4. A TIPICIDADE DO PORTE DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA
O porte ilegal de armas de fogo foi, durante décadas, tratado apenas como uma simples contravenção penal. Mas, em vista da crescente criminalidade violenta, foi editada, em 1997, a Lei n. 9.437/97, que tornou essa conduta um crime, cominando pena de um a dois anos e multa.
Mas, a referida lei não se mostrou suficiente para combater a crescente violência, porquanto, anualmente, cresciam as taxas de diversas modalidades de crimes, como homicídio, latrocínio e extorsão mediante sequestro. Como de costume, o Estado brasileiro foi incapaz de tomar as providências administrativas cabíveis para fortalecer a segurança pública, e tomou a atitude de aprovar uma lei penal mais rigorosa, como se apenas isso resolvesse o problema. Daí nasceu a Lei n. 10.826/2003, mais conhecida como "Estatuto do Desarmamento". [101]
Observa-se do Estatuto do Desarmamento que importantes alterações foram realizadas, na medida em que a lei passou a punir não só o porte ilegal de arma de fogo, mas também de acessórios e munições. Além disso, a pena foi aumentada de 1 a 2 anos para de 2 a 4 anos, deixando o crime de ser considerado de menor potencial ofensivo (julgado pelos Juizados Especiais), passando a ser de alto potencial ofensivo. O crime também tornou-se inafiançável, devendo o acusado responder ao processo preso, a menos que a arma se encontre registrada em seu próprio nome.
Não há dúvidas de que o legislador passou a considerar o crime de porte ilegal de armas de fogo como um crime de relevante gravidade. Mais do que isso, passou a tipificar o porte ilegal de munição. Assim, nos dias de hoje, é crime o porte ilegal de arma de fogo, isoladamente, ou seja, sem munição, e o porte de munição, isoladamente, ou seja, sem estar inserida em uma arma. [102]
Tal dedução parece ser uma decorrência lógica da redação do art. 14 do Estatuto do Desarmamento, que assim dispõe:
"Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável, salvo quando a arma de fogo estiver registrada em nome do agente."
Entretanto, a doutrina e a jurisprudência dos Tribunais superiores ainda não encontraram um entendimento comum e pacífico sobre a questão, havendo quem entenda pela tipicidade da conduta, considerando tal tipo como um crime de perigo abstrato, e quem, em sentido contrário, entenda pela atipicidade, por entender que o tipo violaria princípios constitucionais de extrema importância.
4.1. A POSIÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A sociedade se modificou e se modifica constantemente, trazendo para dentro da vida social, modelos que nem sempre o direito consegue acompanhar. Com o avanço social, novas figuras penais aparecem, assim como aumenta a periculosidade, a violência, que são figuras presentes, hoje, na vida em sociedade, em virtude do sistema capitalista, das novas interações sociais, das novas tecnologias.
O cerne da questão da tipicidade do porte de arma de fogo desmuniciada está na capacidade lesiva da conduta de portar arma de fogo sem munição, em aferir se isso apresenta, realmente, um perigo ou não, se há lesividade, ofensividade nesta conduta.
As 5ª e 6ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça, pela maioria de seus membros, entendem que é típica a conduta de portar arma de fogo desmuniciada sem autorização legal, defendendo, em geral, que o porte de arma de fogo desmuniciada e o de munições, mesmo configurando hipótese de perigo abstrato ao objeto jurídico protegido pela norma, constitui conduta típica.
