RESUMO
O artigo tem por escopo a pesquisa do precatório, criação genuinamente brasileira, como forma de garantir que a Fazenda Pública venha a adimplir o que deve aos seus credores. Pretende-se analisar também as formas de execução contra a Fazenda Pública e, enfatizando a problemática da pesquisa, a Emenda Constitucional n° 62/2009, que trouxe alterações ao Art. 100 da Constituição Federal e acrescentou o Art. 97 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, instituindo regime especial de pagamento de precatórios pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, no intuito de demonstrar que a referida emenda, conhecida como "PEC DO CALOTE", contrapõe-se a inúmeras normas constitucionais.
Palavras-chaves: Precatório. Execução. Fazenda Pública. Emenda Constitucional n° 62/2009.
ABSTRACT
This article aims to search the precatory, a genuinely Brazilian, as a way of ensuring that the exchequer pay what you owe to your creditors. Also intends to examine the forms of execution against the Treasury and, especially, Constitutional Amendment No. 62/2009, which brought changes to Article 100 of the Constitution and added Article 97 to the Transitional Constitutional Provisions Act, establishing special arrangements for the payment of judicial Federal District and Municipalities. In order to demonstrate that such amendment, known as "PEC of default", many wounded and constitutional principles.
Keywords: Precatory. Implementation. Revenue. Constitutional Amendment 62/2009.
Sumário: 1. Introdução. 2. Execução contra a Fazenda Pública. 3. Precatório: Natureza Jurídica e sua Evolução na Legislação Brasileira. 4. Emenda Constitucional nº 62/2009. 5. Conclusão. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O artigo versa sobre os precatórios e a Emenda Constitucional n° 62, de 09 de dezembro de 2009, que trouxe alterações ao Art. 100 da Constituição Federal e acrescentou o Art. 97 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, instituindo regime especial de pagamento de precatórios pelos Estados, Distrito Federal e Municípios.
O interesse pela pesquisa dá-se em razão das execuções contra a Fazenda Pública, por ser o precatório o único meio de garantia de satisfação do crédito contra a Fazenda Pública. Nisso, buscou-se entender e analisar esse instituto, para, ao final, discorrer sobre sua evolução histórica na legislação brasileira, com todas as suas nuances, e, também, urdir comentários e críticas à EC n° 62/2009, popularmente conhecida como "PEC DO CALOTE".
Em relação aos aspectos metodológicos, as hipóteses são investigadas através de pesquisa bibliográficas, em sites da internet, a partir da investigação livre e exploratória sobre a temática.
No decorrer deste artigo, serão abordados: o instituto do precatório, sua natureza jurídica e evolução histórica na legislação brasileira, os métodos e formas de execução contra a Fazenda Pública (nas esferas Federal, Estadual e Municipal) e as inovações trazidas pela EC n° 62/2009, que alterou o art. 100 da CF/88 e incluiu o art. 97 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Por último, demonstrar-se-á que a Emenda Constitucional acima referida, além de afrontar vários princípios constitucionais, tem a finalidade única de chancelar o calote institucionalizado do Poder Público, frente aos seus credores.
Antes de adentrar ao tema proposto, cumpre-se, inicialmente, falar sobre a execução contra a Fazenda Pública, cujo entendimento é fundamental para a visualização lúcida do todo.
2. EXECUÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA
Enquanto no processo de conhecimento o juiz examina a lide para descobrir e formular a regra jurídica concreta que deve regular o caso, no processo de execução ele providencia as operações práticas necessárias para efetivar o conteúdo daquela regra, para modificar os fatos da realidade, de modo que se realize a coincidência entre as regras e os fatos.
A Lei n° 11.232, de 22 de dezembro de 2005, reformou significativamente o Código de Processo Civil, tendo como consequência a extinção do processo autônomo de execução fundada em título judicial, sendo, então, o cumprimento da sentença uma simples fase do processo de conhecimento. Nisso, a sentença possui força coercitiva e deve ser objeto de simples cumprimento, em substituição ao autônomo processo de execução forçada.
Permanece, por razões óbvias, o processo autônomo de execução para os títulos executivos extrajudiciais, arrolados no art. 585 do CPC.
