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Entre a verdade e a aparência: a dissimulação nos negócios jurídicos

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07/03/2012 às 17:14

Resumo:


  • A simulação é um vício social do negócio jurídico que pode levar à sua nulidade, sendo caracterizada pela divergência intencional entre a vontade e a declaração, com o propósito de enganar terceiros.

  • A doutrina divide a simulação em espécies: simulação absoluta (sem intenção de produzir efeitos entre as partes) e simulação relativa ou dissimulação (com um negócio real oculto sob uma aparência diferente), podendo ser inocente (sem intuito de prejudicar) ou nocente (com intenção de causar prejuízo).

  • Os efeitos da simulação variam conforme sua natureza, podendo levar à nulidade do negócio simulado enquanto protege os direitos de terceiros de boa-fé; a prova da simulação é complexa e pode se basear em indícios e presunções, e o procedimento judicial para tratar da simulação visa obter a declaração de nulidade do negócio jurídico.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

CAPÍTULO III

SIMULAÇÃO: CONCEITO(S), CONSTITUIÇÃO E ESPÉCIES

La simulazione si può paragonare ad un fantasma, la dissimulazione ad una maschera.

Francesco Ferrara[48]

Para Francesco Ferrara, “simulação é a declaração de um conteúdo de vontade não real, emitida ciente e concordemente e por acordo entre as partes, para produzir, com o objetivo de enganar, a aparência de um negócio jurídico que não existe ou é diferente daquele que se realizou”[49].

Na simulação os contratantes concordam sobre a aparência do ato que não efetuam realmente (simulação absoluta) ou concordam sobre o ato que efetuam, mas se servem de forma visível diversa, como instrumento para enganar terceiros (simulação relativa ou dissimulação). De qualquer modo, o negócio jurídico sofre de um contraste entre a forma extrínseca e a essência íntima, destinado a provocar uma ilusão no público, que é levado a acreditar na sua existência ou na sua natureza, tal como aparece declarada, quando, na verdade, ou não se realizou um negócio ou se realizou outro diferente do expresso no contrato.

Decorre ainda do conceito que são requisitos do negócio jurídico simulado, para Francesco Ferrara: 1. uma declaração de vontade deliberadamente em desconformidade com a intenção; 2. declaração de comum acordo entre as partes contratantes e 3. a finalidade de enganar terceiros.

Quanto ao primeiro requisito, afirma Francesco Ferrara, ser a desconformidade entre a declaração e a vontade é o que há de mais característico no negócio simulado, pretendendo os simuladores que aos olhos de terceiros apareça formada uma relação que, na realidade, não existe.

Esta não-conformidade entre o que se quer e o que se declara resulta de um concerto entre as partes, de uma cooperação deliberada, com o que se adentra já no segundo requisito. Sem o concurso de todos contratantes, a simulação é impossível e tudo estaria apenas na reserva mental. Nesta, a divergência entre o que se quer e o que se declara restringe-se a uma das partes contratantes. O declarante emite conscientemente uma declaração que não corresponde à sua vontade real com o intuito de enganar o declaratário.

Com base no Código Civil português, Menezes Cordeiro expõe que há reserva mental sempre que é emitida uma declaração contrária à vontade real com o intuito de enganar o declaratário, sendo que esta reserva não prejudica a validade da declaração, exceto se for conhecida do declaratário. Neste caso, a reserva tem os efeitos de simulação. Para o autor,

A noção parece clara: há declaração com um mero intuito interior de enganar o declaratário não pretendendo o declarante aquilo que declara querer. Pode distinguir-se a reserva absoluta da relativa, consoante o declarante não pretenda nenhum negócio ou antes queira um negócio diferente do declarado. A reserva diz-se inocente ou fraudulenta conforme não vise prejudicar ninguém ou, pelo contrário, assuma animus nocendi[50].

Dois elementos são comuns à simulação e à reserva mental: 1. o desacordo intencional entre a vontade e a declaração e 2. o intuito de enganar. Diferenciam-se pelo acordo simulatório ou conluio para a simulação, existente apenas nos casos de simulação propriamente dita.