Os ministros que adotam esse posicionamento, defendem a tese de que a Lei n. 10.826/2003, mais conhecida como o Estatuto do Desarmamento, que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munições, define claramente a conduta de portar arma de fogo sem autorização legal, ainda que desmuniciada, restando claro que o intuito do legislador foi tratar de modo mais rígido o porte e o uso de arma de fogo e munições, ampliando o rol das condutas delituosas. Nesse sentido, os seguintes julgados:
"RECURSO ESPECIAL. PENAL. CRIME DE PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO RESTRITO (ART 16, INCISOS III E IV, DA LEI N.º 10.826/03). PRISÃO EM FLAGRANTE EM 15/03/2005. VIOLAÇÃO A DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS. VIA INADEQUADA. AUSÊNCIA DE PROVAS PARA A CONDENAÇÃO. REEXAME DE PROVAS, AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO E DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO. VERBETE SUMULAR N.º 7 DO STJ E SÚMULAS N.ºS 284, 282 e 356 DO STF. ARMA DESMUNICIADA. AUSÊNCIA DE TIPICIDADE. FALTA DE INDICAÇÃO DO DISPOSITIVO INFRACONSTITUCIONAL SUPOSTAMENTE VIOLADO. SÚMULA N.º 284 DO STF. ABOLITIO CRIMINIS TEMPORÁRIA. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. RECURSO NÃO CONHECIDO.
1. Com relação à arguida violação aos princípios e garantias constitucionais previstos no art. 5.º, incisos LVII, LXV e LXVI, da Constituição Federal, cabe esclarecer que a via especial, destinada à uniformização da interpretação da legislação infraconstitucional, não se presta à análise de possível violação a dispositivos da Carta Magna.
2. A insurgência relativa à ausência de provas para a condenação não deve ser conhecida, tendo em vista a incidência, na hipótese, da Súmula n.º 7 deste Superior Tribunal de Justiça e das Súmulas n.ºs 284, 282 e 356 do Supremo Tribunal Federal.
3. As alegações relativas à ausência de tipicidade, sob o argumento de que, segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal no RHC 81.057/SP, a arma desmuniciada não é apta a configurar as infrações previstas no Estatuto do Desarmamento, não deve ser conhecida por carência na fundamentação, na medida em que o recurso foi interposto com fundamento na alínea a do permissivo constitucional e não foi indicado o dispositivo infraconstitucional supostamente violado, o que impõe a aplicação do verbete sumular n.º 284 do Supremo Tribunal Federal.
4. Ainda que assim não fosse, este Tribunal já firmou o entendimento segundo o qual o porte ilegal de arma de fogo desmuniciada e o de munições, mesmo configurando hipótese de perigo abstrato ao objeto jurídico protegido pela norma, constitui conduta típica.
5. Desse modo, estando em plena vigência o dispositivo legal ora impugnado, não tendo sido declarada sua inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, não há espaço para a pretendida absolvição do Réu, em face da atipicidade da conduta.
6. Por fim, sustenta que a condenação relativa ao crime previsto no art. 16, incisos III e IV, da Lei n.º 10.826/03, segundo alega, não pode subsistir, porquanto o mencionado delito foi cometido durante a vacatio legis da novel legislação. Essa insurgência não pode ser conhecida, tendo em vista a ausência de prequestionamento, o que implica a aplicação das Súmulas n.ºs 282 e 356 do Supremo Tribunal Federal.
7. Além disso, importante asseverar que somente as condutas delituosas relacionadas à posse de arma de fogo foram abarcadas pela denominada abolitio criminis temporária, prevista nos arts. 30, 31 e 32 da Lei 10.826/03, não sendo possível estender o benefício para o crime de porte ilegal de arma de fogo de uso restrito. Precedentes.
8. Recurso não conhecido." (REsp 882.532/RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª Turma, DJe 05/04/2010)
"PENAL. HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO RESTRITO. NULIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. ARMA DESMUNICIADA. IRRELEVÂNCIA PARA A CARACTERIZAÇÃO DO DELITO. ORDEM DENEGADA.
1. A objetividade jurídica dos crimes de porte e posse de arma de fogo tipificados na Lei 10.826/03 não se restringe à incolumidade pessoal, alcançando, por certo, também, a liberdade pessoal, protegidas mediatamente pela tutela primária dos níveis da segurança coletiva, do que se conclui ser irrelevante a eficácia da arma para a configuração do tipo penal.
