ramos do direito não sejam suficientes para a proteção dos bens jurídicos envolvidos. 2. Recurso provido. (RHC 89.624/RS, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 07/12/2006)

Pela subsidiariedade, o Direito Penal somente será utilizado quando os demais ramos do direito não puderem solucionar o problema. O Direito Penal é a ultima ratio.

A fragmentariedade significa que, ao Direito Penal, só interessa punir as ações mais graves, praticadas contra os bens jurídicos mais importantes.

A intervenção mínima serve como complemento da legalidade, por esta não impedir que sejam aplicadas sanções penais graves para bens jurídicos cuja relevância não as justifiquem.

Segundo este princípio, o Direito Penal só deve ser aplicado quando as sanções dos outros ramos do direito se mostrarem insuficientes para tutelar determinado bem jurídico, momento no qual poderá ser utilizada a tutela penal. [80]

3.1.3-Princípio da lesividade, da ofensividade ou da materialização do fato

A ofensividade exige que a conduta criminosa atinja o bem jurídico com perigo concreto ou com lesão concreta, logo, ela nega a existência dos crimes de perigo abstrato; a lesividade prega que só poderá existir crime quando a conduta ofender um bem jurídico de terceiro, o que significa dizer que não haverá crime pelo mero pensamento ou pela auto-lesão. Nilo Batista e Paulo Queiroz, ao tratarem desse tema, defendem que a punição do crime de uso de drogas, na lei de drogas anterior, fere o princípio da lesividade. O STF e o STJ não entendem desta forma, porquanto, para eles o crime de uso de drogas não é auto-lesão, mas crime contra a saúde pública.

Pela materialização do fato, entende-se que não se pode punir o pensamento, pois isso seria direito penal do autor.

Em suma, pelo princípio da lesividade não há crime sem a ofensa a um bem jurídico, seja por meio da criação de um dano, seja pela criação de uma probabilidade de dano, só podendo ser punida, assim, a conduta que resulte danosa a um bem jurídico penalmente tutelado ou que represente um perigo provável de dano a este bem. [81]

3.1.4-Princípio da presunção de inocência

Pelo princípio da presunção de inocência, ninguém pode ser considerado culpado até que efetivamente se comprove a sua culpa. O Estado tem que comprovar a culpabilidade do indivíduo que, em princípio, é considerado inocente, sendo que esta presunção é relativa, sendo afastada caso se comprove que o acusado é realmente responsável pelo delito que lhe foi reputado.

A presunção da responsabilidade penal do agente, que tem como consequência o afastamento de sua inocência, deve se dar de acordo com o devido processo legal, sendo-lhe garantido o contraditório e a ampla defesa. Sendo assim, o acusado será cercado de garantias para que não sofre medidas repressivas sem que seja caracterizada a sua culpabilidade. [82]

3.1.5-Princípio da culpabilidade

Este princípio é a base da imputação penal e reza que não pode haver crime sem culpabilidade. Ele afasta a responsabilidade objetiva, defendendo que não agindo com dolo ou culpa, ninguém responde por um resultado imprevisível.

A culpabilidade diz respeito a reprovabilidade social da conduta injusta, não bastando, portanto, que a figura seja típica e antijurídica, sendo necessário também que seja considerada culpável, ou melhor, reprovável socialmente.

A culpabilidade também serve de limite para a aplicação da pena, pois o indivíduo vai responder pela conduta injusta e culpável na medida de sua culpabilidade.

3.2. A INCONSTITUCIONALIDADE DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO

A partir da tendência de expansão do direito penal, com afronta ao conceito básico de crime, surgiram as cominações de penas para delitos de mero perigo abstrato. Alguns doutrinadores defendem que a incriminação dessas condutas, destituídas de perigo concreto, demonstra-se abusiva, pois, juntamente com o princípio da inafastabilidade da apreciação judicial, a Carta Magna dispõe que a exigência de submissão de fatos ao exame judicial se faça relativamente a uma lesão efetiva a um bem, ou a uma ameaça de direito. [83]

Os crimes de perigo abstrato presumem, de forma absoluta, a criação do perigo pelo autor da conduta prevista no tipo respectivo. Isto quer dizer que o agente é punido pela mera desobediência da letra da lei, sem que se comprove a existência de qualquer lesão ou ameaça de lesão ao bem tutelado, ou seja, de qualquer resultado jurídico/normativo. A presunção legal de perigo e a tipificação elaborada vagamente, põem em dúvidas quanto a sua constitucionalidade, assim como a dos crimes de perigo abstrato. Esta presunção vai de encontro a diversos princípios constitucionais penais, além de desrespeitar a estrutura básica do tipo e de ser expressão de uma técnica legislativa reprovável, ainda mais quando suprimem garantias fundamentais do indivíduo. [84]