Todavia, no caso da execução por quantia certa contra as Fazendas Públicas, continua a regra antiga: há processo autônomo de execução, estando este disciplinado no Livro II do CPC, precisamente nos arts. 730 e 731. O art. 741 cuida dos embargos opostos pela Fazenda Pública, relacionando as matérias que podem ser versadas em tais embargos. Assim, o autor de ação contra a Fazenda Pública, cujo objeto verse sobre obrigação pecuniária, de posse do acórdão transitado em julgado (o art. 475, I, do CPC determina o duplo grau obrigatório sempre que a sentença condenar as Fazendas Públicas), deverá promover a execução fundada no título judicial (acórdão), requerendo a citação do ente público para, querendo, opor embargos à execução. Com efeito, somente após o trânsito em julgado da sentença prolatada nos embargos é que poderá ser expedido o precatório.
O conceito de execução, no sentido jurídico, está relacionado à satisfação de uma obrigação, seja ela decorrente da vontade das partes envolvidas (atividade negocial) ou da norma de direito material reconhecida em decisão do órgão judicial competente (atividade jurisdicional).
O ato executivo tem a virtualidade de provocar alterações no mundo natural. O objetivo da execução é adequar o mundo físico ao projeto sentencial, empregando a força do Estado (art. 579 do CPC). Essas modificações fáticas requerem, por sua vez, a invasão da esfera jurídica do executado e não só do seu círculo patrimonial, porque, no direito pátrio, os meios de coerção se ostentam admissíveis. A medida do ato executivo é seu conteúdo coercitivo.
A execução possui natureza jurisdicional por materializar a vontade abstrata da lei através dos órgãos judiciais, substituindo a atividade privada das partes. Conclui-se que a execução é a atividade jurisdicional que visa assegurar ao detentor de título executivo, judicial ou extrajudicial, a satisfação de seu direito mediante o uso da coerção ou da expropriação patrimonial contra o executado.
A ação de execução é gênero do qual são espécies: a execução para a entrega de coisa (certa ou incerta), a execução das obrigações de fazer ou de não fazer e a execução por quantia certa (contra devedor solvente e contra devedor insolvente). Na espécie da execução por quantia certa, inserem-se as subespécies da execução de prestação alimentícia, da execução fiscal e da execução contra a Fazenda Pública.
A diferença que há entre as espécies é orientada pelo objeto da execução, indicando a prestação a ser satisfeita pelo credor (pagar, entregar coisa, fazer ou não fazer). Nas subespécies, tem-se regras específicas, que se originam da preocupação de serem tutelados os interesses de uma das partes do processo, em vista da necessidade de uma prestação jurisdicional mais célere e efetiva (como ocorre na situação que envolve a execução de prestação alimentícia), do interesse público revelado na lide (na execução fiscal) ou na impossibilidade de ser efetivada a penhora em bens da parte devedora (na execução contra a Fazenda Pública).
3. PRECATÓRIO: NATUREZA JURÍDICA E SUA EVOLUÇÃO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
Precatório é o requisitório ou pedido de pagamento ao Presidente do Tribunal respectivo, feito pelo juiz de processo findo, com sentença de execução transitada em julgado, quando o devedor é a Fazenda Pública, Federal, Estadual ou Municipal, quer seja na administração direta (órgãos integrantes dos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário), quer seja na administração indireta (autarquias e fundações públicas).
Etimologicamente, precatório vem do latim precatoriu, e o verbo precatar significa: colocar de sobreaviso, prevenir, acautelar. No caso do Direito Processual Civil, o Poder Judiciário roga ao Poder Executivo que se previna orçamentariamente para o pagamento de execução de ordem judicial transitada em julgado e impossibilitada de ser modificada por recurso.
Segundo De Plácido e Silva (2008, p.1075):
[...] Precatório também é, no Direito Processual, a carta de sentença remetida pelo juiz da causa ao presidente do Tribunal para que este requisite ao Poder Público, mediante previsão na lei orçamentária anual, o pagamento de quantia certa para satisfazer obrigação decorrente de condenação das pessoas políticas, suas autarquias e fundações.