Da reserva mental trata o art. 110 do Código Civil, sem correspondência no Código de 1916: “A manifestação de vontade subsiste ainda que o autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento”.

Sua ineficácia se funda na segurança do comércio jurídico e na segurança da palavra dada.  “É por este motivo que todos os ordenamentos jurídicos repudiam a reserva mental, independentemente de texto expresso de lei; que a lei preveja ou não, a reserva mental é juridicamente irrelevante”[51]. Salvo, naturalmente, “se dela o destinatário tinha conhecimento”.

Para Heleno Taveira Tôrres,

Tomando em conta o pressuposto do acordo para simular para caracterizar a simulação, salta-nos à vista, de pronto, o que diferencia os dois institutos, pois na reserva mental não se cogita de acordo simulatório, porquanto o vício se verifica por uma ausência de conhecimento, por um dos sujeitos sobre o negócio jurídico, quanto à vontade do outro declarante. É fenômeno de todo interno ao negócio jurídico[52].

É extremamente controvertido em que consiste o acordo simulatório, havendo enorme divergência sobre sua natureza e função. Para alguns seria um negócio declarativo, para outros, ato de interpretação autêntica. Há ainda os que vêem nele os dois momentos essenciais da simulação ou então preliminar de fato, que se incorpora ao negócio simulado[53].

Esclarece Pontes de Miranda:

Sobre o acordo como elemento essencial da simulação, há: a) doutrina que o tem como tal; b) doutrina, que, a despeito de textos legais alusivos a entendimento entre figurantes, se satisfaz com a recepticiedade e o conhecimento da manifestação de vontade pelo destinatário e c) doutrina que admite simulação nos atos jurídicos em geral (Teixeira de Freitas, Esbôço, art. 531), desde que manifestações de vontade suscetíveis de simulação. O Código Civil brasileiro seguiu essa doutrina[54].

Embora se encontrem opiniões ora convergentes ora díspares, há claro predomínio daqueles que vêem no acordo requisito essencial da simulação. Alguns exemplos seguem abaixo.

António Menezes Cordeiro, baseando-se no art. 240° do Código Civil português[55], tem por claro três requisitos para a simulação: 1. Um acordo entre o declarante e o declaratário; 2. No sentido duma divergência entre a declaração e a vontade das partes; e 3. Com o intuito de enganar terceiros[56]. Explica Menezes Cordeiro:

Na simulação, as partes acordam em emitir declarações não correspondentes à vontade real, para enganar terceiros. Trata-se duma operação complexa, que postula três acordos: um acordo simulatório, um acordo dissimulado e um acordo simulado. O acordo simulatório visa a montagem da operação e dá corpo à intenção de enganar terceiros[57].

Manuel A. Domingues de Andrade entende que “a divergência entre a vontade e a declaração deve proceder de acordo entre o declarante e declaratário (pactum simulationis). Este conluio, que em regra antecede a declaração, mas também pode ser contemporâneo dela, distingue a simulação da reserva mental”[58].

Francesco Galgano entende que “a vontade de concluir um contrato simulado ou, no caso da interposição fictícia de pessoas, de fazê-lo concluir por outros resulta de um oportuno acordo de simular, dito também contra-declaração”[59]. E esclarece o conteúdo deste acordo de simular, nas seguintes palavras:

No caso da simulação absoluta as partes declaram não querer de fato os efeitos do contrato entre elas concluído (que não querem, por exemplo, a venda que concluíram e que o bem vendido, por isso, resta na propriedade do vendedor simulado); no caso da simulação relativa declaram querer, no lugar do contrato simulado, um contrato diferente (que querem, por exemplo, uma doação e não uma venda e que o adquirente, por isso, não é obrigado a pagar o preço figurado no contrato simulado[60].

No direito brasileiro, Wilson de Campos Batalha entende indispensável o acordo simulatório, aduzindo que:

Na simulação relativa, o acordo simulatório estabelece o nexo lógico entre o contrato dissimulado e o contrato simulado e explica como aquele tem praticamente a virtude de acrescentar, ou subtrair ou modificar ou –realmente– substituir o conteúdo do contrato simulado (ou alguns de seus elementos ou cláusulas), ou seja, em uma palavra – de “desmenti-lo”[61].

