Resumo do artigo:
Criados para as mais diversas causas de interesse coletivo, os endowments permitiram às entidades filantrópicas e educacionais edificar uma base financeira sólida, capaz de sustentar ou complementar suas atividades com recursos gerados a partir de seu próprio patrimônio. Dessa forma, tornaram-nas menos dependentes de novas doações e patrocínios, trouxeram maior estabilidade financeira e asseguraram a sua viabilidade operacional, permitindo que essas instituições se organizassem e crescessem a proporções que antes estavam fora de seu alcance. Existe espaço no Brasil para a criação de uma estrutura semelhante, apesar dos desafios que ainda precisam ser enfrentados.
Abstract:
Created to provide for various not-for-profit activities, endowment funds gave to philanthropic and educational institutions the ability to build solid financial basis, capable of supporting or complementing their activities with income generated by their own assets. By doing so, these funds made their parent institutions less dependent on immediate use donations and sponsors, bringing greater financial stability and guarantying minimum operation conditions, allowing them to grow to larger proportions. It is currently possible to create similar structures in Brazil, despite there being a few challenges yet to be overcome.
Palavras-chave:
Endowment, Brasil, sustentabilidade, doação, investimento
Key words:Endowment, Brazil, sustainability, giving, investment
Sumário:1 Introdução – 2 Endowment – 3 Origem e Definição – 4 Política de Investimento – 5 Regras de Resgate – 6 Endowments no Brasil – 7 Glossário
Introdução
A Importação de uma Estratégia de Sustentabilidade
Criados para as mais diversas causas de interesse coletivo, os endowments permitiram às entidades filantrópicas e educacionais edificar uma base financeira sólida, capaz de sustentar ou complementar suas atividades com recursos gerados a partir de seu próprio patrimônio. Dessa forma, tornaram-nas menos dependentes de novas doações e patrocínios, trouxeram maior estabilidade financeira e asseguraram a sua viabilidade operacional, permitindo que essas instituições se organizassem e crescessem a proporções que antes estavam fora de seu alcance. Existe espaço no Brasil para a criação de uma estrutura semelhante, apesar dos desafios que ainda precisam ser enfrentados.
Breve Conceito de Endowment
Consideramos importante, ao escrever um artigo que utiliza, já no título, uma palavra de origem estrangeira e de uso ainda não corrente em nosso território, iniciar por uma breve exposição do conceito, a fim de assegurar que todos os leitores partilhem do mesmo entendimento do termo, pelo menos durante a leitura e interpretação deste texto. Essa breve conceituação inicial, porém, não se pretende exaustiva.
Trataremos mais adiante, de maneira mais detida, da definição e das características essenciais dos endowments. Além disso, incluímos ao final deste artigo um glossário, a fim de fazer uma pequena contribuição à precisão terminológica neste tema, com o intuito de evitar ambigüidades no discurso e facilitar o debate sobre o assunto no futuro. É recomendável, àqueles que se aventuram no tema pela primeira vez, uma leitura prévia do glossário, o que ajudará a precisar o sentido com que alguns termos e expressões comuns foram utilizados ao longo do presente trabalho.
Em poucas palavras, os endowments são estruturas que recebem e administram bens e diretos, majoritariamente recursos financeiros, que são investidos com os objetivos de preservar o valor do capital principal na perpetuidade, inclusive contra perdas inflacionárias, e gerar resgates recorrentes e previsíveis para sustentar financeiramente um determinado propósito, uma causa ou uma entidade.
Apesar de seu conceito poder ser aplicado em benefício de qualquer causa ou entidade, os endowments mostraram-se particularmente eficientes no meio acadêmico, com destaque para os endowments das grandes universidades norte-americanas e européias, cujo volume de recursos financeiros por instituição muitas vezes supera os bilhões de dólares.