Conforme Oliveira (2007, p. 45), "A compreensão de qualquer instituto do Direito, como em qualquer ciência, ocorre com o entendimento de suas peculiaridades, exige que se desvende a natureza do objeto de estudo consoante com a ciência que o está examinando".
Com efeito, para entender melhor o precatório deve-se, antes, buscar a visualização da sua natureza jurídica. Portanto, trata-se referido instituto de ato administrativo, porquanto essa é a característica que lhe sobressai, pois, uma vez que não contém carga decisória, não poderia ser classificado como ato judicial, muito menos podia ser caracterizado como ato legislativo, porquanto não fixa norma de ordem geral.
Vale acrescentar que é ato administrativo de comunicação interna, por intermédio do qual o Estado-Poder Judiciário comunica-se com o Estado-Poder Executivo, dando-lhe notícia da condenação a fim de que, ao elaborar o orçamento-programa para o próximo exercício, o valor correspondente tenha sido incluído na previsão orçamentária.
Em que pese o fato de realizar-se a expedição na seara do Judiciário, o precatório corresponde ao ato não judicial, mesmo porque ocorre posteriormente ao término da fase judicial do processo de execução contra a Fazenda Pública, conforme perceptível na sistemática adotada pelo CPC, nos arts. 730 e 731.
Portanto, ressalte-se que não pode haver dúvida de que trata o precatório de ato administrativo praticado por autoridade judiciária em exercício de funções administrativas, ou seja, presidentes de tribunais a que se ligue o juízo prolator da decisão proferida contra a Fazenda Pública e que, tendo percorrido todo o caminho do processo de execução, alcança o momento preconizado no art. 730 do CPC.
O surgimento e a evolução do precatório na legislação constitucional brasileira não são tão antigos quanto parecem. Tanto que, as Constituições de 1824 (Carta do Império) e a de 1891 (primeira da República) em nada dispunham sobre essa matéria. Aliás, a Carta de 25/03/1824 continha um único capítulo, com três artigos, que tratava "Da Fazenda Nacional", e que, no art. 171, falava em "amortizações da dívida pública", sem mais explicações. E, no art. 179, o último daquela Carta, com 35 incisos, discorria sobre as "garantias individuais", dispondo nos incisos 22 e 23 sobre a garantia do direito de propriedade e sobre a garantia da dívida pública. Segundo Cunha (2000, p.20), o inciso 22 rezava: "Se o bem público, legalmente verificado, exigir o uso e o emprego da propriedade do cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A lei marcará os casos com que terá lugar esta única exceção e dará as regras para se determinar a indenização".
Para Cunha (2000, p.20), "[...] a Carta de 24/02/1891, era mais sucinta ainda, dispondo no art. 72, que tratava da ‘Declaração de Direitos’ e das garantias individuais, no inciso 17, o seguinte: ‘O direito de propriedade mantém-se em toda sua plenitude, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia’".
O precatório só foi criado em virtude da impenhorabilidade dos bens públicos, tendo sua origem no direito processual civil, mais precisamente na prática forense. Aduz-se que a forma mais rudimentar de seu surgimento veio da imaginação de um juiz diante de um problema surgido na execução de sentença contra uma Câmara municipal, em que um particular (credor) pleiteava o pagamento de certa quantia. Destarte, a impenhorabilidade dos bens públicos não poderia isentar a Fazenda Pública de pagar o seu débito. O engenhoso magistrado resolveu a questão expedindo precatória de vênia, com o que determinou a penhora do próprio dinheiro da tesouraria da referida Câmara. Surgia, assim, a forma mais primitiva de requisição que, mais tarde, seria adotada como precatório.
Porém, as omissões quanto à regulamentação e forma dos pagamentos, antes da Constituição de 1934, deixavam o credor da Fazenda Pública à mercê da vontade do administrador, que geralmente dava o calote, não pagando o que devia, sem que aquele pudesse dispor de qualquer instrumento legal para compelir o Poder Público a satisfazer a sua obrigação.