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Para Maurício Borba, tutelam-se,

"por meio dos crimes de perigo presumido, bens jurídicos que poderia ser protegidos com muito mais eficácia através de outros ramos do Direito, como o Direito Administrativo, o Direito Tributário e o Direito Civil. O Direito penal mostra-se inadequado e lento para oferecer uma proteção adequada a estes bens e, por outro lado, não pode ser utilizado como mera função simbólica, satisfazendo os anseios da sociedade pela tutela de bens jurídicos recém criados ou recém valorados. Incompatível, portanto, com o princípio da intervenção mínima". [85]

O bem jurídico deverá ter sempre como referência a Constituição Federal, porque um direito penal que pretende atuar em desrespeito aos preceitos constitucionais, é algo, evidentemente, inaceitável.

Os bens jurídicos tutelados, pois, devem guardar dignidade penal e só o são, por assim dizer, bens jurídico-penais os bens jurídicos constitucionalmente relevantes.

A essa linha de entendimento é contra Faria Costa, para quem a Constituição não seria fonte exaustiva de bens jurídicos, tendo, assim, caráter fragmentário, não se devendo pretender dela deduzir todos os bens jurídicos. [86]

Ângelo Roberto Ilha da Silva defende que

"os bens jurídico-penais deverão estar pressupostos na Constituição, quando expressamente consagrados (de forma positiva e impositiva), ou dela deduzidos mediante uma análise sistemática e teleológica, ou seja, excluindo-se as vedações impostas a certas incriminações, explícitas ou implícitas, e averiguando-se se a tutela de determinado bem não se põe em conflito com os valores que a Carta Política visa a afirma e resguardar, ou melhor, contribui-se para uma implementação efetiva dos valores constitucionais". [87]

Continua Silva dizendo que

"há que se averiguar se o bem que se pretende tutelar consiste em meio necessário à tutela de bens fundamentais manifestos do ponto de vista da Constituição. Assim, v.g., em casos como os das Constituições alemã e italiana, que, em decorrência do momento histórico em que foram promulgadas, não consagram o meio ambienta como valor constitucional, é de se fazer uma interpetação teleológica no sentido de que o ambiente constitui conditio sine qua non para a observância humana, e coloca-se como meio necessário à tutela da vida humana, como valor patrimonial".

É de se notar que existem imposições de criminalização para a consecução da resguarda de certos bens e que nem todo bem constitucionalmente valioso e consagrado requer uma tutela penal. Sendo assim, somente nos casos expressos consagrados pela Constituição é que deverá, de forma obrigatória, o legislador infraconstitucional tipificar condutas sob a ameaça da pena criminal, não sendo possível deduzir mandamentos criminalizadores implícitos.

Por outro lado, a conduta do homem é fenômeno ocorrente no plano da experiência, não podendo jamais ser presumida ou imaginada, mas sim verificada. [88]

Para parte da doutrina, é claro que do emprego dos tipos penais de perigo abstrato resulta ofensa ao enunciado de Direito Penal clássico, nullum crimen sine injuria, e, por conseguinte, inobservância ao princípio constitucional da ofensividade, pois não há crime sem resultado. [89]

Para Faria Costa, levando-se em consideração o princípio da ofensividade, é de se considerar somente a possibilidade de se criminalizar situações concretas de exposição objetiva a perigo. Relata o doutrinador que

"de fora fica, em verdadeiro rigor, todo o reino de legitimidade da punição de condutas cujo traço essencial não está no facto de o perigo se ter concretamente desencadeado como mera motivação para o legislador punir tal conduta. Ao sancionar-se penalmente um comportamento dentro destes parâmetros de valoração somos confrontados com a inexistência de uma qualquer ofensividade relativamente a um concreto bem jurídico". [90]

Em contrapartida, é importante destacar que os crimes de perigo abstrato violam também os princípios da presunção de inocência, pois não se pode presumir a culpabilidade de alguém sem a necessária comprovação, por meio do devido processo legal, assim como violam também o princípio da igualdade, pelo simples fato de o cidadão ter menos acesso à busca de meios absolutórios para conduta abstratamente considerada criminosa; e da legalidade, porque não contém em seus tipos a devida descrição da conduta a ser punida, sendo a conduta prevista de maneira incompleta, por não exigir um resultado normativo.

Para os que defendem a inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, é impossível que se conceba a existência de sanção penal sem a lesão ou ameaça de lesão (perigo) a um bem jurídico, o que, claramente, ofende, também, à proporcionalidade.

A punição nos crimes de perigo abstrato é questionada devido à ausência do elemento perigo no tipo penal. Advirá apenas pela idoneidade do comportamento para a efetivação de uma lesão a um bem jurídico. Assim, para a existência do dolo, basta que o agente conheça os elementos típicos do delito, sem que seja necessário que saiba de sua efetiva lesividade.