Além das universidades, alguns dos maiores endowments do mundo servem a causas sociais, sendo a principal forma de custeio das atividades de diversas fundações e associações sem fins lucrativos.
Antes de avaliar o cenário atual, convém entender de onde surgiram essas ferramentas de sustentabilidade financeira.
Endowment – Origem e Definição
Origem
Não se tem certeza sobre a sua origem exata, mas a figura dos endowments existe desde tempos imemoriais. Em seus primórdios não possuía, certamente, os aspectos jurídicos e financeiros organizados e regulamentados que hoje podemos observar em diversos países, mas o conceito por trás dessa estrutura remonta à época medieval.
Entre os exemplos mais antigos, encontramos a doação de terras agrícolas à Igreja. Essas doações eram consideradas extremamente generosas, uma vez que a propriedade imobiliária era a grande medida de riqueza na época feudal. E, para perenizar o sustento da instituição religiosa, as doações eram realizadas com cláusulas de inalienabilidade, que impediam a venda dos imóveis. A restrição, imposta pelos próprios doadores, resultava na criação de uma reserva patrimonial perene, em ativos reais inalienáveis, que gerava renda para a Igreja por meio da cobrança de aluguéis dos terrenos; da cobrança de impostos feudais, como a talha (parte da produção) e a banalidade (taxa pela utilização de benfeitorias como moinhos e fornos); e da participação na venda ou escambo das mercadorias ali produzidas.
Exemplos posteriores de aplicação da filosofia dos endowments ocorreram nas "guildas" de comércio ou corporações de ofício da Idade Média, que igualmente acumulavam riqueza não apenas como uma reserva para emergências, mas também para servir como fonte perene de sustento para suas causas de longo prazo. (RUSSELL, 2006, p. 1)
Já em tempos modernos, os exemplos mais freqüentes são o das instituições de ensino, principalmente as de ensino superior, americanas, européias e algumas orientais, e o das entidades filantrópicas.
Veremos, no presente artigo, como essa evolução, que levou os endowments de meras doações de terras a estruturas financeiras complexas, resultou também em um amadurecimento do pensamento acadêmico e profissional sobre alguns dos principais aspectos operacionais que os caracterizam, como as Políticas de Investimento e as Regras de Resgate.
Definição
Uma confusão conceitual comum, decorrente de uma simplificação freqüente, é a crença de que os endowments são fundos de investimento. Apesar das estreitas ligações entre os endowments e os fundos de investimento, as expressões não são sinônimas. Cada uma delas carrega significado próprio.
Fundos de investimento são instrumentos jurídicos por meio do qual diversos investidores se reúnem para aplicar recursos, assumindo um determinado nível de risco, que é por eles considerado tolerável, e esperando obter um determinado retorno financeiro. No Brasil, os fundos de investimento são regulados pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM, que os define da seguinte maneira: "fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituída sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros" .
Os endowments também são uma comunhão de recursos, de uma ou de várias entidades, que são aplicados em ativos financeiros, mas as semelhanças com os fundos de investimento terminam por aí. A grande diferença entre um fundo de investimento e um endowment reside na utilidade de cada estrutura. Os fundos de investimento, conforme mencionado acima, são instrumentos para investidores que buscam retorno financeiro. Já os endowments são instrumentos criados para perenizar a existência e a viabilidade financeira de uma instituição, atividade ou entidade de interesse coletivo. O patrimônio de um endowment é atrelado à sua causa, ao seu propósito, e é desse vínculo que decorrem todas as suas outras características essenciais.
