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O garantismo e o abolicionismo penal: características e conflitos

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4  CONCLUSÃO

De toda forma, embora doutrinas antagônicas – já que uma justifica e a outra deslegitima o direito penal –, o diálogo entre o garantismo e o abolicionismo pode render frutos duradouros ao primeiro, na medida em que as críticas abolicionistas gerem aprimoramentos ao segundo, mais palpável e implementável em termos pragmáticos.

O abolicionismo penal é mais do que abolição do direito penal ou da prisão moderna. Ele problematiza a sociabilidade autoritária que funda e atravessa o Ocidente como pedagogia do castigo em que, sob diversas conformações históricas, atribui-se a um superior o mando sobre o outro.[1]

As doutrinas abolicionistas, portanto, não são destituídas de méritos, conforme admitido pelo próprio Ferrajoli:

O ponto de vista abolicionista – exatamente porque se coloca ao lado de quem paga o preço da pena e não do poder punitivo, sendo, portanto, programaticamente externo às instituições penais vigentes – teve o mérito de favorecer a autonomia da criminologia crítica, de solicitar-lhes as pesquisas sobre a origem cultural e social da desviação e sobre a relatividade histórica e política dos interesses penalmente protegidos [...].

Deslegitimando o direito penal de um ponto de vista radicalmente externo e denunciando-lhe a arbitrariedade, bem como os custos e o sofrimento que o mesmo traz, os abolicionistas despejam sobre os justificacionistas o ônus da justificação.[2]

O modelo garantista, enquanto modelo ideal, pode sempre ser aprimorado, na medida em que aumente-se a efetividade e a abrangências das garantias que compõem o sistema SG. Tais garantias, em última instância, são fundamentos de proteção do indivíduo contra o Estado, indivíduo este que o abolicionismo também pretende proteger ao propor a abolição das penas. Neste ponto, ambas as doutrinas convergem – seu fim último é a humanização dos sistemas (formal e institucionalizado para uma, informal e social para a outra) para que as ações danosas eventualmente praticadas por um indivíduo em um grupo social possam ser dimensionadas dentro da própria comunidade (com ou sem a participação do Estado), mantendo-se a unidade do grupo sem a necessidade de segregação do indivíduo “desviante”.


5     REFERÊNCIAS

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

PASSETTI, Edson, et al. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.


NOTAS

[1] O abolicionismo, na verdade, reúne um conjunto de teorias e correntes bastante heterogêneas. Abolicionistas mais radicais encontram origem em argumentos anarquistas e propõem a total abolição da figura do Estado, não só no campo penal. Outros, mais moderados, sugerem a abolição dos crimes e das penas, devendo os conflitos serem resolvidos por meio da conciliação desestatizada entre as partes, reservando-se ao Estado apenas o papel de administrador público, sem ingerência sobre a liberdade dos indivíduos. De qualquer forma, todas as correntes têm em comum a característica de deslegitimação do direito penal e seus mecanismos punitivos.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.232.

[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 91.

[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.95

[5] Idem, p.364.

[6] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 381.

[7] Idem, p. 382.

[8] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 385

[9] Idem, p. 355.

[0] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 385.

[1] Idem, p. 368.

[2] Idem, p. 309.

[3] Idem, p. 311.

[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 379.

[5] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 349.

[6] PASSETTI, Edson. “A atualidade do abolicionismo penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 20.

[7] Michel Foucault (1926-1984), influente filósofo francês, estudioso da análise do discurso e das estruturas institucionais, tornou-se célebre pela crítica ao sistema penal e às prisões, principalmente em Vigiar e punir (1975), A sociedade punitiva (1973) e Teorias e instituições penais (1972).

[8] HULSMAN, Louk. “Alternativas à justiça criminal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 43.

[9] PASSETTI, Edson. “A atualidade do abolicionismo penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 21.

[0] KARAM, Maria Lúcia. “Pela abolição do sistema penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 90.

[1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 88

[2] Idem.

[3] PASSETTI, Edson. “A atualidade do abolicionismo penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 26.

[4] KARAM, Maria Lúcia. “Pela abolição do sistema penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 79.

[5] PASSETTI, Edson. “A atualidade do abolicionismo penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 26.

[6] HULSMAN, Louk. “Alternativas à justiça criminal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 53.

[7] KARAM, Maria Lúcia. “Pela abolição do sistema penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 88.

