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O desvio social na rede mundial de computadores.

Aspectos sociológicos e psicológicos dos indivíduos pertencentes às subculturas criminais da internet

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Resumo:


  • O artigo investiga por que certos crimes são mais comuns online do que offline e quem são as pessoas mais propensas a esses desvios na internet, considerando a adaptação da teoria do desvio das subculturas criminais e o estudo do psicanalista John Suler sobre o "efeito desibinitivo online".

  • Os dados apontam que os crimes virtuais são frequentemente cometidos por indivíduos das classes médias e altas, jovens e sem histórico de crimes no mundo físico, sugerindo a existência de uma subcultura criminal online com normas e valores próprios.

  • John Suler identifica fatores como anonimato, invisibilidade e assincronismo que contribuem para o "efeito desibinitivo online", onde as pessoas podem se comportar de maneira mais extrovertida ou desviante, criando uma dissociação entre o comportamento online e offline.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. O comportamento no ciberespaço e a concepção do cibercriminoso

A ausência de identificação no mundo virtual permite às pessoas falarem sobre fantasias, desejos e angústias mais abertamente. Ele parece propiciar um ambiente mais seguro para a exposição de si, isento de constrangimentos e sanções sociais devido às características do contexto 34. Alguns autores sugerem ainda que a rede estaria permitindo uma expressão do verdadeiro ego 35.

Usuários costumam descrever que o computador é uma extensão da sua mente e personalidade – um espaço que reflete seus gostos, atitudes e interesses. Em termos psicanalíticos, os computadores podem se tornar uma espécie de espaço de extensão do mundo individual intrafísico 36.

Esse fenômeno é estudado pelo psicanalista John Suler 37, e é chamado de "efeito desinibitivo online". Em seu artigo que trata sobre o tema, o autor nos apresenta seis fatores que interagem e dão origem a esse efeito. São estes: anonimato dissociativo, invisibilidade, assincronismo, introjeção solipsista, imaginação dissociativa e minimalização da autoridade.

4.1. Anonimato dissociativo 38

No ambiente virtual, dificilmente é possível desvendar a identidade de quem está na rede. Apesar de existirem meios para isso, não é tarefa árdua manter a identidade escondida.

Quando as pessoas possuem a oportunidade de separar suas ações do seu real mundo e identidade, elas se sentem menos vulneráveis para se abrir. Qualquer coisa que digam ou façam não será a elas vinculada para o resto de suas vidas. Elas não terão que arcar com as consequências do seu comportamento, reconhecendo que aquilo tudo é fruto do que eles realmente são. Ao agir de maneira hostil, não é preciso arcar com as consequências dos seus atos.

Existem ainda pessoas que se convencem que tais comportamentos não são seus de verdade. O eu online torna-se então, um eu compartimentado. Em psicologia, isso é chamado de "dissociação".

4.2. Invisibilidade 39

Em vários ambientes online, as pessoas não podem se ver. Quando acessam web sites, quadro de mensagens ou até salas de bate-papo, outras pessoas muitas vezes nem mesmo sabem da presença de outras – com a possível exceção de moderadores (web masters) ou outros usuários que têm acesso a algumas ferramentas do software que podem identificar o tráfego dentro do site. A invisibilidade dá às pessoas a coragem de ir a lugares e fazer coisas que de outra maneira não fariam.

A invisibilidade difere do anonimato. O anonimato é a dissimulação da identidade, enquanto a invisibilidade permite que os outros não possam se ver ou se escutar. Mesmo que todos possam ter suas identidades expostas, a oportunidade de estar fisicamente invisível amplia o efeito desinibitivo. Ninguém precisa se preocupar em relação à sua imagem física ou como soa o que falam quando digitam alguma mensagem.