A tradução literal mais aceita para o termo endowment é "dotação", o que remonta ao significado original do termo em inglês. Na origem, "to endow money", significava vincular o dinheiro a uma causa, criando um endowment, ou uma "dotação patrimonial". A dotação patrimonial era um conjunto de ativos atrelado permanentemente ao custeio de um beneficiário. Por sua natureza perene, as dotações patrimoniais passaram a compor "fundos", que ficaram conhecidos como "endowment funds" (no sentido atécnico e genérico da palavra – grupo de ativos, de recursos – o que inclui, mas não se restringe a fundos de investimento). Os "fundos de dotação" hoje são comumente chamados apenas de endowments, termo que, sozinho, passou a carregar o sentido completo daquilo que são atualmente. A tradução como "dotação patrimonial" é, na opinião do autor, insuficiente para carregar todo o significado do termo e, por isso, julgamos mais apropriado traduzir endowment como "Fundo Patrimonial".
Por fim, chegando à definição, o endowment ou Fundo Patrimonial é a parte do patrimônio de uma organização que é segregada do patrimônio operacional e de suas demais reservas (segregação meramente contábil-administrativa ou mesmo em uma personalidade jurídica distinta), com o objetivo de ser mantido na perpetuidade, de maneira que seu poder aquisitivo seja preservado ou expandido ao longo dos anos. O Fundo Patrimonial deve ser mantido investido com o intuito de gerar receita periódica e previsível para custear toda ou parte da missão da organização beneficiária.
O endowment pode ser criado pela própria instituição, mas geralmente é formado a partir de uma ou de várias doações, realizadas por doadores preocupados com a perenidade da entidade beneficiada. Não existe uma única forma jurídica possível para os endowments – o que os caracteriza é a sua estratégia de sustentabilidade.
Características Essenciais
No Reino Unido, os endowments são classificados em "Permanent Endowments", quando os seus administradores não possuem autorização para gastar qualquer parcela do Principal, "Expendable Endowments" onde esse gasto pode ocorrer, ainda que sujeito a restrições, e "Term Endowments" , quando a orientação é que o capital seja despendido em favor de determinada causa, por determinado período ou até que determinado objetivo seja alcançado. Evidentemente, no terceiro e último caso, o endowment não é criado com a pretensão de perdurar para sempre e, cumpridos seus objetivos, extingue-se.
Apesar de classificados como um tipo de endowment, os Term Endowments são muito menos freqüentes que as outras duas espécies. Isso ocorre porque a estrutura de um endowment, com toda a sua complexidade, geralmente se justifica pela necessidade de proteger e assegurar a viabilidade operacional dos beneficiários para sempre.
Para alcançar esse objetivo, a estratégia geral de um endowment é que o seu patrimônio deve ser preservado na perpetuidade, e investido para gerar retorno. Dessa estratégia decorrem as duas características mais marcantes da estrutura de um endowment, que são, sem dúvidas, sua Regra de Resgate e sua Política de Investimento.
A Regra de Resgate é a norma institucional que estabelece o ritmo de gastos permitido para o endowment. Em alguns casos, diversas regras são compiladas em uma Política de Resgates, podendo combinar cálculos objetivos com decisões discricionárias subjetivas, atribuídas a um indivíduo ou a um órgão colegiado. O ritmo de gastos estabelecido pela Regra de Resgate deve levar em consideração a expectativa de retorno de longo prazo dos investimentos, projeções de perda de poder aquisitivo por efeitos inflacionários, ritmo desejado de crescimento do endowment, entre outros fatores. Para o sucesso de um endowment em preservar-se e continuar capaz de proteger a causa a que se destina, é imprescindível que a Regra de Resgate esteja em perfeita harmonia com a Política de Investimento.
A existência de uma sólida Regra de Resgate é de absoluta importância para o correto funcionamento de qualquer endowment. É ela que proporciona o equilíbrio de oportunidades entre gerações e permite o acúmulo de esforços, ao longo dos anos, capaz de proporcionar o crescimento que transforma pequenos fundos em endowments robustos. Para ilustrar a importância dessa regra, transcrevemos um trecho do relatório do endowment da Yale University, referente ao ano letivo de 2007-2008:
"The spending rule is at the heart of fiscal discipline for an endowed institution. Spending policies define an institution’s compromise between the conflicting goals of providing substantial support for current operations and preserving purchasing power of Endowment assets."
