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Embriaguez ao volante: realização de exame clínico e comprovação do perigo de lesão são sempre necessárias

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08/02/2012 às 15:15
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3. Do direito de não fazer prova contra si – Nemo tenetur se detegere

Vige no Direito brasileiro um princípio que proíbe o Estado de compelir as pessoas a fazerem prova contra si mesmas. Esse princípio tem previsão expressa constitucional, estampada no art. 5º, LXIII, da CRFB, que, apesar de se referir apenas ao direito de permanecer calado, deve ser interpretado ampliativamente:

Art. 5º, LXIII, da CRFB/88: o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.

O Pacto de São José da Costa Rica e o Tratado Internacional de Direitos Civis e Políticos também trazem dispositivos semelhantes:

PSJCR: Art. 8º. 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: [...] g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada. [...]. 3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.

TIDCP: Art. 12. 3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: [...] g) a não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.

    Nessa esteira, tem o investigado/réu o direito de não se submeter ao teste com etilômetro ou exame de sangue. E isso não é nenhuma excrescência do ordenamento nem exagero de interpretação. É direito fundamental elencado na Carta Política de 1988 e em tratados internacionais de direitos humanos de que o Brasil é signatário e aos quais deve rigorosa observância.

    Do exercício de um direito não pode decorrer uma sanção, mormente quando se trata de um direito humanista e fundamental. Daí concluir-se que a norma inserida no texto do art. 277, §3º, do CTB está parcialmente eivada de inconstitucionalidade, pois poderá o investigado/réu se eximir, sim, dos procedimentos que dependam de sua participação ativa:

    Art. 277, §3º, CTB.  Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.

      O §3º traz eloqüência persuasiva que, além de ser desnecessária, é inconstitucional. O disposto no art. 277, §2º, do CTB, dirigido à prova da infração administrativa, como regra, é adequado para que o servidor estatal angarie os indícios reveladores da embriaguez.

      Art. 277, §2º, CTB. A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor.

        Com isso, ao ser submetido ao teste de aferição de teor alcoólico, o fiscalizado tem o direito de ser informado de seu direito. Não poderá ser obrigado a fazer o teste, nem mesmo poderá ser ludibriado pelo servidor estatal, sobremodo quando se trata de pessoas com baixo grau de escolaridade. No caso de infração administrativa (art. 165 CTB) e da contravenção penal (art. 34 da LCP), que não exigem prova corporal (sangue ou ar dos pulmões), incumbirá ao agente estatal demonstrar por outros meios a embriaguez (exame clínico – médico).

        A prova corporal angariada só será válida se feita sem coação ou engodo, assim como acontece com a confissão do acusado. Eis o teor do art. 8º, nº 3, do PSJCR: A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.

        Se o investigado for coagido, ludibriado ou mantido em erro por servidor estatal a fim de que se colha prova corporal, esse elemento informativo (no caso de inquérito) ou essa prova (em caso de processo) deverão ser repudiados pelas autoridades competentes.

        Então surge o questionamento. Por que foi inserido um número no texto legal cuja prova dependa de coleta de material corporal, que pode ser negado pelo investigado? A resposta mais plausível é a de que houve falta de técnica legislativa. A redação anterior era evidentemente mais viável de ser aplicada.

        O exame clínico era bastante, no antigo texto. E mesmo que realizado sem o consentimento do investigado, o exame clínico não gera nenhuma ilegalidade, vez que não depende de qualquer participação ativa do examinado. Quem produz a prova ou elemento informativo é única e exclusivamente o médico (perito), simplesmente observando o comportamento do examinado.

        De lege ferenda, o melhor caminho seria abolir a elementar numérica do texto legal, fazendo com que a tipicidade se satisfizesse apenas com a influência do álcool, sem índices matemáticos que demandassem prova corporal ou que dependessem de ato do investigado/réu.