Não poder perceber de fato semblantes, sinais de desaprovação ou indiferença quebra a limitação que algumas pessoas têm ao se expressar. Na psicanálise, por exemplo, o analista senta atrás do paciente, sem revelar qualquer linguagem corporal ou expressão facial, assim, o paciente fica livre para discorrer sobre o que quiser, sem sentir-se inibido em relação a como o analista poderá reagir. Nas relações do dia a dia, pessoas às vezes evitam os olhos do outro enquanto falam sobre algo pessoal ou emocional, pois é mais fácil. A comunicação por texto oferece a oportunidade de evitar os olhos do outro.

4.3. Assincronia 40

Em alguns casos, como por e-mail ou em quadros de mensagem, não existe sincronia na comunicação. As pessoas não interagem com as outras em tempo real. Os outros podem levar minutos, horas, dias ou até meses para responder.

Com a imediata réplica ao falado, alguns comportamentos tendem a ter um efeito muito forte no fluxo da conversa em relação a quanto as pessoas revelam sobre si mesmas. Algumas pessoas podem ter a experiência de estarem fugindo após postar alguma mensagem que é pessoal, emocional ou hostil. Elas se sentem seguras achando que aquilo está "lá fora" onde eles podem deixar para trás.

4.4. Introjeção solipsista 41

A combinação da ausência das sugestividades de um contato cara a cara com a comunicação meramente textual pode ter um efeito interessante nos internautas. Algumas vezes elas sentem como que sua mente fosse fundida com a mente do companheiro virtual. Ler a mensagem de outra pessoa pode ser experimentada como uma voz dentro da cabeça do próprio indivíduo, como se a presença e a influência do outro fosse inserida ou "introjetada" dentro da sua psique.

Obviamente, o indivíduo não pode saber como realmente a voz do outro internauta soa, então dentro da cabeça dele a voz é atribuída a este. Na verdade, conscientemente ou inconscientemente, um indivíduo pode até atribuir uma imagem visual de como ele pensa que aquela outra pessoa aparenta ser ou como ela deve se comportar. O companheiro virtual agora se torna um personagem dentro do seu mundo intrapsíquico, um personagem que é tratado parcialmente da forma como ele se apresenta via comunicação textual, mas também por um sistema representacional interno baseado em suas expectativas, desejos e necessidades. Pelo fato dessas pessoas até nos recordarem de outras já conhecidas, a imagem desse personagem é preenchida pela memória dessas outras que já conhecemos..

Enquanto o personagem introjetado vai se tornando mais elaborado e subjetivamente "real", o internauta pode começar a considerar a conversa digitada, talvez sem estar plenamente consciente disso, como se ela estivesse ocorrendo dentro de sua cabeça. Ele a insere dentro do seu mundo imaginário, intrapsíquico - não diferentemente do que os autores fazem ao escrever uma peça ou romance. Isso pode até mesmo acontecer no "mundo real", onde as pessoas fantasiam sobre as suas relações pessoais no dia a dia. Em sua imaginação, que é segura, as pessoas se sentem livres para dizer ou fazer coisas que não fariam na realidade. Nesse momento, a realidade é a imaginação do indivíduo. O texto virtual pode transformar-se em uma tapeçaria psicológica, em que a mente da pessoa tece estes papéis fantasiosos, usualmente de maneira inconsciente e com considerável desinibição.

Enquanto lê a mensagem do outro internauta, é também possível "ouvir" a voz do companheiro virtual usando a própria voz do indivíduo. Pessoas podem "subvocalizar" enquanto leem, desse modo projetando o som de sua própria voz na mensagem do outro. Essa conversa pode ser experienciada inconscientemente como se a pessoa tivesse falando com/para ela mesma. Falando consigo mesmo, o indivíduo se sente à vontade para dizer todos os tipos de coisa que não diria normalmente.