Conforme apontado no trecho acima, a Regra de Resgate – ou o conjunto de regras agrupado sob uma Política de Resgates – é o coração da disciplina financeira que compõe a estratégia dos endowments. É ela que lida com a tensão existente entre a necessidade de atender todas as demandas presentes dos beneficiários e a importância de preservar o Principal, para que a instituição possa continuar provendo para as mesmas finalidades nos anos e décadas que ainda virão.
A Política de Investimento, por sua vez, apresenta peculiaridades que distinguem os endowments de outros fundos e reservas de investidores institucionais ou individuais. Isso ocorre por dois principais motivos. Primeiro, porque os endowments possuem um horizonte de investimento raramente encontrado em outras estruturas: a perpetuidade. Segundo, porque as Regras de Resgates dão aos endowments outra característica que impacta diretamente a Política de Investimento: sua necessidade de liquidez é baixa e previsível.
As duas informações mais importantes que um gestor profissional de recursos precisa saber sobre seu cliente para pautar a criação de uma estratégia de investimento são o horizonte, ou seja, o prazo previsto para permanência dos recursos, e a necessidade de liquidez. A estratégia de investimento ideal para um cliente que, por natureza, manterá os recursos investidos para sempre e terá necessidade de resgatar no máximo um pequeno percentual do patrimônio a cada ano será muito diferente da estratégia de investimento de qualquer cliente individual.
Por isso, a existência da Regra de Resgates, estabelecendo parâmetros para a necessidade de liquidez, permite o surgimento de uma Política de Investimento típica e quase exclusiva dos endowments, em sua busca pela perenidade.
Discutiremos mais aprofundadamente a Política de Investimento e as Regras de Resgate adiante, mas antes há outra característica essencial dos endowments a ser apresentada. Essa terceira característica, que também decorre das Regras de Resgate, é um aspecto operacional relevante para entender a dinâmica dos recursos dentro da estrutura. Os ativos que compõem o Fundo Patrimonial de um endowment simples, ainda que sejam bens fungíveis, estarão permanentemente sujeitos a uma divisão ideal entre Principal e Parcela Livre.
Essa última, que pode ser calculada de diversas maneiras, corresponde à parcela do patrimônio que pode ser resgatada imediatamente do Fundo Patrimonial para as contas operacionais da entidade, para que seja gasta ou consumida com o custeio das atividades beneficiadas pelo endowment. Seu objetivo é atender às demandas do presente, o que é concretizado quando essa Parcela Livre é resgatada e passa a compor o orçamento operacional da entidade ou das entidades para cujo proveito o endowment foi constituído.
Já a outra subdivisão do patrimônio, comumente chamada de Principal, é o núcleo permanente, do qual se origina e se renova a Parcela Livre. Por vezes equivale somente ao montante inicial, que deu origem ao endowment, ou ao seu valor corrigido por um índice que elida os efeitos inflacionários. Na maior parte das vezes, contudo, um endowment eficientemente administrado atrai para si novas contribuições, que se agregam ao valor preexistente, integram o Principal e aumentam a sua capacidade de gerar frutos para as causas que financia. O papel do Principal é existir na perpetuidade, para continuar gerando Resgates Livres e, assim, atender às demandas do futuro.
Em todo endowment, existe um conjunto de normas que determinam como os recursos podem ser transferidos do Principal para a Parcela Livre e, às vezes, de volta para o Principal. A regra responsável por gerar novos recursos a partir do Principal e transferi-los para a Parcela Livre é a Regra de Resgate.
A seguir, discorreremos um pouco sobre a evolução e as práticas correntes dos endowments no que diz respeito às Regras de Resgate e às Políticas de Investimento, que são considerados os aspectos mais marcantes do funcionamento dos Fundos Patrimoniais. A segregação desses dois assuntos em capítulos distintos é resultado de um esforço meramente didático, a fim de tratar um assunto de cada vez. Essa separação, contudo, não poderia ser absoluta, e os assuntos às vezes voltam a se entrelaçar no decorrer do artigo, mesmo nos capítulos exclusivos de cada um.