[8] PASSETTI, Edson. “A atualidade do abolicionismo penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 32.

[9] PASSETTI, Edson. “A atualidade do abolicionismo penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 16

[0] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 233.

[1] PASSETTI, Edson. “A atualidade do abolicionismo penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 16.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 235.SUMÁRIO:1  INTRODUÇÃO. 2  O GARANTISMO PENAL. 3  O ABOLICIONISMO PENAL. 4  CONCLUSÃO. 5     REFERÊNCIAS


1  INTRODUÇÃO

É notório que, há muito, o direito penal passa por uma crise de justificação. Desde o advento do Iluminismo e a propagação de seus princípios humanitários, muito se discute até que ponto o sistema penal, com seus mecanismos de apuração, julgamento e imposição de pena, é suficientemente legítimo. Os supostos benefícios alcançados através da imposição da pena suplantam os custos – individuais e coletivos – inegavelmente gerados pela persecução e execução penal? Haveria uma alternativa a este sistema, que agregasse mais vantagens que desvantagens, e que poderia, de forma eficiente, suplantar a máquina de punição do Estado? Ou, ainda, poderia ser o sistema penal totalmente abolido?

Historicamente, podemos dividir as correntes que discutem a justificação do direito penal entre justificacionistas e abolicionistas. As primeiras constroem um discurso que justifica o direito penal, encontrando-lhe utilidade, em que pesem seus custos; ou propõem modelos alternativos de resposta, ainda que extrapenais, mas de toda forma institucionalizados e coercitivos. Já as últimas defendem o discurso de total abolição do direito penal, por acusá-lo de ilegítimo, defendendo práticas consensuais e conciliatórias de solução de conflitos.

No presente trabalho, pretendemos expor os argumentos do garantismo penal, enquanto doutrina justificacionista reformadora, em contraposição aos argumentos abolicionistas do direito penal, com o objetivo de delimitar as características de cada uma dessas doutrinas, bem como seus pontos de conflito.

Cumpre esclarecer, de antemão, exatamente este cenário. Não raro, confunde-se o garantismo como espécie, talvez mais branda, de abolicionismo. Trata-se, no entanto, de doutrinas opostas.

O garantismo penal, cujo maior expoente é Ferrajoli (2007), é uma doutrina justificacionista. Como se verá adiante, o garantismo propõe um modelo de procedimentos e condições para a imposição da pena que, justamente por concebê-la e admiti-la, encontra-lhe justificação (embora proponha alternativas a ela e até a abolição de alguns tipos penais). Discutem-se a qualidade, os limites, as condições e os momentos de imposição da pena, de forma a delimitar critérios segundo os quais ela poderá ser considerada legítima. Em alguns momentos, o garantismo propõe a substituição da pena privativa de liberdade por outras formas de sanção, ou até a abolição de determinadas espécies de pena, como a pena pecuniária. No entanto, todas as alternativas apresentadas por esta doutrina constituem, ainda, formas institucionalizadas, coercitivas e estatizadas de intervenção, firmando sua principal distinção frente ao abolicionismo. Assim, não se critica a intervenção penal por ilegítima, embora se proponha novos meios e condições para a intervenção punitiva.

O garantismo tem como fonte o pensamento iluminista, e propõe como parâmetros e condições para a admissão de uma pena que esta seja humanizada – banindo, portanto, castigos físicos, cruéis, a pena de morte e a prisão perpétua – bem como necessária e proporcional ao delito cometido.

Os abolicionistas[1], a seu turno, defendem a total extinção da pena, sem a substituição deste instrumento por outros mecanismos institucionalizados e coercitivos de resposta aos delitos. Os abolicionistas radicais, embora minoria, entendem a prática do crime enquanto manifestação da rebelião e da transgressão, que constitui aspecto positivo da liberdade do indivíduo e de sua determinação despida do controle institucionalizado do Estado.

As doutrinas abolicionistas mais radicais são, seguramente, aquelas que não apenas não justificam as penas, como também as proibições em si e os julgamentos penais, ou seja, que deslegitimam incondicionalmente qualquer tipo de constrição ou coerção, penal ou social. Quer-me parecer que uma postura de tal forma radical tenha sido expressada somente pelo individualismo anárquico de Max Stirner: partindo da desvalorização de quaisquer ordens ou regras, não apenas jurídicas, mas inclusive morais, Stirner chega à valorização da transgressão e da rebelião, enquanto livres e autênticas manifestações do “egoísmo” a-moral do ego, cujos julgamento, prevenção e punição constituem injustiças.[2]

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De toda forma, os abolicionistas propõem, basicamente, a extinção do direito penal e de seus mecanismos de punição. Conforme se verá adiante, esta doutrina propõe que os conflitos devem ser solucionados por meio de instrumentos não formais e não coercitivos de conciliação.