        O bafômetro ou o exame de sangue podem ficar à disposição daquele que por ventura queira se valer desses instrumentos, a fim de auxiliar sua defesa. O que seria de todo legítimo.


        4. Dos tipos subsidiários em caso de recusa em realizar os testes de aferição alcoólica

        Caso o motorista esteja supostamente embriagado e se recuse a realizar o teste com etilômetro ou exame de sangue, não resta alternativa senão aplicar tipos penais subsidiários.

        Se gerar perigo na condução de veículo automotor e não for habilitado, não tiver permissão para dirigir ou esse direito houver sido cassado, poderá ser amoldada sua conduta ao previsto no art. 309 do CTB:

        Art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano: Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.

          Se for habilitado ou não estiver nas condições previstas no art. 309 do CTB, mas praticar direção perigosa de veículo, se recusando a se submeter aos testes de aferição numérica, caberá então a aplicação do art. 34 da Lei de Contravenções Penais:

          Art. 34. Dirigir veículos na via pública, ou embarcações em águas públicas, pondo em perigo a segurança alheia: Pena – prisão simples, de quinze das a três meses, ou multa, de trezentos mil réis a dois contos de réis.

            O art. 34 da LCP também se aplica àquele que não foi reprovado no exame de sangue ou no etilômetro, apresentando índice numérico de álcool inferior ao estabelecido no tipo do art. 306 do CTB ou até mesmo índice zero, mas que esteja gerando perigo de dano.

            Já art. 32 da LCP ficou derrogado na parte que se refere à direção de veículo automotor, pois o art. 309 do CTB versa agora sobre a matéria e exige que haja ato gerador de perigo. Essa a posição firmada pelo STF, conforme o Enunciado 720 de sua Súmula de jurisprudência:

            Súm. 720. O art. 309 do Código de Trânsito Brasileiro, que reclama decorra do fato perigo de dano, derrogou o art. 32 da Lei de Contravenções Penais no tocante à direção sem habilitação em vias terrestres.

              O que não se pode é afastar requisitos legais e constitucionais, ao arrepio da técnica interpretativa, para amoldar condutas a determinados tipos legais que sejam elegidos arbitrariamente pelo aplicador.


              Conclusão

              No diapasão versado nessas breves linhas, só se pode denotar efetivamente a tipicidade do crime previsto no art. 306 do CTB se ficarem aclarados os elementos referentes a: 1) tipo formal (teor numérico de álcool no sangue ou no ar expelido dos pulmões), 2) tipo material: a imputação objetiva da conduta desvaliosa (dirigir sob a influência de álcool) e o necessário resultado desvalioso (gerando perigo concreto de lesão) e o 3) tipo subjetivo (dolo).

              Em hipótese de não demonstração de todos os elementos da tipicidade formal, material e subjetiva, e também de ilicitude [37], não se torna legítimo o convencimento de que se possa efetuar a prisão em flagrante de alguém. Haja vista que a Constituição é expressa em assentar: Ninguém será preso senão em flagrante delito. Não se fala em prisão em flagrante de fato formalmente típico. Mas, sim, flagrante delito. E, no caso de condenação, tornam-se obrigatórias as análises da culpabilidade e da punibilidade. E, conforme pontifica Roxin, da necessidade concreta de pena [38].

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              Percebe-se que há alguns desencontros interpretativos sobre o tema. Nesse percurso, é natural que o responsável pelo expediente a ser analisado adote corrente que reputa ser a mais acertada, ainda que haja corrente discordante nesse cenário jurídico. E como se disse em outra oportunidade, divergência não é infringência [39]. Portanto, a divergência não legitima o eventual divergido a insurgir-se contra o divergente. Sobretudo quando se visa a acuá-lo, em notada ingerência no esteio de suas atribuições legais e constitucionais. A divergência faz parte do processo democrático de formação do Direito.