4.5. Imaginação Dissociativa 42

Se combinarmos a introjeção solipsista com a escapabilidade do ciberespaço, obteremos uma força ligeiramente diferente que amplia a desinibição. As pessoas podem sentir que os personagens imaginários que eles mesmos "criaram" existem num espaço diferente, onde todos vivem em um mundo de sonho, separado das demandas e responsabilidades do mundo real. Eles separam ou "dissociam" a ficção online do fato offline. John Suler cita a escritora e advogada criminal Emily Finch, que mostrou que algumas pessoas veem sua vida virtual como um tipo de jogo sem regras e normas que não são aplicáveis ao cotidiano. Uma vez que desligam o computador e retornam para seu cotidiano, eles acreditam que podem deixar aquele jogo e a por algo que acontece num mundo paralelo que nada tem a ver com a realidade. É o que algumas podem pensar, talvez inconscientemente.

Embora o anonimato tenda a ampliar a imaginação dissociativa, a imaginação dissociativa e o anonimato dissociativo usualmente diferem na complexidade do eu dissociado. Sob a influência do anonimato, a pessoa pode tentar ser invisível, ser uma não pessoa, resultando numa redução ou simplificação da identidade. Durante a imaginação dissociativa, o eu que é expressado, embora compartimentado, tende a ser mais elaborado.

4.6. Minimização da autoridade 43

Enquanto online o status social de uma pessoa no mundo cara a cara pode não ser sabido pelos outros e pode não ter tanto impacto quanto tem no mundo "real". Figuras de autoridade expressam seus status e poder pela roupa que vestem, pela linguagem corporal e como reagem perante certos obstáculos do seu ambiente. A ausência desses aspectos no ambiente textual do ciberespaço reduz o impacto da autoridade.

Mesmo se as pessoas sabem sobre o status e o poder da outra pessoa fora da rede, essa elevada posição pode ter pequena relevância na presença e influência online. Na maioria dos casos, todo mundo na internet tem o mesmo poder de voz. Todo mundo – sem impeditivos de status, riqueza, raça, gênero, etc – parte de um terreno de jogo justo. Embora o status do indivíduo no mundo exterior possa ter algum impacto no ciberespaço, o que determina a maior parte da sua influência no outro é a sua habilidade de comunicação (que inclui habilidades na escrita), sua persistência, a qualidade de suas ideias, e seu "knowhow" técnico.

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As pessoas são relutantes em dizer o que elas realmente pensam enquanto enfrentam uma figura de autoridade. Elas temem a desaprovação e a punição. Mas online, com a aparência de autoridade minimizada, as pessoas são mais dispostas a desabafar ou comportar-se mal.

O efeito desinibitivo não é o único fator que determina o quanto as pessoas podem se abrir no ciberespaço. A força dos sentimentos, necessidades e da forma de lidar com os acontecimentos afetam a suscetibilidade para a desinibição. O estilo da personalidade igualmente faz com que varie a tendência para a desinibição. Pessoas histriônicas tendem a ser muito abertas e emocionais. Pessoas compulsivas podem ficar mais contidas. O efeito da desinibição online irá interagir com essas personalidades variáveis, em alguns casos resultando num pequeno desvio em relação ao que a pessoa é normalmente, ou em alguns casos pode chegar a mudanças dramáticas.

O ciberespaço traz uma possibilidade de experimentação para as pessoas, que não precisam assumir responsabilidades por seus atos (e/ou palavras). Cada indivíduo pode assumir diferentes papéis sem se comprometer com nenhum. Por outro lado, a ausência de identificação possibilita a agressão verbal, norteada pela falta de ética e a mentira.

O que podemos concluir do estudo do americano John Suler 44, é que existe de fato uma dissociação do comportamento do mundo virtual e do mundo físico, o que resulta em formas de comportamento diferentes advindos de uma mesma pessoa. E a partir de então, dessas "novas personalidades" que brotam, brotam também um novo sistema de valores, que muitas vezes fogem dos valores construídos pela nossa sociedade "offline", sendo desviantes, e muitas vezes até, criminosos.