Os dois temas estão tão invariavelmente interconectados que é impossível tratar de um ignorando o outro. Assim deve ser também na criação e nos eventuais ajustes das normas internas de qualquer endowment. As Regras de Resgate e as Políticas de Investimento precisam ser extremamente congruentes entre si, bem como alinhadas com os objetivos sociais do endowment e a missão da entidade beneficiária.
Política de Investimento
Um endowment é um Fundo Patrimonial que recebe recursos e gera o retorno que deverá dar suporte financeiro vitalício a determinada causa, atividade ou organização. Cada endowment é único quando considerado o conjunto de suas necessidades e disponibilidades financeiras, o que nos leva a concluir que cada endowment deve ter sua estratégia de investimento própria.
Ainda assim, algumas linhas gerais podem ser traçadas, agrupando-os em grandes conjuntos, em razão de suas semelhanças. Entidades semelhantes, com semelhantes metas financeiras de longo prazo e semelhantes níveis de tolerância a risco podem, portanto, compartilhar de uma Política de Investimento unificada, voltada para o cumprimento daquelas metas.
Algumas organizações com endowments têm em seus Fundos Patrimoniais a única e exclusiva fonte de recursos para o cumprimento de suas missões. A maioria, contudo, possui outras fontes de renda, como doações, patrocínios, prestação de serviços, comercialização de produtos, taxas de adesão, mensalidades, etc. Nesses casos, o endowment pode ser um complemento para cobrir os custos operacionais, ou pode ser destinado a financiar projetos e outras atividades específicas dentro da organização. A destinação que é dada ou que se pretende dar aos recursos do endowment é um importante fator a ser considerado quando da determinação da Política de Investimento, pois essa destinação determinará quais são os fluxos financeiros necessários entre o endowment e a instituição.
Evolução do Pensamento sobre Investimento para Endowments
De acordo com Chris Russell (2006, p. 79), os primeiros endowments no Reino Unido foram criados pela doação de terras, e não dinheiro, e por isso as atividades de investimento dos endowments se resumiam a cobrar aluguéis ou outras taxas pelo uso da terra. A partir dos endowments de terrenos, surgiu e consolidou-se a tradição de gastar somente o rendimento gerado, que eram recursos financeiros líquidos, e nunca o capital principal – os próprios imóveis, que deveriam ser preservados para eternizar o propósito do fundo. Outras formas de investimento mais sofisticadas tinham nenhuma ou quase nenhuma participação dentre os ativos dos endowments, e só passaram a compor uma parte significativa desses fundos a partir do século XX.
Esse cenário de endowments quase exclusivamente imobiliários era o mesmo na Europa e na América do Norte. Com o passar das décadas, a diversificação natural das carteiras levou à permissão para investir em títulos, mas uma restrição permanecia. Endowments eram proibidos de alienar os seus ativos principais, e deveriam destinar aos beneficiários apenas o seu rendimento, que era considerado renovável.
A conseqüência lógica desse tipo de restrição foi que, ao migrar parte de seu patrimônio de propriedade imobiliária para títulos financeiros, os endowments eram obrigados a adquirir somente títulos de renda fixa, devido à característica desses títulos de gerar um rendimento recorrente e previsível, necessário à viabilidade operacional dos beneficiários do Fundo Patrimonial.
Esse modelo vigorou durante muito tempo, e apresentou pouca evolução. Com o avanço do pensamento financeiro, passou-se a descontar da rentabilidade as taxas de inflação, de modo a preservar o poder de compra do Principal.