Para Custódio da Piedade Ubaldino Miranda,

Se a dinâmica daquele fenômeno pressupõe uma divergência entre a aparência negocial simulada e a situação jurídica real, os dois termos dessa relação não podem prescindir da existência de um elemento de ligação das duas declarações negociais mediante as quais se cria a aparência enganadora; por outro lado, o conhecimento recíproco do valor das declarações das partes se resolve naturalmente no acordo, ainda que tácito, de fazer valer uma situação jurídica diversa da que derivaria das declarações negociais que decidem emitir. [...] A verdade é, pois, que o acordo de simular constitui o prius[62] lógico, a essência do fenômeno simulatório; é no entendimento dos simulantes que ele se centra, enquanto coexistência ou a combinação das duas declarações encontram nele o seu significado, o seu unitário momento psicológico, a sua complexa determinação teleológica[63].

Noutro sentido é a opinião de Michel Dagot. Para este, “a afirmação do caráter convencional da simulação surge em geral na doutrina como uma evidência, parecendo jamais ter sido objeto de uma discussão aprofundada, ainda que a seu respeito não haja unanimidade completa”[64]. E, criticando aqueles que defendem o acordo simulatório, ataca o posicionamento majoritário da doutrina italiana neste sentido, afirmando: “e para melhor destacar este caráter convencional, a doutrina estrangeira, sobretudo a italiana, chega a falar de acordo simulatório, pelo qual as partes em um contrato decidiriam simular, no todo ou em parte”[65].

Entendendo que as explicações baseadas sobre o caráter convencional da simulação podem encontrar outros fundamentos e que o regime das provas da simulação não depende, no direito francês, da demonstração do acordo simulatório, uma vez que a jurisprudência jamais teria exigido prova do referido acordo, conclui Michel Dagot que “se pode concluir que o caráter convencional da simulação não é de sua essência. Ele não é necessário, o que não quer dizer que seu estabelecimento, quando possível, não apresente utilidade”[66].

O tema acaba por transbordar os estreitos limites deste trabalho, motivo pelo qual não será abordado com maior detença, encerrando sua abordagem com a manifestação de Alberto Auricchio:

Em conclusão, a incerteza sobre a verdadeira função do acordo, a dúvida mesmo sobre sua existência, a sua falta de necessidade lógica e jurídica, além do esforço de construção que cada teoria sobre o acordo apresenta quando partindo do vazio e do indefinito procurar precisar-lhe, tudo isto converge a uma conclusão: ser o acordo um simples preliminar de fato do negócio jurídico simulado, privado de uma sua autonomia de efeito que o possa fazer qualificar como negócio jurídico autônomo[67].

Quanto ao terceiro e último requisito, a finalidade de enganar terceiros, Francesco Ferrara faz uma importante observação: “não se deve confundir-se a intenção de enganar com a intenção de causar dano, por que a simulação pode ter uma finalidade lícita, como, por exemplo, subtrair à curiosidade e indiscreção dos outros a natureza dum acto jurídico”[68].

Esta consideração implica essencial divisão do fenômeno simulação (no gênero) em simulação inocente e simulação maliciosa (ou nocente), espécies que passam ao largo das outras duas, já mencionadas: a simulação absoluta e simulação relativa (ou dissimulação). As duas divisões se combinam, formando quatro categorias de negócios simulados: absolutos inocentes, absolutos nocentes, relativos inocentes e relativos nocentes.

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A simulação inocente é a que se faz sem o intuito de prejudicar. E, segundo Francisco Amaral, “não tem relevância prática para o direito civil”[69]. A lei não se alarma com o engano inofensivo e não a proíbe. A princípio, é lícito que as partes, para conseguir certo fim, ocultem a forma empregada, baseando-se na liberdade de contratar. Em regra, a pessoa com capacidade jurídica para efetuar diretamente um negócio, pode realizá-lo de modo indireto, de uma forma contratual diferente ou combinação de várias formas contratuais.

