3. DIREITOS SOCIAIS, CONTROLE SOCIAL E MUDANÇA SOCIAL
A abordagem da desregulamentação e flexibilização da legislação do trabalho em um contexto de possibilidades para a recuperação da inspeção do trabalho sob controle social remete-nos às questões ligadas aos direitos sociais e mais recentemente aos mecanismos emergentes de controle social e mudança social que se difundem nas sociedades industriais em reação à desordem global. Aborda-se brevemente como esses conceitos tem sido estudados e sua conexão com esses movimentos. Em seguida, faz-se uma abordagem sobre a Auditoria, não apenas como uma técnica empregando um check list ou escores de sistemas para a qualidade, mas sob o ponto de vista do seu potencial político, utilizada no contexto da globalização, particularmente no âmbito de políticas públicas onde se insere a inspeção do trabalho.
DIREITOS SOCIAIS
A noção dos direitos sociais é contemporânea da Declaração dos Direitos Humanos e emerge como uma diretriz para a igualdade. Trata-se de uma categoria de direitos diversos nos quais se inclui, entre outros, principalmente, a amplitude das relações trabalhistas no campo e na cidade, a previdência social e uma renda condizente com uma vida digna. Tem o caráter concreto de normas jurídicas e pressupõem a outorga de prestações do Estado no sentido da equalização das situações sociais desiguais. Entretanto, sob a ordem globalizada, o Estado perdeu a sua função regulatória e intervencionista, deixando a mediação, a arbitragem e o equilíbrio dos conflitos sob a égide de instituições financeiras internacionais que passam a introduzir suas próprias redes normativas e assim descaracterizando a validade desses direitos. No dizer de POLIDO, "o Estado tornou-se absolutamente obsoleto diante de suas próprias tarefas". O ideal de igualdade, numa era de transição entre a regulação e a desregulamentação, é substituído por uma lógica econométrica, tornando inevitável para os direitos sociais, num primeiro momento, a flexibilização, e em seguida a sua perda definitiva. Os direitos sociais, despotencializados, saem de sua armadura legal e passam à uma progressiva erosão e relativização que vai se legitimando. O impasse, portanto, na questão dos direitos sociais, para Polido é, "como sair de um conflito em que esses mesmos direitos são os principais atores. Como destravar ... um impasse entre uma situação meramente legal e outra legítima?"
CONTROLE SOCIAL E MUDANÇA SOCIAL
As questões envolvendo controle e mudança social suscitam a referência a determinados conceitos sociológicos. Referimo-nos à ANOMIA (Durkheim) e ALIENAÇÃO (Marx) idéias que surgiram como críticas aos valores das modernas sociedades industriais, calcadas no mercantilismo e individualismo. Horton(20) descreve, na coletânea de FORACHI e MARTINS (199O) como esses conceitos criticam os estados de desordem social segundo as idéias da utopia do bem estar social em que "a desumanização estabeleceu-se e os conceitos foram transmutados em coisas". Horton escreve que na visão de Durkheim "a anomia se refere aos problemas de controle social em um sistema social. ... os valores estão ausentes ou em conflito, os fins não estão ajustados às oportunidades estruturais, ou, ao contrário, os indivíduos não estão adequadamente socializados às diretrizes culturais", ou seja, que "a anomia é um estado social de anarquia ou de ausência de normas" supondo-se que "o egoísmo, a competição insaciável e a ausência de sentido e de objetivos poderiam ser as reações prováveis daqueles que vivem em uma sociedade anômica". Conquanto utilizada em situações penais e médico-legais, o conceito de anomia vem ganhando consistência em contextos mais recentes, como, por exemplo, no debate sobre o controle social de sistemas e atividades econômicas.
Por outro lado, o conceito de alienação remete-nos a uma discussão sobre a própria natureza do poder e da legitimidade do controle social do que a adequação e normatização mediada pelo controle social. O autor assinala que "Marx estava interessado nos problemas de poder e de transformação" e Durkheim "na manutenção da ordem". Mais adiante: "A ótica crítica da noção de alienação reside nas condições sociais que tornam os indivíduos separados da sociedade, sendo que esta não é vista como uma entidade abstrata e independente dos indivíduos, mas como uma extensão deles através de sua atividade pessoal".