A restrição à renda fixa só começou a ser fortemente desafiada na década de 1920, notadamente pelo economista John Maynard Keynes, que foi extremamente bem-sucedido em seus investimentos pessoais e, do mesmo modo, à frente das decisões de investimento do King’s College, em Cambridge, e do Eton College, em Windsor.
Durante o seu trabalho no King’s College, entre 1920 e 1945 aproximadamente, o fundo sob a gestão de Keynes que possuía menos restrições estatutárias, o Chest Fund, experimentou o impressionante aumento patrimonial de 11 vezes o seu tamanho original. No mesmo período, o London Industrial Share Index subiu 60% e o índice americano Standard & Poor’s subiu 90% (Russell, 2006, p. 7).
Keynes não acreditava em uma diversificação excessiva da carteira. Preferia concentrar seus investimentos em alguns poucos ativos que ele conhecia e estudava detidamente, ao invés de alocar recursos em vários ativos que não acompanhava tão de perto. Sua filosofia de investimento envolvia três princípios basilares: (i) selecionar cuidadosamente poucos investimentos, baseado no preço praticado e no valor potencial intrínseco dos ativos; (ii) criar e segurar posições relativamente grandes nesses ativos, até que cumprissem sua promessa de valorização ou evidenciassem um erro de julgamento; e (iii) mitigar o risco da carteira pela compra de riscos diferentes, se possível opostos.
A inserção, cada vez mais expressiva, de ativos de renda variável na carteira de endowments trouxe à baila um novo problema. Os administradores responsáveis pelos Fundos Patrimoniais precisavam determinar a forma mais adequada de equilibrar a proporção entre renda fixa e renda variável, dentro da Política de Investimento dos endowments, para assegurar o cumprimento de seus objetivos. A volatilidade dos mercados levava à necessidade de constante revisão, o que gerava incertezas e excessiva flexibilidade, sujeitando o Fundo Patrimonial a maior subjetividade e arbitrariedade.
Ainda na década de 1930, a Universidade de Yale se debruçou sobre essa dificuldade decorrente do novo cenário e pensou ter encontrado a resposta. O "Yale Plan", como ficou conhecido, consistiu no pré-estabelecimento de uma alocação referencial de longo prazo. Isso significava que a Política de Investimento já determinava qual percentual do Fundo Patrimonial deveria estar alocado em redá fixa e qual percentual deveria ficar em renda variável.
As flutuações de preço, principalmente na renda variável, desequilibravam a alocação inicial e, de tempos em tempos, a universidade redistribuía os recursos, retornando aos percentuais referenciais de alocação.
Se os mercados provocassem uma valorização da carteira de renda variável acima de determinado nível, o endowment de Yale vendia esses ativos e adquiria títulos de renda fixa, reequilibrando a carteira. Se os ativos de renda variável se desvalorizassem abaixo de determinado preço, o procedimento inverso era executado.
O método funcionou bem durante um tempo, enquanto os mercados oscilaram em torno de um nível médio, provocando o efeito positivo esperado: Yale vendia ações quando o mercado estava em alta e recomprava suas posições em renda variável quando o mercado estava em baixa.
Essa estratégia, contudo, se mostrou ineficaz durante as décadas de 1940 e 1950, ao longo das quais Yale foi reiteradamente forçada a se desfazer de posições em ações conforme o mercado subia, e adquirir posições em renda fixa, que cada vez mais perdiam valor real e, portanto, perdiam capacidade de gerar resgates.
As respostas que os endowments buscavam para seus novos problemas viriam ao longo da década de 1960. A Ford Foundation, criada em janeiro de 1936, desempenhou um papel importante no desenvolvimento de uma solução.