2. Para se configurar a tipicidade da conduta prevista no art. 14 da Lei 10.826/03, é irrelevante que a arma apreendida esteja desmuniciada, bastando que haja o porte ou a posse ilegal da arma de fogo.
3. Ordem denegada." (HC 147.623/RJ, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima. 5ª Turma, DJe 05/04/2010)
"PENAL. HABEAS CORPUS. ARTIGO 14 DA LEI N.º 10.826/03. PORTE ILEGAL DE ARMA. TIPICIDADE. ARMA DESMUNICIADA. IRRELEVÂNCIA PARA A CONFIGURAÇÃO DO DELITO.
Na linha de precedentes desta Corte, pouco importa para a configuração do delito tipificado no art. 14 da Lei n.º 10.826/03 que a arma esteja desmuniciada, sendo suficiente o porte de arma de fogo sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar (Precedentes desta Corte). Ordem denegada." (HC 146.425/GO, Rel. Min. Félix Fischer, 5ª Turma, DJe 22/02/2010)
" HABEAS CORPUS PREVENTIVO. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO COM NUMERAÇÃO RASPADA (ART. 16, PARÁG. ÚNICO DA LEI 10.826/03). ABOLITIO CRIMINIS TEMPORÁRIA INEXISTENTE. VACATIO LEGIS DOS ARTS. 30 E 32 DA LEI 10.826/03 INAPLICÁVEL, NA HIPÓTESE. ARMA DESMUNICIADA. CONDUTA TÍPICA. PRECEDENTES DO STJ. OPINA O MPF PELA DENEGAÇÃO DO WRIT. ORDEM DENEGADA.
1. A Lei 10.826/03 não aboliu o crime de porte ilegal de arma de fogo e munições, anteriormente regulado pelo art. 10 da Lei 9.437/97, prevendo-o, expressamente, agora nos arts. 12, 14 e 16, inclusive com alteração da pena máxima para maior, inexistente, assim, a abolitio criminis do referido delito.
2. Esta Corte firmou o entendimento de ser atípica a conduta apenas no concernente ao crime de posse irregular de arma de fogo, tanto de uso permitido (art. 12) quanto de uso restrito (art. 16), no período estabelecido nos arts. 30 e 32 da Lei 10.826/03, que permitiu a entrega das armas à Polícia Federal mediante indenização ou a sua regularização. A conduta de portar arma de fogo sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, que ensejou a denúncia do paciente, continuou típica e não foi abrangida pela descriminalização temporária.
3. A circunstância da arma de fogo se encontrar desmuniciada não exclui, por si só, a tipicidade do delito, uma vez que a conduta de portar armamento coloca em risco a paz social, bem jurídico a ser protegido pelo artigo art. 14 da Lei 10.826/03. Precedentes.
4. Ordem denegada, em conformidade com o parecer ministerial." (HC 142.359/Sp, Rel. Min. Napoleão Maia Nunes Filho, 5ª Turma, DJe 22/02/2010)
"HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. DOSIMETRIA. EMPREGO DE ARMA DE FOGO. CAUSA DE AUMENTO DE PENA. REVÓLVER COM DEFEITO E DESMUNICIADO. CONSTATAÇÃO POR PERÍCIA. AUSÊNCIA DE POTENCIALIDADE LESIVA. MAJORANTE NÃO CARACTERIZADA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL DEMONSTRADO. AFASTAMENTO PROCEDIDO. REPRIMENDA REDIMENSIONADA.
1. A utilização de arma comprovadamente ineficaz para disparo e, ademais, desmuniciada, não autoriza o reconhecimento da causa de especial aumento de pena prevista no inciso I do § 2º do art. 157 do Código Penal. Precedentes deste STJ.