Disso, com a evolução natural da sociedade brasileira e o aumento crescente das relações entre os particulares e o Poder Público, aumentou-se também a pressão daqueles sobre esse quanto à exigência da garantia de seus direitos, inclusive no que tange ao pagamento das dívidas contraídas com os cidadãos comuns, as quais sempre tiveram as mais variadas origens, que vão desde a desapropriação de imóvel particular, por interesse social ou utilidade pública, até créditos decorrentes das relações de trabalho.
A Constituição Federal de 1934, em seu art. 182, foi a primeira a tratar do assunto, porém, a matéria só se referia à Fazenda Pública Federal e não amparava os credores das Fazendas Estaduais e Municipais.
O Código de Processo Civil de 1939 tratou do precatório no parágrafo único do art. 918, todavia, não usou expressamente a palavra "precatório", mas simplesmente, "requisições". Entretanto, pelo seu teor, é evidente que o texto do parágrafo se refere ao que hoje entende-se por precatório. Pode-se dizer que, ainda de maneira acanhada, incluiu no seu bojo as Fazendas Estaduais e Municipais, posto ser o primeiro a mencionar, genericamente, a expressão "Fazenda Nacional".
A Constituição democrática de 18/09/1946 tratou do instituto em seu art. 204 e parágrafo único e, semelhantemente ao CPC de 1939, também dispôs sobre as Fazendas Estaduais e Municipais, corrigindo as omissões das Constituições anteriores.
O golpe militar de 1964 alterou profundamente a Constituição e várias leis liberais, e através de referendo do Congresso Nacional, outorgou a Carta de 1967, a qual só tratou do corrente instituto após a Emenda n° 1 de 17/10/1969, especificamente em seu art. 117. A grande novidade desse novo dispositivo foi a obrigatoriedade de inclusão do débito na previsão orçamentária anual da entidade devedora, desde que a requisição fosse feita (apresentada no respectivo Tribunal) até 1º de julho.
A atual Constituição Federal de 05/10/1988 trouxe o instituto do precatório em seu art. 100 e parágrafos. Dessa forma, portanto, nasceu o instituto do precatório na Constituição e na legislação brasileira, como elemento moralizador da administração Pública e garantia para os credores da Fazenda Pública.
4. EMENDA CONSTITUCIONAL N° 62/2009
Antes de abordar-se a EC nº62, analisar-se-á aquela que pode ser considerada a "primeira moratória" no pagamento de precatórios, instituída pela Constituição de 1988, e também a "segunda moratória" instituída em 2000 pela EC nº30.
A discussão dos governantes públicos sobre dificuldade no pagamento de débitos oriundos de decisões judiciais não é nova. Essa questão, desde a Constituinte que deu origem à atual Constituição, já tinha importância, levando à inclusão, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), do artigo 33, in verbis:
"Ressalvados os créditos de natureza alimentar, o valor dos precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição, incluído o remanescente de juros e correção monetária, poderá ser pago em moeda corrente, com atualização, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de oito anos, a partir de 1o de julho de 1989, por decisão editada pelo Poder Executivo até cento e oitenta dias da promulgação da Constituição.
Parágrafo Único. Poderão as entidades devedoras, para o cumprimento do disposto neste artigo, emitir, em cada ano, no exato montante do dispêndio, títulos de dívida pública não computável, para efeito do limite global de endividamento."
O referido artigo pode ser tomado como a "primeira moratória" editada pelo Estado Brasileiro sob a vigência do atual sistema constitucional, pois débitos que deveriam ser pagos em uma única parcela foram parcelados em oito vezes, aplicando-se, somente, correção monetária, sem a incidência de juros moratórios. Nesse sentido, assentou o STF que:
"Não incidem juros moratórios e compensatórios sobre o parcelamento previsto no art. 33 do ADCT referente ao período posterior à promulgação da Constituição Federal de 1988 (RE 235217 AgR, Relator: Min, Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 23/06/2009, DJe-148 DIVULG 06-08-2009 PUBLIC 07-08-2009 EMENT VOL-02368-05 PP-01006)."
Não obstante a isso, esse parcelamento do art. 33 do ADCT, não serviu para cumprir sua suposta finalidade, porque a grande maioria dos Entes Federados permaneceu na inadimplência.
Em 2000, foi aprovada a Emenda Constitucional nº30, a qual inseriu no ADCT o artigo 78, abaixo reproduzido:
‘Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos.