Esses conceitos vão se tornando relevantes à medida que desenvolvem-se discussões sobre os impasses éticos e morais suscitados pela nova ordem econômica global pontuada por um crescente e avassalador nível de desigualdade e que se expande sob a ausência de ética e valores (HIRSCH, F., 1979). A angústia social generaliza-se não só pela alienação e perda de identidade, mas sobretudo, pela anomia, pela ausência de normas e de instrumentos de regulação das relações sociais. RIFKIN (1995) sugere a necessidade de se mudar o eixo da ação política democrática. deslocando-a do poder político estatal, porque falido, para as corporações econômicas, afinal as verdadeiras instâncias globais do poder político.
Nas diferentes culturas e sob diversas formas, a sociedade tem expandido a definição de democracia através de consolidar de forma prática o direito de controlar as atividades das corporações transnacionais. Esta luta para a democratização da economia tem crescido na mesma medida em que as corporações transnacionais expandem o seu poder e mostram claramente que não podem ter credibilidade em promover empregos e proteger o meio ambiente. Há uma tendência de unificar as diversas táticas de pressão, principalmente através da Internet, informando ao público em geral e expondo essas empresas ao boicote de produtos e a pressões sobre seus acionistas(21).
A OIT preconiza que nos programas de treinamento da inspeção do trabalho seja reforçada a necessidade de que o público em geral tome conhecimento dos riscos, perigos e agravos a saúde a que eles estão expostos pela atividade industrial, inclusive com programas dentro das escolas.
Em alguns países, a imprensa faz questão de acompanhar a inspeção do trabalho e divulgar os resultados de suas atividades.
Portanto, expandem-se os movimentos para reabilitar o controle social da desordem mundial, operando no vácuo do esvaziamento estatal, materializada em organizações não governamentais, conselhos comunitários, a imprensa, algumas brechas legais que permitiram a ascensão de profissionais dos Ministérios Públicos e, principalmente, a própria Internet. Desenvolve-se um consenso social também transnacional de que há um superaquecimento ambiental e social no planeta à custa de uma organização econômica cuja astronômica desigualdade sinaliza para uma irreversível perda de coerência.
Além disso, o prestígio do Ministério do Trabalho junto à sociedade brasileira, por exemplo, ainda resiste a essa descaracterização, situando-se como uma das últimas reservas morais do Estado no cenário da globalização, desregulamentação e flexibilização da legislação trabalhista. Há um foco de resistência, organizado em torno de entidades sindicais de servidores públicos, que tem impedido, até agora, a total descaracterização da inspeção do trabalho. Um Estudo agregando informações dos trabalhadores e patrões, avaliando a política nacional de inspeção do trabalho, bem como a postura, a atuação e imagem dos inspetores, apontou para escores entre regular e bom (ROSSO, S., org., 1999). A OIT assinala ainda, em recente pesquisa envolvendo pequenas empresas européias, os seguintes resultados:
- 75% concorda que a legislação em segurança e saúde é necessária;
- 66% disse que existem muitas leis as quais são muito complicadas;
- 81% acredita que dá pra pagar o custo do cumprimento da legislação; e
- 75% pensa que a ação da inspeção do trabalho é razoável.
4. MODERNIZAÇÃO: A INSPEÇÃO DO TRABALHO NA GLOBALIZAÇÃO
AUDITORIA, CERTIFICAÇÃO E ACREDITAÇÃO
Ao estudar-se como a arena política do trabalho, aí incluída a inspeção do trabalho, vem se tornando uma instância artificial e despotencializada, verifica-se algumas possibilidades de sua reenergização, a partir de elementos embutidos na própria dinâmica da globalização e argumentando finalmente como essa repolitização poderia reabilitar a principal atribuição da inspeção do trabalho, que é a proteção do trabalhador.
Este projeto estrutura-se em dois focos: um, voltado para o trabalho formal, a partir da utilização de conceitos e modelos de Auditoria, Certificação e Acreditação públicas, de como essa estratégia tem sido utilizada, não apenas como uma técnica de trabalho, mas como um recurso estratégico para uma ionização de espaços políticos. E a outra, focalizando no trabalho informal, verificando como se insere a inspeção do trabalho em territórios multidisciplinares e interinstitucionais no contexto de uma arena política mais complexa e em construção.