De acordo com Diego Romero, há quem entenda ainda que

"a excessiva tipificação dos crimes de perigo abstrato, em flagrante contradição aos princípios que são vigas-mestras do ordenamento consitucional e penal brasileiro, represente-a essa exacerbada preocupação prevencionista do direito criminal da sociedade contemporânea, que a par de uma transformação social, processada a velocidade da comunicação global instantânea, de um processo tecnológico inimaginável e imprevisível, quer antecipar a punição de condutas, com o fim de prevenir perturbações e garantir segurança, usando, para isso, o recurso do simbolismo da lei penal e da intimidação dos cidadãos com o estigma da punição criminal". [91]

Conforme ensina Marco Aurélio Costa Moreira de Oliveira,

"ao contrário do que atualmente acontece no criticável direito penal promocional do estado, mais preocupado com soluções formais e midiáticas, a ordem jurídica deverá abandonar propostas de penas simbólicas para, prioritária e antecedentemente, identificar as condutas verdadeiramente ofensivas aos bens jurídicos fundamentais, usando a regra da razoabilidade, adequando as penas à necessidade de punir". [92]

Borba defende que,

"assim como as normas em branco e os tipos abertos, os crimes de perigo abstrato são utilizados na ‘inflação’ legislativa, contribuindo para levar o Direito Penal Pátrio contra o fluxo da história, deixando para trás a idéia de ultima ratio e colaborando para um Direito Penal máximo, ícone de uma sociedade do terror (aludida pelo sociológo Beck, em que a criminalização é banalizada)".

Segue Borba defendendo ser

"inadmissível que um Estado democrático de direito, garantias e direitos fundamentais do ser humano sejam mitigados como consequência da utilização do Direito Penal como um símbolo, ignorando sua função básica de tutela de bens jurídicos de maior relevância. A importância dos bens resguardados pelos tipos de perigo abstrato é indiscutível, mas o Direito Penal não é o único nem o mais adequado meio de protege-los". [93]

Após o advento da atual Constituição Federal, é impossível que se faça uma interpretação fechada do ordenamento jurídico, revelando-se necessária a aplicação da norma sistematicamente, ou seja, é imprescindível que se faça uma constitucionalização do Direito Penal levando em consideração todos os princípios e garantias basilares presentes na Lei Maior.

3.3. A CONSTITUCIONALIDADE DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO

Quem entende que os crimes de perigo abstrato são constitucionais, aduz que parte da doutrina defende a inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, como se verá adiante, por entender que eles violam os princípios da lesividade e da intervenção mínima, sendo que a Constituição Federal, em momento algum enumera tais princípios e que "obtê-los mediante simples interpretação do texto constitucional seria um verdadeiro ‘contorcionismo hermenêutico’". [94]

Por ser "perigo" um conceito jurídico indeterminado, cujo campo de significação pode variar entre uma possibilidade remota e uma extrema possibilidade de risco, não há como se precisar um "ponto médio" onde deveria se situar a atuação penal, estando dentro da discricionariedade do legislador determinar até que ponto o risco é inaceitável.

A proliferação desmedida desses crimes, como se observa nos dias de hoje, não se coaduna com a moderna construção do direito penal, pois o legislador penal se utiliza desse modelo de crime sempre que se vê necessitado de legitimar uma conduta em princípio não ofensora de bens jurídicos. [95]

Entretanto, apesar dessa excessiva antecipação da tutela penal, isso não quer dizer que o perigo abstrato não mereça ser acolhido no nosso direito, não sendo possível a crítica do tipo penal nos casos de bens supra-individuais, justamente pela qualidade particular desses bens.

A adoção de crimes de perigo abstrato se mostra imprescindível para se conferirem respostas à criminalidade oriunda da sociedade de risco, pois somente esse crimes podem atuar na esfera anterior à da lesão e proteger os bens jurídicos supra-individuais. O problema reside no fato de que a legislação brasileira não faz uso correto dessa ferramenta. [96]

Para Gilmar Ferreira Mendes, as disposições constantes nos arts. 5º, incisos XLI, XLII, XLIII, XLIV, 7º, inciso X,225, § 3º, e 227, § 4º, da Constituição Federal, são normas nas quais se identifica um mandado de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos, traduzindo, esses princípios, uma outra dimensão dos direitos fundamentais, decorrente de sua feição objetiva na ordem constitucional. [97]

Ainda na visão de Gilmar Ferreira Mendes:

"Tal concepção legitima a idéia de que o Estado se obriga não apenas a observar os direitos de qualquer indivíduo em face das investidas do Poder Público (direito fundamental enquanto direito de proteção ou de defesa – Abwerhrrecht), mas também a garantir os direitos fundamentais contra agressão propiciada por terceiros (Schutzplifcht des Staats).