§ 1o É permitida a decomposição de parcelas, a critério do credor.
§ 2º As prestações anuais a que se refere o caput deste artigo terão, se não liquidadas até o final do exercício a que se referem, poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora.
§ 3o O prazo referido no caput deste artigo fica reduzido para dois anos, nos casos de precatórios judiciais originários de desapropriação de imóvel residencial do credor, desde que comprovadamente único à época da imissão na posse.
§ 4º O Presidente do Tribunal competente deverá, vencido o prazo ou em caso de omissão no orçamento, ou preterição ao direito de precedência, a requerimento do credor, requisitar ou determinar o seqüestro de recursos financeiros da entidade executada, suficientes à satisfação da prestação."
Instituía-se, assim, a "segunda moratória", mas, desta vez, com a incidência de "juros legais" como forma de "suavizar" o custo político de um novo parcelamento.
A grande diferença prática do parcelamento previsto no art. 78 para o art. 33 do ADCT consistia no fato de que o não pagamento de uma das 10 parcelas concedia ao credor uma série de faculdades que garantiam uma maior efetividade do seu direito subjetivo. Seria possível, diante do inadimplemento, pedir o "sequestro" das contas públicas no valor respectivo ou ainda utilizar o crédito para compensação com tributos da pessoa política devedora.
Como consequência prática, chegou-se a um verdadeiro paradoxo: o Poder Público passou a pagar somente os precatórios parcelados, haja vista que seu não pagamento implicava na sanção representada pelo sequestro das contas públicas. Os demais precatórios, não sujeitos ao parcelamento (inclusive os alimentares), não eram pagos, pois seu inadimplemento não gerava maior consequência prática para os governantes.
Esta falta de efetividade dos precatórios se deve, em parte, ao entendimento do STF de que:
[...] o descumprimento voluntário e intencional de decisão judicial transitada em julgado é pressuposto indispensável ao acolhimento do pedido de intervenção federal (IF 5050 AgR, Relator: Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, julgado em 06/03/2008, DJe-074 DIVULG 24-04-2008 PUBLIC 25-04-2008 EMENT VOL-02316-03 PP-00501).
Decorre que, como no caso de não pagamento de precatórios o argumento-padrão sempre foi no sentido de que o inadimplemento ocorria em virtude de "dificuldades financeiras", não se caracterizando, para nossa Suprema Corte, o descumprimento "voluntário e intencional" da decisão judicial.
A moratória estabelecida pelo art. 78 do ADCT chegou a ser questionada no STF pela Confederação Nacional da Indústria, mediante Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) sob o no 2.356. Todavia, temia-se que a referida norma do art. 78 do ADCT deixasse de vigorar (por ser norma transitória e sua vigência durar somente até dezembro de 2010) e, consequentemente, essa ADI fosse extinta por "perda de objeto". Porém, em 25 de novembro de 2010 (exatos 10 anos depois), o Supremo deferiu o pedido de liminar suspendendo a eficácia dos dispositivos impugnados, fundamentando sua decisão com base no art.5°, caput, XXXV, XXXVI e § 1° e também no art. 60 § 4°, IV da Constituição Federal.
É nesse contexto que prepararam mais um ataque à efetividade da Justiça: a Emenda Constitucional n° 62/2009 – popularmente conhecida como "PEC DO CALOTE".
Convém analisar agora os principais aspectos da referida Emenda Constitucional.
A primeira inovação polêmica, trazida pela EC n° 62/2009 ao regime geral de pagamento de precatórios, foi a previsão no sentido de que ao expedir os precatórios, o ente federativo devedor deverá abater do seu valor os débitos tributários que o credor possuir perante a referida entidade, inscritos ou não em dívida ativa, ressalvados aqueles cuja execução esteja suspensa em virtude de contestação administrativa ou judicial.
Essa compensação obrigatória nada mais é do que uma medida coercitiva para o pagamento de tributos, na medida em que impede que o contribuinte em débito perante uma Fazenda Pública receba integralmente os precatórios a que faz jus.