Aborda-se em primeiro lugar a funcionalidade de algumas estratégias que já se consolidam em outros ambientes e que começam a se reproduzir no mundo do trabalho, as quais podem representar uma via factível para esta repolitização.
A principal delas é a que vem sendo intrumentalizada pelo capital para energizar a arena da competição e torná-la supostamente objeto de controle social. Essa mesma estratégia tem sido utilizada também nas organizações não governamentais para a politização da arena do meio ambiente e a sua idêntica submissão ao controle social. Estabelecendo uma conexão específica, esses espaços da competição e do meio ambiente conformam um sistema particular de ações e respostas bem articuladas.
Por exemplo, as Certificações de qualidade do ISO ou as Certificações para a proteção ambiental do Greenpeace(22) ganham legitimidade respectivamente no espaço da competição e no do Meio Ambiente, porque dependentes de uma dinâmica de acreditação e controle social, viabilizada pela exposição de seus atores, de seus métodos e intervenções ao julgamento público, suscetibilizando esses espaços a pressões sociais e políticas.
A Certificação pelo capital na competição implica em uma espécie de bandeira positiva, introduzindo um instrumento destinado a um upgrade no nível da acumulação e do lucro em escala global e alavancando um fenômeno que já se denominou de turbocapitalismo. E as ações na área do Meio Ambiente sinalizam uma bandeira negativa, de reação e alarme para a entropia socio-ambiental resultante dessa ordem turbocapitalista supersônica, consolidando mecanismos de reversão sob os rótulos de Educação Ambiental e Desenvolvimento Sustentável.(23)
Aparecem ainda outros desdobramentos políticos. A Certificação na competição evolui para uma aliança global(24), alavancando a competição e assim satisfazendo o inevitável upgrade do sistema capitalista. A Certificação ambiental(25) generaliza uma consciência dos limites do crescimento (HIRSCH, F., 1979), ocasionando respostas de acionistas das próprias empresas transnacionais e de estratos das sociedades industriais, exigindo-se critérios de segurança ambiental na exploração de recursos naturais e elaboração de produtos (SACHS, Y., 1993).
Para o mundo do trabalho, que ocupa uma espécie de interface na sociedade entre os espaços da competição e do meio ambiente, emerge também a possibilidade concreta de se dispararem mecanismos reversores da mesma qualidade. Esse mecanismo viabiliza-se com a institucionalização de uma Certificação para a Qualidade nos Ambientes do Trabalho, emitida por uma Auditoria Fiscal do Trabalho delegada pelo Estado.
Com a Certificação estatal para a qualidade nos ambientes de trabalho, produzem-se bandeiras positivas e negativas as quais supostamente gerariam mecanismos de reversão similares aos da competição e do meio ambiente, particularmente para reverter os agravos impostos aos trabalhadores pelo atual sistema de relações de trabalho e de riscos nos ambientes de trabalho. Com a visibilidade e controle social que é inerente ao processo de Certificação, energiza-se um potencial de conflitos e subsequentes ações para repolitizar a arena do trabalho, sobretudo a partir da própria sociedade. Parte-se do pressuposto de que tal Certificação teria o mesmo conteúdo político que a certificação positiva de produtos tem causado no espaço da competição e no mercado consumidor ou com a mesma qualidade que as Certificações ambientais tem causado no comportamento de acionistas de empresas transnacionais e na própria sociedade.
Se para o turbocapitalismo o seu limite parece ser consensualmente o Meio Ambiente, por que não incluir o fator humano, inerente às condições e meio ambiente de trabalho, sob essa mesma dimensão qualitativa?
Consolidando-se essa tendência abrem-se possibilidades concretas de um rebatimento do ônus conseqüente à globalização, desregulamentação e flexibilização das normas do trabalho e precarização de indicadores sociais sobre todos os atores da arena política do trabalho, principalmente sobre o capital, e não apenas sobre o trabalhador, como vem acontecendo. Além disso, o espaço político desencadeado por uma Certificação de Ambientes de Trabalho seria também ocupado por forças sociais que transcenderiam o espaço tripartite tradicional.