PORTE DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO COM NUMERAÇÃO RASPADA. POTENCIALIDADE LESIVA DO ARMAMENTO APREENDIDO. LAUDO PERICIAL ATESTANDO A INAPTIDÃO DO REVÓLVER. IRRELEVÂNCIA. DESNECESSIDADE DO EXAME. CRIME DE MERA CONDUTA. COAÇÃO ILEGAL NÃO EVIDENCIADA. ACÓRDÃO CONDENATÓRIO MANTIDO.
1. O simples fato de portar arma de fogo de uso permitido com numeração raspada viola o previsto no art. 16 da Lei 10.826/03, por se tratar de delito de mera conduta ou de perigo abstrato, cujo objeto imediato é a segurança coletiva.
2. A existência de laudo pericial atestando a inaptidão do revólver apreendido mostra-se irrelevante, pois o delito do art. 16 da Lei 10.826/03 configura-se com o simples enquadramento do agente em um dos verbos descritos no tipo penal repressor.
REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA. MODO FECHADO. FIXAÇÃO DE FORMA MENOS GRAVOSA. CONDENAÇÃO EM DOIS CRIMES. CONCURSO MATERIAL. REPRIMENDA SUPERIOR A OITO ANOS. NÃO PREENCHIMENTO DO REQUISITO OBJETIVO. MODIFICAÇÃO INVIÁVEL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO PATENTEADO.
1. Não há falar em constrangimento ilegal na imposição do modo fechado para o resgate da sanção reclusiva se a soma das penas dos tipos incriminadores em que restou condenado o paciente, considerando o concurso material entre os delitos de roubo agravado pelo concurso de agentes e o de porte de arma de fogo de uso permitido com numeração raspada, superou o patamar de oito anos de reclusão. Exegese do art. 33, § 2º, a, do Estatuto Repressivo.
2. Ordem parcialmente concedida tão-somente para excluir da condenação do delito de roubo a causa de especial aumento de pena disposta no inciso I do § 2º do art. 157 do CP, restando a sanção do paciente definitiva em 8 anos e 4 meses de reclusão e pagamento de 23 dias-multa, por violação aos arts. 157, § 2º, II, do Código Penal, e 16, parágrafo único, IV, da Lei 10.826/03, mantidos, no mais, a sentença e o acórdão combatidos." (HC 106.206/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, DJe 13/10/2009)
"HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. ATIPICIDADE. ARMA DESMUNICIADA. IRRELEVÂNCIA. APREENSÃO DE MUNIÇÃO.
1. O desmuniciamento da arma não conduz à atipicidade da conduta, bastando, como basta, para a caracterização do delito, o porte de arma de fogo sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
2. A objetividade jurídica, in casu, é a segurança, que se desdobra em níveis e comporta lesão.
3. É que, nos tipos mistos alternativos, excluídos os casos da atipicidade absoluta, as ações que o integram não devem ser interpretadas isoladamente, não havendo como exigir-se o municiamento da arma de fogo, se o ilícito se caracteriza só com o porte de munição, também apreendida na espécie.
4. Ordem denegada." (HC 78.190/RJ, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, 6ª Turma, DJe 18/08/2008)
"PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRANSPORTE DE ARMA. 1. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ARMA DESMUNICIADA, DESMONTADA E ARMAZENADA EM SACOLA NA CARROCERIA DE CAMINHONETE. IMPOSSIBILIDADE IMEDIATA DE DISPARO. IRRELEVÂNCA. ATIPICIDADE. INOCORRÊNCIA. 2. ORDEM DENEGADA.
1. Tratando-se de transporte de arma de fogo, desmuniciada e desmontada, armazenada em sacola, na carroceria de caminhonete, comprovadamente apta a efetuar disparos, não há falar em atipicidade tendo em conta a redação abrangente do art. 14 do Estatuto do Desarmamento.