2  O GARANTISMO PENAL

O garantismo penal é um modelo limite, ideal, norteador dos institutos e práticas do direito penal em dado sistema político, e que caracteriza esse próprio sistema político. Constitui uma doutrina que parte da noção de separação entre direito e moral para propor um sistema racional de direito penal mínimo, com base no princípio da legalidade estrita.

Luigi Ferrajoli, seu principal expoente, herdeiro da tradição iluminista e liberal, em nada se aproxima de um abolicionista. Do estudo de sua obra, resta claro que o sistema garantista é concebido exatamente para traçar condições de justificação para o direito penal.

Para o garantismo, não só a pena, mas todo o sistema penal só serão legítimos se atenderem aos princípios do Sistema Garantista SG desenvolvido por Ferrajoli. Segundo o mestre italiano, o sistema garantista é um modelo-limite, “apenas tendencialmente a jamais perfeitamente satisfatível,”[3] baseado nos seguintes axiomas ou princípios axiológicos fundamentais:

A1 Nulla poena sine crimine, que expressa o princípio da retributividade;

A2 Nullum crimen sine lege, traduzido no princípio da legalidade;

A3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate, ou princípio da necessidade ou economia;

A4 Nulla necessitas sine injuria, que traduz o princípio da lesividade ou ofensividade;

A5 Nulla injuria sine actione, ou principio da materialidade;

A6 Nulla actio sine culpa, tradução do princípio da culpabilidade;

A7 Nulla culpa sine judicio, que expressa o princípio da jurisdicionariedade;

A8 Nullum judicium sine accusatione, ou princípio acusatório;

A9 Nulla accusatio sine probatione, ou princípio da verificação ou do ônus da prova;

A10 Nulla probatio sine defensione, traduzido no princípio do contraditório ou da falseabilidade.

Estes dez princípios definem as bases do modelo garantista e combinam-se entre si, dando origem a cinquenta e seis teses, tendo em vista que cada um deles pode ser aplicado tanto como condição para o reconhecimento da prática do crime quanto como condição para a aplicação da pena.

A grande maioria das constituições ocidentais modernas adota os princípios do sistema SG em seus textos. O problema é que a realidade infraconstitucional é despida de alguns ou de vários destes princípios, gerando um dissenso entre o texto constitucional e as práticas institucionais penais. Por isso, o mais adequado, conforme defende Ferrajoli[4], é falar em “graus de garantismo” à medida em que as práticas institucionais – legislativa, judiciária e policial – aproximem-se o máximo possível da efetivação de todos aqueles princípios ou mais se distanciem deles. À medida em que determinado sistema se despe, em suas instâncias infraconstitucionais, dos princípios do modelo garantista, mais aproxima-se de um sistema autoritário, principalmente se considerarmos que, ao subtrair-se uma daquelas garantias já enumeradas, necessariamente subtraem-se todas aquelas que lhes são dependentes e intrinsecamente relacionadas.

Voltando à questão da legitimação da pena e do processo penal, o garantismo defenderá que estes são legítimos, desde que observadas todas as garantias do sistema SG. O sistema penal legítimo seria aquele em que se observasse cada um dos axiomas e suas derivações, tanto como condições para que uma conduta fosse considerada crime, quanto para que um indivíduo fosse considerado culpado, e, ainda, para que uma pena fosse imposta.

É certo que, em determinadas passagens de sua obra, Ferrajoli propõe expressamente a abolição de determinados tipos de pena. Para ele,

o valor da pessoa humana impõe uma limitação fundamental em relação à qualidade e à quantidade da pena. É este o valor sobre o qual se funda, irredutivelmente, o rechaço da pena de morte, das penas corporais, das penas infames e, por outro lado, da prisão perpétua e das penas privativas de liberdade excessivamente extensas.[5]

De forma contundente, o mestre italiano defende, em última instância, a abolição da pena carcerária, ainda que através de um processo gradual que iniciar-se-ia com o limite máximo de dez anos de pena privativa de liberdade.