A esse respeito, vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.453-7, declarou a inconstitucionalidade do artigo 19 da Lei nº 11.033/2004, que impôs restrição análoga, condicionando o pagamento de precatórios à apresentação de certidões de regularidade fiscal. Como reconheceu aquela Corte Constitucional, esse tipo de restrição afronta, entre outros princípios e garantias fundamentais, a separação dos Poderes, a coisa julgada e a efetividade da jurisdição.
Outra mudança promovida pela EC nº 62/2009 que merece destaque diz respeito à correção monetária dos precatórios. De acordo com o referido diploma legal, a partir da sua promulgação, a atualização dos requisitórios expedidos para o pagamento de precatórios passará a ser feita com base na remuneração básica da caderneta de poupança, e os juros para a compensação da mora passarão a ser calculados com base nos índices incidentes sobre a caderneta de poupança, ou seja, será aplicada a Taxa Referencial – TR, acrescida de juros moratórios de 6% ao ano.
Evidentemente, tal previsão acarretará perdas para os credores dos precatórios, uma vez que tais índices são inferiores aos que vinham sendo utilizados para a sua atualização.
No caso dos precatórios federais, por exemplo, a sua correção monetária ocorria com base no IPCA-E divulgado pelo IBGE, que reflete a real inflação verificada no País. Ora, uma vez que a correção monetária se presta justamente a impedir que os valores a serem recebidos a título de precatórios sejam corroídos pela inflação, não se pode admitir que sejam adotados índices que não reflitam a sua real variação, sob pena de violação à coisa julgada, formada no tocante à fixação, pelo Poder Judiciário, do valor a ser pago ao particular por meio de precatório.
Quanto ao regime especial de pagamento de precatórios aplicável aos Estados, Distrito Federal e Municípios, a EC nº 62/2009 dispõe que a sua disciplina caberia a uma lei complementar. No entanto, a emenda constitucional determina que, enquanto não for editada a lei complementar instituidora do referido regime, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios terão que seguir as regras previstas em seu próprio texto.
Para tanto, o artigo 97, acrescentado pela emenda constitucional ao ADCT, prevê que a adoção do referido regime especial pode dar-se de duas formas.
Na primeira forma, os governos estaduais, municipais e do Distrito Federal podem optar por depositar em uma conta especial, administrada pelo Tribunal de Justiça local, percentuais mínimos das suas respectivas receitas correntes líquidas para efetuar o pagamento dos precatórios por prazo indeterminado, quando o valor dos precatórios devidos for superior ao valor dos recursos vinculados para o seu pagamento. A segunda forma é a adoção do regime especial pelo prazo de até quinze anos, hipótese em que os governos estaduais e municipais devem depositar, anualmente, na conta especial destinada a tal fim, o valor correspondente ao saldo total dos precatórios devidos, acrescido de correção monetária e juros de mora, calculados pelos mesmos índices incidentes sobre a caderneta de poupança.
Os percentuais mínimos calculados sobre a receita corrente líquida de cada ente que devem ser destinados ao pagamento dos precatórios são os seguintes: 1,5% para os Estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e o Distrito Federal, ou cujo estoque de precatórios corresponda a até 35% da sua receita corrente líquida; 2% para os estados das regiões Sul e Sudeste, ou cujo estoque de precatórios pendentes supere os 35% da sua receita corrente líquida; 1% para os Municípios localizados nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, ou cujo estoque de precatórios pendentes corresponda a até 35% da sua receita corrente líquida; e 1,5% para os Municípios localizados nas regiões Sul e Sudeste, ou cujo estoque de precatórios pendentes supere os 35% da sua receita corrente líquida.
Dentre os recursos destinados ao pagamento dos precatórios, ao menos 50% devem ser utilizados para o pagamento de precatórios em ordem cronológica de apresentação, respeitadas as preferências relativas aos créditos de natureza alimentícia e aos créditos cujos titulares sejam idosos ou portadores de doença grave (esta última uma novidade introduzida pela EC no 62/2009, talvez com o intuito de minimizar o impacto negativo das demais alterações).
