4 CONCLUSÃO
De toda forma, embora doutrinas antagônicas – já que uma justifica e a outra deslegitima o direito penal –, o diálogo entre o garantismo e o abolicionismo pode render frutos duradouros ao primeiro, na medida em que as críticas abolicionistas gerem aprimoramentos ao segundo, mais palpável e implementável em termos pragmáticos.
O abolicionismo penal é mais do que abolição do direito penal ou da prisão moderna. Ele problematiza a sociabilidade autoritária que funda e atravessa o Ocidente como pedagogia do castigo em que, sob diversas conformações históricas, atribui-se a um superior o mando sobre o outro.[31]
As doutrinas abolicionistas, portanto, não são destituídas de méritos, conforme admitido pelo próprio Ferrajoli:
O ponto de vista abolicionista – exatamente porque se coloca ao lado de quem paga o preço da pena e não do poder punitivo, sendo, portanto, programaticamente externo às instituições penais vigentes – teve o mérito de favorecer a autonomia da criminologia crítica, de solicitar-lhes as pesquisas sobre a origem cultural e social da desviação e sobre a relatividade histórica e política dos interesses penalmente protegidos [...].
Deslegitimando o direito penal de um ponto de vista radicalmente externo e denunciando-lhe a arbitrariedade, bem como os custos e o sofrimento que o mesmo traz, os abolicionistas despejam sobre os justificacionistas o ônus da justificação.[32]
O modelo garantista, enquanto modelo ideal, pode sempre ser aprimorado, na medida em que aumente-se a efetividade e a abrangências das garantias que compõem o sistema SG. Tais garantias, em última instância, são fundamentos de proteção do indivíduo contra o Estado, indivíduo este que o abolicionismo também pretende proteger ao propor a abolição das penas. Neste ponto, ambas as doutrinas convergem – seu fim último é a humanização dos sistemas (formal e institucionalizado para uma, informal e social para a outra) para que as ações danosas eventualmente praticadas por um indivíduo em um grupo social possam ser dimensionadas dentro da própria comunidade (com ou sem a participação do Estado), mantendo-se a unidade do grupo sem a necessidade de segregação do indivíduo “desviante”.
5 REFERÊNCIAS
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
PASSETTI, Edson, et al. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
NOTAS
[1] O abolicionismo, na verdade, reúne um conjunto de teorias e correntes bastante heterogêneas. Abolicionistas mais radicais encontram origem em argumentos anarquistas e propõem a total abolição da figura do Estado, não só no campo penal. Outros, mais moderados, sugerem a abolição dos crimes e das penas, devendo os conflitos serem resolvidos por meio da conciliação desestatizada entre as partes, reservando-se ao Estado apenas o papel de administrador público, sem ingerência sobre a liberdade dos indivíduos. De qualquer forma, todas as correntes têm em comum a característica de deslegitimação do direito penal e seus mecanismos punitivos.
[2] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.232.
[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 91.
[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.95
[5] Idem, p.364.
[6] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 381.
[7] Idem, p. 382.
[8] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 385
[9] Idem, p. 355.
[10] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 385.
[11] Idem, p. 368.
[12] Idem, p. 309.
[13] Idem, p. 311.
[14] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 379.
[15] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 349.
[16] PASSETTI, Edson. “A atualidade do abolicionismo penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 20.
[17] Michel Foucault (1926-1984), influente filósofo francês, estudioso da análise do discurso e das estruturas institucionais, tornou-se célebre pela crítica ao sistema penal e às prisões, principalmente em Vigiar e punir (1975), A sociedade punitiva (1973) e Teorias e instituições penais (1972).
[18] HULSMAN, Louk. “Alternativas à justiça criminal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 43.
[19] PASSETTI, Edson. “A atualidade do abolicionismo penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 21.
[20] KARAM, Maria Lúcia. “Pela abolição do sistema penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 90.
[21] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 88
[22] Idem.
[23] PASSETTI, Edson. “A atualidade do abolicionismo penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 26.
[24] KARAM, Maria Lúcia. “Pela abolição do sistema penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 79.
[25] PASSETTI, Edson. “A atualidade do abolicionismo penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 26.
[26] HULSMAN, Louk. “Alternativas à justiça criminal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 53.
[27] KARAM, Maria Lúcia. “Pela abolição do sistema penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 88.
[28] PASSETTI, Edson. “A atualidade do abolicionismo penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 32.
[29] PASSETTI, Edson. “A atualidade do abolicionismo penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 16
[30] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 233.
[31] PASSETTI, Edson. “A atualidade do abolicionismo penal”. In, PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 16.
[32] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 235.