2. Ordem denegada." (HC 56.358/RJ, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, DJ 26/11/2007)
No entanto, ainda que minoritariamente, existem ministros que compõem a 6ª Turma do STJ, dentre eles o Ministro Nilson Naves, que se aposentou recentemente, que divergem desse entendimento, defendendo não ser típica a conduta de portar arma de fogo desmuniciada sem autorização legal, sob o argumento de que arma, para ser arma, tem que ser eficaz, tem que ser lesiva, caso contrário, de arma não se cuida. Confiram-se:
"Arma de fogo (porte ilegal). Arma sem munição (caso). Atipicidade da conduta (hipótese).
1. A arma, para ser arma, há de ser eficaz; caso contrário, de arma não se cuida. Tal é o caso de arma de fogo sem munição, que, não possuindo eficácia, não pode ser considerada arma.
2. Assim, não comete o crime de porte ilegal de arma de fogo, previsto na Lei nº 10.826/03, aquele que tem consigo arma de fogo desmuniciada.
3. Agravo regimental provido." (AgRg no HC 76.998/MS, Rel. Min. Haroldo Rodrigues, Rel. para acórdão Min, Nilson Naves, 6ª Turma, DJe 22/02/2010)
"Arma de fogo (porte ilegal). Falta de munição (caso). Atipicidade da conduta (hipótese).
1. A arma, para ser arma, há de ser eficaz; caso contrário, de arma não se cuida. Tal é o caso de arma de fogo sem munição, que, não possuindo eficácia, não pode ser considerada arma.
2. Não comete, pois, crime de porte ilegal de arma de fogo aquele que consigo tem arma de fogo desmuniciada.
3. Habeas corpus concedido." (HC 116.742/MG, Rel. Min. Jane Silva, Rel. para acórdão Min. Nilson Naves, 6ª Turma, DJe 16/02/2009)
"Arma de fogo (porte ilegal). Arma sem munição (caso). Atipicidade da conduta (hipótese).
1. A arma, para ser arma, há de ser eficaz; caso contrário, de arma não se cuida. Tal é o caso de arma de fogo sem munição, que, não possuindo eficácia, não pode ser considerada arma.
2. Assim, não comete o crime de porte ilegal de arma de fogo, previsto na Lei nº 10.826/03, aquele que tem consigo arma de fogo desmuniciada.
3. Ordem de habeas corpus concedida." (HC 70.544/RJ, Rel. Min. Nilson Naves, 6ª Turma, DJe 03/08/2009)
4.2. A POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O Supremo Tribunal Federal, por meio da sua 1ª Turma, entende da mesma forma que a jurisprudência majoritária do Superior Tribunal de Justiça, que a conduta de portar arma de fogo desmuniciada sem autorização é típica. Para tanto, os ministros que compõem este órgão de julgamento defendem que a arma de fogo é a arma que mais apresenta potencial de lesividade, maior do que qualquer outro objeto de que se possa fazer ocasionalmente uso como instrumento de ataque ou de defesa, sendo muito maior a possibilidade de seu emprego para vitimar, de uma só vez, múltiplas pessoas, o que assombra toda a sociedade.
Para o Ministro Carlos Britto
"não há como negar o fato de uma automática associação de idéia entre as armas de fogo e os mais temíveis crimes contrra o indivíduo, o patrimônio e a segurança pública. Sobre nenhum outro mecânico instrumento de ataque ou de defesa se faz tão centrado objeto de contrabando ou venda clandestina. Nenhum se presta com tanta repetição como fator de acidentes domésticos fatais e vitimação a esmo (aberratio ictus), de que a recorrente expressão ‘bala perdida’ tem conferido a exata medida. Tornando-se elas mesmas - as armas de fogo – o próprio objeto de constantes assaltos a agentes policiais e vigilantes em geral para a sua criminosa obtenção. Tudo a revelar uma superior eficácia de uso para o bem ou para o mal. Não sendo por acaso que o empredo do termo ‘passar fogo’ se haja consagrado como sinônimo do ato de matar. E as expressões ‘dedo no gatilho’ e ‘alça de mira’ denotarem o mais sério risco de morte para alguém" (RHC 91.553/DF).