Penso que a duração máxima da pena privativa de liberdade, qualquer que seja o delito cometido, poderia muito bem reduzir-se, a curto prazo, a dez anos, e, a médio prazo, a um tempo ainda menor; e que uma norma constitucional deveria sancionar um limite máximo, digamos, de dez anos. Uma redução deste gênero suporia uma atenuação não só quantitativa, senão também qualitativa da pena, dado que a idéia de retornar à liberdade depois de um breve e não após um longo ou um talvez interminável período tornaria sem dúvida mais tolerável e menos alienante a reclusão.[6]

Ferrajoli propõe, ainda, a extinção do parâmetro mínimo de pena cominada aos tipos penais, a abolição das penas pecuniárias e dos próprios tipos penais punidos exclusivamente com a pena de multa, e a reforma das penas privativas de direitos.

A eliminação do parâmetro mínimo de pena cominada permitiria aos juízes, através de um julgamento de equidade, avaliarem o quantum de pena necessária e suficiente à reprovação do delito no caso concreto, sem se prenderem a um valor mínimo estabelecido de forma abstrata e generalizada pelo legislador.

No tocante às penas pecuniárias, a crítica garantista é de uma consistência incontestável:

A pena pecuniária é uma pena aberrante sob vários pontos de vista. Sobretudo porque é uma pena impessoal, que qualquer um pode saldar, de forma que resulta duplamente injusta: em relação ao réu, que não a quita e se subtrai, assim, à pena; em relação ao terceiro, parente ou amigo, que paga e fica assim submetido a uma pena por um fato alheio. Ademais, a pena pecuniária é uma pena desigual, ao ser sua formal igualdade bem mais abstrata do que a pena privativa de liberdade. Recai, de maneira diversamente aflitiva segundo o patrimônio e, por conseguinte, é fonte de intoleráveis discriminações no plano substancial.[7]

Para Ferrajoli, se uma conduta típica, para ser reprovada, se basta com uma pena de multa, tal conduta jamais deveria ser tipificada penalmente, uma vez que o cumprimento da pena, naquele caso, equivale ao pagamento de um tributo, o que poderia ser perfeitamente atendido pela esfera administrativa, ao invés da penal.

O garantismo propõe, enfim, um sistema de penas alternativas, enquanto que “algumas das atuais medidas alternativas e de prevenção – intoleráveis enquanto tais – parecem destinadas a ser as futuras penas principais.”[8]

Resta claro, portanto, que isso não faz do garantismo penal uma doutrina abolicionista, uma vez que não propõe qualquer extinção dos mecanismos formais e institucionalizados de resposta aos delitos. O garantismo questiona a qualidade e a quantidade das penas, e a maior ou menor observância real das garantias através das quais aquelas são impostas, mas não rechaça a pena como instrumento de resposta à prática de uma conduta considerada delituosa.

“Frente à artificial função de defesa social, não é arriscado afirmar que o conjunto das penas cominadas na história tem produzido ao gênero humano um custo de sangue, de vidas e de padecimentos incomparavelmente superior ao produzido pela soma de todos os delitos.”[9] O garantismo se propõe, então, a conceber um sistema de base racional, cujos benefícios suplantem os custos inevitavelmente advindos da atuação coercitiva do Estado.

Neste ponto, chegamos à questão da legitimação. Para o garantismo de Ferrajoli, as penas encontram legitimidade em dois fundamentos principais: o primeiro consiste na necessidade de prevenção da prática de futuros delitos; o segundo, firma o direito penal como substituto “humanizado” da vingança privada. No tocante ao fundamento de prevenção, Ferrajoli afirma que

o direito penal tem como finalidade uma dupla função preventiva, tanto uma como a outra negativas, quais sejam a prevenção geral dos delitos e a prevenção geral das penas arbitrárias ou desmedidas. A primeira função indica o limite mínimo, a segunda o limite máximo das penas.[10]

Para o garantismo, a pena não deve ser baixa a ponto de sua desvantagem ser ultrapassada pela vantagem do delito. Em outras palavras, a pena deve deter um caráter dissuasório, de forma que “não valha a pena” a prática do delito. Conforme assinala Ferrajoli, penas excessivamente baixas assumiriam um aspecto de meros tributos, e não cumpririam qualquer função desencorajadora.[11]

Por outro lado, o garantismo defende que “o direito penal nasce não como desenvolvimento, mas, sim, como negação da vingança.”[12] Segundo esta noção, a idéia moderna do direito penal surge exatamente no momento em que as primitivas vinganças privadas, resultado da relação bilateral entre vítima e agressor, são substituídas por um mecanismo trilateral, que situa o juiz em um pólo imparcial da relação.