Quanto ao restante dos recursos, cada ente poderá optar por efetuar o pagamento dos precatórios, isolado ou simultaneamente, (i) por meio de leilão, em que sairá vencedor o credor que aceitar receber o precatório com maior percentual de deságio, (ii) à vista, observando ordem única e crescente de valor por precatório, (iii) ou por acordo direto com os credores, na forma a ser estabelecida por lei própria de cada entidade devedora, que poderá prever a criação e a forma de funcionamento de câmaras de conciliação.
Após a exposição das principais mudanças inseridas pela EC 62/2009, cabe destacar agora, as principais críticas sobre ela.
O primeiro aspecto a ser destacado reside em que as alterações contempladas na EC n°62/2009 desnaturam a configuração do Brasil como um Estado (Democrático) de Direito. Isso porque, numa sequência lógica, Estado Democrático de Direito supõe a submissão do aparato estatal à ordem jurídica, essa submissão implica dizer que as condutas do Estado devem ser orientadas pelo Direito. Essa orientação gera a responsabilização civil do Estado, pois os organismos e os agentes estatais, ao subordinarem-se ao direito, respondem pelos próprios atos e pelos feitos nocivos eventualmente deles derivados.
Nesse cenário, a responsabilização civil do Estado e a submissão dele ao controle jurisdicional, traduzem-se em direitos fundamentais, quais sejam do direito à ação e do direito à jurisdição. Importante destacar que necessária é a existência de medidas destinadas a assegurar a supremacia jurisdicional e a adoção de providências concretas de execução das decisões daí derivadas, ou seja, que as decisões jurisdicionais tenham eficácia.
Essas ponderações acima conduzem à inevitável conclusão de que a EC n°62, além de produzir a desnaturação do Estado de Direito consagrado constitucionalmente, eliminou o efeito jurisdicional vinculante, suprimiu a eficácia jurisdicional, excluiu a separação dos poderes, restringiu a responsabilização civil da Fazenda Pública, consagrou a impunidade e o incentivo ao arbítrio e eliminou direitos fundamentais.
Desse modo, diversas entidades tais como OAB, Anamages (Associação Nacional dos magistrados Estaduais), AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público), ANSJ (Associação Nacional dos Servidores do Poder Judiciário), CNSP (Confederação Nacional dos Servidores Públicos), ANTP (Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho), entre outras, impetraram ADIs face à EC n° 62/2009 pedindo ao Supremo que declare a inconstitucionalidade dos parágrafos 2°, 9°, 10° e 12 do artigo 100 da Constituição Federal, e os parágrafos 1°, 2°, 6°, 7°, 8°, 9° e 16 do artigo 97 do ADCT.
No bojo dessas ADIs são alegados quase que unanimemente pelas entidades acima referidas, que as mudanças trazidas pela referida EC n°62, além de ofender o Regimento Interno do Senado por não respeitar o intervalo de cinco dias entre os dois turnos de votação, violaram o devido processo legislativo (art. 5°, LIV, e art. 60 §2° CF/88) e a dignidade da pessoa humana (art. 1°, inciso III, CF/88), e feriram os princípios da separação dos poderes (art. 2° CF/88), da imutabilidade da coisa julgada (art. 5° CF/88), da duração razoável do processo (art. 5°, inciso LXXVIII, CF/88), da igualdade (art. 5°, caput, CF/88), da isonomia, da liberdade (art. 5°, caput, CF/88), da propriedade (art. 5°, inciso XXII, CF/88), da moralidade e da impessoalidade (art. 37, caput, CF/88), entre outros tantos, constituindo assim, verdadeira fraude à Constituição Federal.
Dessa forma, comprova-se que a técnica do precatório deve ser mantida em nosso ordenamento jurídico, posto que serve para atender a preceitos constitucionais, os quais garantem o estabelecimento de um verdadeiro e real Estado Democrático de Direito, o que só é possível alcançar, quando o próprio Estado se submete ao império da lei. Além disso, ele deve ser mantido também para não permitir que ao Poder Judiciário seja atribuída a autoridade de submeter os bens públicos à constrição judicial, garantindo, desta forma, o princípio estampado no art. 2° da CF/88, de que os três Poderes da União são independentes e harmônicos entre si. No entanto, não parece ser essa a finalidade da EC n°62/2009, brilhantemente denominada "PEC do calote".