Diversos dos fenômenos apresentados por John Suler podem servir de fator desencadeador desses comportamentos. Identidades verdadeiras são difíceis de captar no mundo eletrônico e a reputação não carrega o mesmo peso da que tem nas interações face a face, já que a presença social também é diminuída online. Os usuários podem não se importar se ferem os outros usuários, porque eles têm pouco sentido que os outros são reais. Há pouca expectativa que seu mau comportamento tenha consequências negativas e ainda se eles vão interagir com essas pessoas no futuro.

Uma importante pesquisa realizada por Annie Daniel 45 parece comprovar essa questão do efeito dissociativo, que se evidencia através da percepção que alguns jovens têm do próprio comportamento e do comportamento de seus pares na Internet. Esse estudo foi realizado com 1144 estudantes – 26,6%, com 13 anos ou menos, 22,9% com 14 anos, 13,4% com 15 anos, 13,6% com 16 anos e 23,5% com 17 anos ou mais. Ao tratar sobre o comportamento desviante online, com o intuito de ofender, intimar e assustar outras pessoas, 79,6% dos adolescentes respondentes declararam que nunca apresentaram comportamento desviante na Internet, no entanto, em relação aos seus pares, 81,5% dos estudantes declararam que presenciam frequentemente ou muito frequentemente comportamentos desviantes desse gênero.

Podemos inferir através desses dados, o efeito dissociativo da Internet, percebendo a percepção distorcida dos adolescentes estudados em relação aos próprios atos. Há uma contradição quando conflitamos os dados que mostram que 79,6% dos estudantes se identificaram como indivíduos não-desviantes, enquanto 81,5% desses mesmos estudantes declaram a presença frequente ou muito frequente de comportamentos desviantes entre seus pares na rede mundial de computadores.

Esse aspecto da subcultura desviante na Internet é muito importante. Muitos dos indivíduos agressores do ciberespaço apresentam uma espécie de duplo comportamento, um online e outro offline. O mais interessante é que muitos dos indivíduos desviantes sequer parecem ter consciência dos próprios atos, não tendo noção do impacto que suas opiniões ou atitudes possam causar às vítimas.

O problema é que, embora os atos sejam realizados no mundo virtual, suas consequências refletem diretamente no mundo físico, causando sérios danos às vítimas e, em alguns casos, irreversíveis.


CONCLUSÃO

Este trabalho teve o objetivo de explicar por que os indivíduos são mais propensos a cometer certos crimes online do que offline. Para isso, procurou-se compreender e identificar que tipo de pessoa faz parte desse grupo e em qual contexto ela se insere.

Sendo assim, em suma, foi apontado o surgimento de uma nova subcultura criminal, que tem como território a rede mundial de computadores. Subcultura esta formada, sobretudo, por jovens das camadas mais altas, que não têm o histórico de cometerem crimes no mundo offline.

Para justificar o acontecimento desse fenômeno, e apontar a existência de uma subcultura desviante na Internet, foi fundamentado que os indivíduos no meio virtual estão acobertados por um novo conjunto normativo, diverso daquele construído no espaço físico. Este novo conjunto normativo inspira-se aparentemente de forma deturpada, no modelo de proteção norte-americano de liberdade expressão, em que prega a manifestação do pensamento a todo custo, aceitando as suas consequências negativas. Esse modelo, associado ao efeito desibinitivo online, apresentado por John Suler, que dentre outros fatores, apresenta uma espécie de compartimento do ego, em que o usuário da Internet se sente isento de responsabilidades por considerar o ciberespaço como uma espécie de mundo de fantasia, sem consequência na vida prática, terminando assim, por engendrar o que passou a ser chamado de subcultura criminal do mundo virtual.

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Sobre a autora
Mariana Barrêto Nóbrega de Lucena

Advogada e bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Aluna da pós-graduação em Ciências Criminais do Centro Universitário de João Pessoa/Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUCENA, Mariana Barrêto Nóbrega. O desvio social na rede mundial de computadores.: Aspectos sociológicos e psicológicos dos indivíduos pertencentes às subculturas criminais da internet. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3128, 24 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20921. Acesso em: 23 dez. 2024.

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