              Destaque-se ainda: notícias popularescas e punitivistas não podem levar o aplicador do Direito a atuar em desconformidade com o ordenamento jurídico e contra seu convencimento devidamente fundamentado. Como doutrina Zaffaroni,

              [...] a comunicação de massa, de formidável poder técnico, está empenhado numa propaganda völkisch [40] e vingativa sem precedentes; [...]. Este contexto não pode deixar de influir sobre nenhum teórico do direito e, por mais que se oculte sob os mais reluzentes enfeites jurídicos, a reação que suscita a presença descarnada do inimigo da sociedade no direito penal é de caráter político, porque a questão que se coloca é – e sempre foi – dessa natureza. [41]

              Pode-se reafirmar, por fim, que o conceito de delito é aberto. São as teorias sobre o seu conceito analítico é que nos dizem o que ele é. Por conseguinte, cabe ao aplicador do Direito adotar qualquer uma das teorias quando da apreciação dos autos sobre os quais delibera [42]. Isso integra o campo de sua discricionariedade, na apreciação dos autos de flagrante, no caso dos delegados, ou no processo criminal, em relação aos juízes. Mas sempre fundamentadamente, de forma técnica, doutrinária, legal e constitucional.

              É isso.


              Referências bibliográficas

              ANCILLOTTI, Roger. Considerações médico-legais sobre a "Lei Seca".http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=4420. Consulta em 21/11/2011.

              CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O delegado de polícia e a análise de excludentes na prisão em flagrante. Disponível emhttp://www.lfg.com.br/artigos/Blog/ Consulta feita em 20/11/2011.

              FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. Trad. Luiz Flávio Gomes et all. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

              GOMES, Luiz Flávio. Embriaguez ao volante (Lei 11.705/2008): exigência de perigo concreto indeterminado. Disponível em http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20080630161826475&mode=print. Consulta em 21/10/2011.

              GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de. Direito Penal – Parte Geral. Vol. II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

              GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de; BIANCHINI, Alice. Direito Penal – Introdução e Princípios Fundamentais. Vol. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

              JESUS, Damásio Evangelista. Crimes de Trânsito – anotações à parte criminal do Código de Trânsito. São Paulo: Saraiva, 2009.

              LOBERTO, Eduardo de Camargo. A prisão em flagrante e a Constituição. Da tipicidade normativa à ilicitude. Disponível em http://www.ibccrim.org.br/site/artigos/. Consulta feita em 23/09/2011. Disponível também em http://jus.com.br/artigos/19689>. Consulta feita em 03/08/2011.

              ROXIN, Claus. A Proteção de Bens Jurídicos como Função do Direito Penal. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

              ROXIN, Claus. Estudo de Direito Penal. 2ª ed., trad. Luís Greco. São Paulo: Renovar, 2008.

              ROXIN, Claus. Funcionalismo e Imputação Objetiva no Direito Penal. Trad. Luís Grego. São Paulo: Renovar, 2002.

              ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Vol. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

              ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revam, 2007.

              ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro – Introdução Histórica e Metodologia, Ação e Tipicidade. Vol. II, tomo I. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

              ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil. Ley, derechos, justicia. Madrid: Trotta, 2003.

              Assuntos relacionados
              Sobre o autor
              Eduardo de Camargo Loberto

              Delegado de Polícia de Minas Gerais. Especialista em Ciências Penais pelo Curso de Pós-Graduação Lato Sensu com Formação para Magistério Superior da Pós-Uniderp/MS. Graduado pela Unisal-Lorena/SP. Professor do Curso de Pós-Graduação em Direito Penal da Faculdade de Direito e Ciências Sociais do Leste de Minas – Fadileste. Professor de Legislação Penal Especial no Curso Especial de Formação de Sargentos da Polícia Militar de Minas Gerais. Autor de artigos jurídico-científicos. Palestrante.

              Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

              LOBERTO, Eduardo Camargo. Embriaguez ao volante: realização de exame clínico e comprovação do perigo de lesão são sempre necessárias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3143, 8 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21045. Acesso em: 29 mar. 2024.

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