Em 1962, 1968 e 1969, a Ford Foundation publicou relatórios propondo grandes mudanças de estratégia, que forçaram os administradores de endowments a repensar seu funcionamento. O terceiro relatório, intitulado Managing Educational Endowments, defendia que a Política de Investimento e as Regras de Resgate dos endowments deveriam ser pautados no retorno absoluto da carteira, e não apenas nos rendimentos. Na concepção tradicional, era considerado rendimento apenas o valor gerado que não decorresse da venda de ativos. Assim, tínhamos a divisão objetiva entre o ativo e o rendimento. Na tabela abaixo, é possível enxergar, com exemplos, a nítida distinção entre o ativo (que deveria ser preservado) e o rendimento (que poderia ser gasto).
Ativo |
Rendimento |
Imóveis |
Aluguel, Talha |
Títulos de Renda Fixa |
Juros (descontada a inflação) |
Ações |
Dividendos |
O que a Ford Foundation defendia é que o cálculo da Parcela Livre deveria levar em consideração não apenas os rendimentos, mas também a valorização dos ativos em si. Isso é o que chamavam de retorno absoluto ou retorno total da carteira. Assim, se um imóvel gerasse 8% do seu valor em aluguel e, no mesmo período, seu valor de mercado aumentasse em 6%, o Retorno Absoluto desse imóvel na carteira do endowment deveria ser contabilizado como 14%, e não apenas 8%.
As estratégias criadas em torno do retorno absoluto revolucionariam a forma como os endowments funcionavam, e ajudariam a moldar as políticas de investimento e resgate até hoje utilizadas.
As publicações da Ford Foundation e o surgimento, naquela época, do Common Fund for Non-Profit Organizations influenciaram a criação de uma nova lei nos Estados Unidos, que ficou conhecida como The Uniform Management of Institutional Funds Act (UMIFA, 1972). A lei, que foi recepcionada na maioria dos estados, oficializou o uso das estratégias baseadas no retorno absoluto e autorizou os endowments a transferirem periodicamente para a Parcela Livre uma "fração razoável" do seu patrimônio, com base na expectativa de retorno absoluto do Fundo Patrimonial. Na prática, o UMIFA aposentou a tradição anteriormente consolidada, de gastar somente os aluguéis, dividendos e juros, sem nunca alienar ativos do endowment. Surgia então a definição atual de Principal e Parcela Livre, que hoje são calculadas e expressas na forma de percentuais do patrimônio total. A UMIFA foi modificada em 1994 pela Uniform Prudent Investor Act (UPIA, 1994) e, mais recentemente, uma atualização legislativa levou à consolidação de antigas e novas diretrizes na Uniform Prudent Management of Institutional Funds Act (UPMIFA, 2006).
Essas mudanças liberaram os gestores da obrigatoriedade de manter grandes posições em renda fixa e de preferir ações que pagassem dividendos com regularidade. Mesmo sem pagar dividendos, algumas ações podem ser alternativas interessantes devido ao seu potencial de valorização. Essas ações passaram a ser adquiridas, já que os endowments não mais dependiam dos dividendos para pagar os Resgates Livres. Tornou-se aceitável vender uma pequena parte das ações, títulos e imóveis, gerando caixa para fazer frente às despesas dos beneficiários. Os investimentos migraram fortemente da renda fixa para a variável, atraídos pelo desempenho dessa classe de ativos, historicamente superior aos títulos de dívida remunerados por juros.
Infelizmente, a UMIFA e os relatórios da Ford Foundation que encorajavam os endowments a ser mais agressivos e criativos foram publicados numa época em que um longo período de ascensão do mercado chegava ao fim. Os endowments da própria Ford Foundation, assim como os das escolas que seguiram seus conselhos, viram seu patrimônio e suas retiradas anuais caírem para cerca da metade do valor original entre 1972 e 1974. A recuperação, contudo, veio sem demora e a maioria dos fundos havia se recuperado antes do final de 1975.