Precisamente – monopolizando a força, delimitando-lhe os pressupostos e as modalidades e precluindo-lhe o exercício arbitrário por parte dos sujeitos não autorizados – a proibição e a ameaça penal protegem os possíveis ofendidos contra os delitos, ao passo que o julgamento e a imposição da pena protegem, por mais paradoxal que pareça, os réus (e os inocentes suspeitos de sê-lo) contra as vinganças e outras reações mais severas.[13]

A pena seria, então, a reação estatizada, organizada e humanizada ao delito, e que substituiria a ação de vingança da vítima ou de terceiros lesados pela prática criminosa.

A nosso ver, no entanto, tal argumento sucumbe a uma crítica mais apurada. Em que pese o brilhantismo e a contundência dos argumentos do mestre italiano, a princípio, não há como prever, em todos os casos, qual seria a reação do ofendido como vingança a seu agressor, e sequer se haveria tal reação. Tal fator, numa visão pragmática, depende da análise das forças – econômicas, políticas e até mesmo físicas – do ofendido e do agressor. Não há como conceber as sociedades modernas da mesma forma que concebemos as sociedades primitivas, pois as relações, interesses e meandros sociais são bem mais complexos naquelas do que nestas.

Se a legitimação da pena e do sistema penal baseia-se neste fundamento de evitação da vingança privada, toda vez que se conseguisse provar que não haveria reação da vítima contra seu agressor (seja por impossibilidade ou desinteresse), a pena deveria ser descartada. Esta possibilidade de ausência de reação torna-se ainda mais evidente naqueles crimes em que o sujeito passivo não é um indivíduo determinado, mas a “incolumidade pública”, “a coletividade”, “a saúde pública”, etc.

Além disso, como pode ser amplamente constatado, a pena institucionalizada não tem o poder de neutralizar as sanções sociais advindas da reação ao delito. Desde um primeiro momento, na hipótese de flagrante delito, em que o linchamento de um suposto autor de crime não exclui a pena, o cumprimento integral desta não livra o condenado de censuras e rechaços sociais, que vão desde o banimento do convívio com a comunidade, até a impossibilidade de situar-se novamente no mercado de trabalho, por exemplo.

O próprio Ferrajoli reconhece que a prevenção das vinganças privadas é “satisfeita na atual sociedade dos mass media bem mais pela rapidez do processo e pela publicidade das condenações do que pela expiação da prisão.”[14]

De toda forma, o garantismo tem o mérito de situar o direito penal em bases racionais, traçando não só limites para que o Estado exerça a persecução e a execução penal, mas também pressupostos-garantias (delimitados no esquema SG) sem os quais qualquer imposição de pena será ilegítima.

Além disso, propõe uma reformulação humanitária do sistema, com a abolição de determinados tipos penais e espécies de penas, devolvendo ao direito penal seu original caráter de ultima ratio do sistema jurídico.

O sistema penal, para se justificar, não pode se contentar apenas com argumentos de legitimação interna (legalidade). Embora o direito não possa ser confundido com a moral, o sistema penal só será legítimo se encontrar respaldo em fundamentos externos, de forma que se possa taxar de ilegítimos, inclusive, sistemas que primam pelo cumprimento estrito da lei, se esta lei não estiver atrelada àqueles valores.

Efetivamente, somente a lei penal, na medida em que incide na liberdade pessoal dos cidadãos, está obrigada a vincular a si mesma não somente as formas, senão também, por meio da verdade jurídica exigida às motivações judiciais, a substância ou os conteúdos dos atos que a elas se aplicam. Esta é a garantia estrutural que diferencia o direito penal no Estado “de direito” do direito penal dos Estados simplesmente “legais”, nos quais o legislador é onipotente e, portanto, são válidas todas as leis vigentes, sem nenhum limite substancial à primazia da lei.[15]

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Sobre a autora
Sheyla Cristina da Silva Starling

Delegada da Polícia Civil de Minas Gerais. Professora da Faculdade Batista de Minas Gerais. Mestranda em Direito Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais. Ex-professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

STARLING, Sheyla Cristina Silva. O garantismo e o abolicionismo penal: características e conflitos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3150, 15 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21093. Acesso em: 26 abr. 2024.

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