A forma como esse dever será satisfeito constitui, muitas vezes, tarefa dos órgãos estatais, que dispõem de alguma liberdade de conformação. Não raras vezes, a ordem constitucional identifica o dever de proteção e define a forma de sua realização.

A jurisprudência da Corte Constitucional alemã acabou por consolidar entendimento no sentido de que do significado objetivo dos direitos fundamentais resulta o dever do Estado não apenas de se abster de intervir no âmbito de proteção desses direitos, mas também de proteger tais direitos contra a agressão ensejada por atos de terceiros.

Essa interpretação da Corte Constitucional empresta sem dúvida uma nova dimensão aos direitos fundamentais, fazendo com que o Estado evolua da posição de ‘adversário’ para uma função de guardião desses direitos.

É fácil ver que a idéia de um dever genérico de proteção fundado nos direitos fundamentais relativiza sobremaneira a separação entre a ordem constitucional e a ordem legal, permitindo que se reconheça uma irradiação dos efeitos desses direitos sobre toda a ordem jurídica.

Assim, ainda que não se reconheça, em todos os casos, uma pretensão subjetiva contra o Estado, tem-se, inequivocadamente, a identificação de um dever estatal de tomar todas as providências necessárias para a realização ou concretização dos direitos fundamentais.

Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção(Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote), mas também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote)."

Observa-se que os dispositivos constitucionais pátrios referidos expressam o dever de proteção identificado pelo constituinte e traduzido em mandatos de criminalização expressos dirigidos ao legislador. Esses mandatos de criminalização funcionam como limitações à liberdade de configuração do legislador penal e impõem a instituição de um sistema de proteção por meio de normas penais. [98]

Defende Gilmar Ferreira Mendes que:

"É inequívoco, porém, que a Constituição brasileira de 1988 adotou, muito provavelmente, um dos mais amplos, senão o mais amplo ‘catálogo’ de mandatos de criminalização expresso de que se tem notícia.

Ao lado dessa idéia de mandatos de criminalização expressos, convém observar que configura prática corriqueira na ordem jurídica a concretização de deveres de proteção mediante a criminalização de condutas.

Outras vezes cogita-se mesmo de mandatos de criminalização implícitos, tendo em vista uma ordem de valores estabelecida pela Constituição. Assim, levando em conta o dever de proteção e a proibição de uma proteção deficiente ou insuficiente (Untermassverbot), cumpriria ao legislador estatuir o sistema de proteeção constitucional-penal adequado.

Em muitos casos, a eleição da forma penal pode-se conter no âmbito daquilo que se costuma denominar discrição legislativa, tendo em vista desenvolvimentos históricos, circunstâncias específicas ou opções ligadas a certo experimentalismo institucional, A ordem constitucional confere ao legislador margens de ação para decidir sobre quais medidas devem ser adotadas para a proteção penal eficiente dos bens jurídicos fundamentais. É certo, por outro lado, que a atuação do legislador sempre estará limitada pelo princípio da proporcionalidade.

Assim, na dogmática alemã é conhecida a diferenciação entre o princípio da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot) e como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). No primeiro caso, o princípio da proporcionalidade funciona como parâmetro de aferição da constitucionalidade das intervenções nos direitos fundamentais, como proibição de intervenção. No segundo, a consideração dos direitos fundamentais, como imperativos de tutela (Canaris) imprime ao princípio da proporcionalidade uma estrutura diferenciada. O ato não será adequado quando não proteja o direito fundamental de maneira ótima; não será necessário na hipótese de existirem medidas alternativas que favoreçam ainda mais a realização do direito fundamental; e violará o subprincípio da porporcionalidade em sentido estrito se o grau de satisfação do fim legislativo é inferior ao grau em que não se realiza o direito fundamental de proteção". [99]

Com base nessa visão, conclui-se que os mandatos constitucionais de criminalização impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de se observar o princípio da proporcionalidade, como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente. O princípio da proporcionalidade deve guiar sempre a intervenção estatal por meio do Direito Penal, como ultima ratio. [100]

Dessa forma, não parece haver nenhum óbice constitucional à categoria dos crimes de perigo abstrato.

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Sobre a autora
Renata Carvalho Derzié Luz

Advogada. Ex-Funcionária Pública Federal do Superior Tribunal de Justiça. Ex-Assessora de ministro. Bacheralada em Direito pelo UniCeub - Centro Universitário de Brasília, com área de concentração em Direito Penal. Pós-graduada pela Fundação Escola do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios no Curso Ordem Jurídica e Ministério Público. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Sevilha (Espanha). Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Sevilha (Espanha).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUZ, Renata Carvalho Derzié. A constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato: a tipicidade do porte de arma de fogo desmuniciada com base na jurisprudência do STJ e do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3123, 19 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20877. Acesso em: 16 abr. 2024.

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