A década de 1970 registrou as piores rentabilidades do século XX para ações e títulos de renda fixa nos Estados Unidos e as contribuições dos endowments para as despesas operacionais encolheram. No longo prazo, contudo, as recomendações da Ford Foundation sobre Políticas de Investimento e Regras de Resgate fundamentadas no retorno absoluto foram validadas e os resultados ajudaram a produzir mudanças estruturais na forma como todos os endowments são administrados atualmente.
Esculpindo as Políticas de Investimento
O padrão de gastos da entidade é um importante fator a ser considerado na hora de determinar a Política de Investimento e das Regras de Resgate. Não só o padrão presente, mas também o padrão projetado para o futuro, principalmente dos gastos que deverão ser suportados pelo endowment.
A identificação desses padrões permitirá avaliar o grau de flexibilidade que o endowment possui para suportar períodos de oscilação negativa dos mercados. Um endowment destinado a manter uma orquestra, por exemplo, precisa ser capaz de proporcionar um fluxo constante de recursos para pagamento dos salários dos músicos. A orquestra não pode diminuir o número de músicos ou abrir mão de seus oboés para adequar-se a um ano de arrocho financeiro, pois esses cortes representariam um grande prejuízo estrutural para o todo, de difícil reversão no ano seguinte.
Já uma entidade que use a Parcela Livre do endowment para outorgar bolsas de ensino poderá com maior facilidade aumentar ou diminuir o número de alunos agraciados a cada ano, de acordo com as suas possibilidades financeiras. É claro que o pagamento de bolsas de ensino, pesquisa ou intercâmbio pressupõe uma regularidade, pois os agraciados geralmente dependem desses recursos, ao longo de um ou mais anos. Porém, se a instituição enfrenta um ou dois anos de mercados difíceis e se vê obrigada a reduzir o Resgate Livre do seu endowment, poderá reduzir o número de novas bolsas outorgadas, temporariamente. Por isso, o endowment dessa instituição poderá tolerar maiores níveis de exposição a risco, em busca de melhor rentabilidade, pois o impacto negativo potencialmente causado por oscilações negativas é menor e menos duradouro do que aquele que seria causado no exemplo da orquestra.
Para ilustrar melhor a diversidade de objetivos e como esses objetivos impactam a Política de Investimento, podemos investigar ainda um terceiro exemplo. Consideremos o endowment de um museu, destinado não à manutenção da estrutura, mas sim à aquisição de novas obras de arte para o acervo. Esse Fundo Patrimonial pode ser orientado a buscar as melhores oportunidades, com alta tolerância ao risco, pois a existência do museu e a manutenção de suas boas condições não dependem do endowment. Se a compra de algumas obras de arte for adiada em alguns meses ou até poucos anos por conta de um período de resultados fracos nos investimentos, o prejuízo causado ao museu será pequeno. E os ganhos potenciais que o investimento pode obter em períodos de alta podem trazer ao museu possibilidades muito maiores do que as disponíveis atualmente.
Por outro lado, a estratégia de investimento seria radicalmente diferente, por exemplo, se o museu determinasse que pretende utilizar o endowment para comprar obras raras. Se a administração do museu entende que já possui recursos suficientes no Fundo Patrimonial para custear um ritmo saudável dessas novas aquisições, e se as oportunidades de compra de tais obras surgem em raros momentos e perduram por pouco tempo, o museu não pode correr o risco de estar com baixa liquidez em seu endowment quando uma boa oportunidade surgir. Nesse caso, seria necessário ter uma carteira mais conservadora, menos sujeita a altos e baixos, sempre pronta para custar a compra das obras sem necessidade de alienar ativos ilíquidos a preços desvantajosos.
Todos esses exemplos, extraídos da obra de Chris Russell (2006, p. 67), ajudam a mostrar o quanto a Política de Investimento está atrelada ao funcionamento operacional da entidade beneficiada e, por isso, às Regras de Resgate do endowment. Esses dois conjuntos de regras – de investimento e resgate – precisam ser criados e aperfeiçoados sempre em conjunto. Nenhum deles pode perder o outro de vista.