Sob tal cenário, introduzem-se diferenças de potenciais para os diversos atores sociais da arena do trabalho, o que em última análise constitui a própria essência da dialética no mundo do trabalho e da própria inspeção do trabalho. E dessa forma, abrem-se também as possibilidades de um novo perfil para a inspeção do trabalho e de subsequentes ações para a proteção do trabalhador.
Além disso, o controle social da Certificação, não sendo exercido pelo Estado, mas pela própria sociedade, como ocorre em outras Certificações, torna visível a cultura de relações do trabalho, condições e meio ambiente de trabalho embutida no universo empresarial, de forma ampla e indiscriminada.
A CULTURA FISCAL E A CULTURA DA AUDITORIA
A Certificação insere um olhar mais qualitativo sobre o mundo do trabalho, não sendo apenas um olhar técnico de um fiscal, isoladamente, mas o olhar de toda a sociedade. Propaga-se desse novo ambiente político dinâmicas sociais no sentido de reforço ou banimento. E assim como em outros Certificados de Acreditação Pública, desdobram-se potenciais não só de reforço para a própria arena da competição, no caso de certificações positivas, ou, de pressão, censura e até de banimento no caso de certificações negativas, como por exemplo, inelegibilidade de empresas para contratos e licitações públicas. Neste último caso, trata-se de mecanismo de repressão muito mais eficaz que um Auto de Infração, que muitas vezes tem a sua eficácia ameaçada pelos bloqueios de uma burocracia já assoberbada pela flexibilização e instabilizada pelas fraturas da atual desregulamentação. Nesse contexto, com a emergência do definitivo controle social sobre a inspeção do trabalho, ultrapassa-se o estágio da cultura fiscal instrumentalizada por notificações e autos de infração meramente reativos.
Abre-se uma cultura de Auditoria, proativa, instrumentalizada pela Certificação e Acreditação Oficial, nos moldes do INMETRO(26), do Greenpeace e do próprio ISO, utilizando-se a mesma linguagem da globalização. A Inspeção do Trabalho assume definitivamente a função de Auditoria Fiscal do Trabalho, e, ao invés de uma fiscalização de resultados estatísticos ou de uma simples busca idealista e expectante de qualidade dos ambientes de trabalho, a Auditoria produz uma Certificação de resultados sociais. Ao mesmo tempo, sinaliza-se para uma inspeção do trabalho solidária, multidisciplinar e em um espaço de legitimidade e sobretudo, de dignidade.
Este projeto pode incorporar-se ao processo de reação social, controle social e mudança social, em resposta à desordem e à anomia, no qual as forças sociais tem se debatido para exercitar o controle social progressivo das atribuições de um Estado em retirada, reagindo contra os rebatimentos sócio-ambientais destrutivos que se agigantam. O controle social aparece como elemento fundamental, de forma a expor publicamente os atores e manobras da classe hegemônica e influenciando a tomada de decisões políticas em todos os níveis.
ABORDAGENS NO SETOR INFORMAL
O Setor Informal ou o Terceiro Setor vai tomando forma e construindo uma nova arena política, caracterizada ainda pela indefinição. Mesmo empreendendo ações desarticuladas, o Terceiro Setor é apontado como a provável nova arena social através da qual devem ocorrer transformações sociais ainda mais abrangentes (RIFKIN, J., 1996). Neste caso, a inspeção do trabalho vai assumindo características também de uma organização informal, não governamental, empreendendo ações de retaguarda e consultoria para outras instituições sociais que buscam nesta arena definir o seu papel. Neste caso, uma Certificação do Trabalho pode ser implementada, nos moldes do Simples(27), vinculando-se aos certificados da Secretaria da Receita Federal, mediante uma simplificação dos recolhimentos trabalhistas. A arena do terceiro setor ganha reforço e consistência quanto mais ela vai atuando a nível local de forma que a inspeção do trabalho pode atuar como suporte multidisciplinar na elaboração de agendas e de análise crítica dos impasses (think globally, act locally(28)).