Ressalta o Min. Carlos Britto que
"não há como destipificar a circunstancial conduta do indivíduo que se encontre com arma de fogo, porém desmuniciada ou sem possibilidade de imediato municiamento. É que tal eventualidade pode não ser – e quase sempre não é – percebida pelos outros. Daí que a reação média desses outros sujeitos não se modifique. Permanecendo íntegra, por consequência, a necessidade de preservação dos bens que a ordem legal teve em mira proteger, ao interditar o porte em si dos artefatos do gênero" (RHC 91.553/DF).
Sendo assim, defendem os ministros que não há como deixar de considerar o caráter de perigo abstrato da conduta criminalizada. Nesse sentido, confiram-se:
"EMENTA: PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. ARMA DESMUNICIADA. TIPICIDADE. CARÁTER DE PERIGO ABSTRATO DA CONDUTA. RECURSO IMPROVIDO. 1. O porte ilegal de arma de fogo é crime de perigo abstrato, consumando-se pela objetividade do ato em si de alguém levar consigo arma de fogo, desautorizadamente e em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Donde a irrelevância de estar municiada a arma, ou não, pois o crime de perigo abstrato é assim designado por prescindir da demonstração de ofensividade real. 2. Recurso improvido." (HC 91.553/DF, Rel. Min. Carlos Britto, 2ª Turma, DJe 21/08/2009)
"EMENTA: PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PORTE DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. INTELIGÊNCIA DO ART. 14 da Lei 10.826/03. TIPICIDADE RECONHECIDA. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. RECURSO DESPROVIDO. I. A objetividade jurídica da norma penal transcende a mera proteção da incolumidade pessoal, para alcançar também a tutela da liberdade individual e do corpo social como um todo, asseguradas ambas pelo incremento dos níveis de segurança coletiva que a Lei propicia. II. Mostra-se irrelevante, no caso, cogitar-se da eficácia da arma para a configuração do tipo penal em comento, isto é, se ela está ou não municiada ou se a munição está ou não ao alcance das mãos, porque a hipótese é de crime de perigo abstrato, para cuja caracterização desimporta o resultado concreto da ação. III - Recurso desprovido." (HC 90.197/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowisky, 1ª Turma, DJe 04/09/2009)
Em entendimento diametralmente oposto entende a 2ª Turma da Corte Suprema, defendendo ser atípica a conduta de portar arma de fogo desmuniciada. Confiram-se:
"EMENTA: AÇÃO PENAL. Crime. Arma de fogo. Porte ilegal. Arma desmuniciada, sem disponibilidade imediata de munição. Fato atípico. Falta de ofensividade. Atipicidade reconhecida. Absolvição. HC concedido para esse fim. Inteligência do art. 10 da Lei n° 9.437/97. Voto vencido. Porte ilegal de arma de fogo desmuniciada, sem que o portador tenha disponibilidade imediata de munição, não configura o tipo previsto no art. 10 da Lei n° 9.437/97." (HC 99.449/MG, Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. para acórdão Min. Cezar Peluso, 2ª Turma, DJe 12/02/2010)
"EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. ARMA DESMUNICIADA E ENFERRUJADA. AUSÊNCIA DE EXAME PERICIAL. ATIPICIDADE. Inexistindo exame pericial atestando a potencialidade lesiva da arma de fogo apreendida, resulta atípica a conduta consistente em possuir, portar e conduzir arma de fogo desmuniciada e enferrujada. Recurso provido." (HC 97.477/RJ, Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. para acórdão Min. Eros Grau, 2ª Turma, DJe 29/10/2009)
"EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. ARMA DESMUNICIADA. AUSÊNCIA DE LAUDO PERICIAL. ATIPICIDADE. Inexistindo laudo pericial atestando a potencialidade lesiva da arma de fogo resulta atípica a conduta consistente em possuir, portar e conduzir espingarda sem munição. Ordem concedida." (HC 97.811/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. para acórdão Min. Eros Grau, 2ª Turma, DJe 21/08/2009)