O fato de mascarar um negócio jurídico não pode reprovar-se em si mesmo, desde que, com ele não se ofenda a lei ou os direitos de outrem. [...] A simulação é, pois, um indiferente do ponto de vista jurídico. O que importa é o negócio jurídico verdadeiro que as partes quiseram ocultar. Esse negócio deve ser submetido a um exame atento, pois o fato de não ser proibido proceder simuladamente não significa que os negócios dissimulados sejam sempre lícitos e válidos. Antes pelo contrário, o próprio fato de ocultar a vontade contratual, de seguir caminhos tortuosos e obscuros, desperta a suspeita duma finalidade ilícita. (...) Se o negócio oculto é inocente, a sua eficácia é indiscutível, encontrando-nos então no campo da chamada simulação lícita. Mas acontece mais frequentemente que o negócio oculto tende a defraudar os direitos de terceiros ou constitui uma violação legal. Neste caso entramos no terreno da simulação fraudulenta e ilícita[70].

O limite no uso da simulação é, portanto, a boa-fé. Uma vez extrapolado o limite, o abuso no exercício do direito consistirá ato ilícito (art. 187, CC).

Afirma Manuel A. Domingues de Andrade: “o que constitui elemento de simulação é, pois, o intuito de enganar ou iludir (animus decipiendi[71]) e não o intuito de prejudicar, isto é, de causar um dano ilícito (animus nocendi[72])” [73].

Não sendo essencial à simulação, o fim de prejudicar nem por isso deixa de se verificar. Pelo contrário, ocorre freqüentemente, mas de forma incidental, qualificando a simulação como fraudulenta (ou nocente), realizada com o fim de frustrar direitos ou ocultar a violação da lei.

Assim entendeu o STJ no Recurso Especial n° 13.365/GO, aplicando à simulação fraudulenta a presunção de prejuízo, em decisão assim ementada:

Simulação em negócio jurídico. Ação procedente, impondo-se o desfazimento do negócio. 1. Hipótese em que se verificou a ocorrência da simulação no negócio jurídico, do exame da prova realizada nos autos, sem ofensa aos arts. 333, inciso I e 334, incisos II, III e IV do Cód. de Pr. Civil; 2 . Na simulação maliciosa há intenção de prejudicar terceiros; em conseqüência, presume-se o prejuízo; 3. Recurso especial não conhecido[74].

Retomando, para concluir, o aspecto conceitual, importante destacar José Beleza dos Santos. Na esteira de Francesco Ferrara, o autor português leciona que a simulação, em sentido amplo, é a divergência entre a vontade e a declaração não com simples intuito de gracejo, didático, de reclamo ou teatral (declarações não-sérias e, portanto, inaptas a fundar confiança), mas com o sério fim de enganar, fazendo-se com que os outros confiem em uma declaração aparente como se ela correspondesse a uma vontade real[75].

Para que exista a simulação, de acordo com José Beleza dos Santos, é necessário “que se verifique um desacordo entre a vontade real e a declarada, o que seja: a) intencional; b) realizado com o intuito de enganar; c) estabelecido por acordo entre todos aqueles cujas vontades condicionaram a formação do negócio jurídico”[76].

José Beleza dos Santos influenciou Clovis Bevilaqua[77], segundo o qual, ocorre simulação

Quando o acto existe apenas apparentemente, sob a fórma, em que o agente o faz entrar nas relações da vida. E um acto fictício, que encobre e disfarça uma declaração real da vontade, ou que simula a existencia de uma declaração que se não fez. É uma declaração enganosa da vontade, visando produzir effeito diverso do ostensivamente indicado[78].

Por seu turno, Custódio da Piedade Ubaldino Miranda entende a simulação não como uma divergência entre vontade e declaração, mas uma imitação da forma, “a não realidade escondida na forma imitada é, todavia, realidade, enquanto fingimento”. O fingimento é real como fingimento e é fingimento frente à realidade. Segundo o autor, se existe uma divergência não é propriamente na estrutura do negócio simulado, mas na estrutura do fenômeno simulatório, ou seja, entre a forma e o conteúdo. Conclui, deste modo, que a simulação

É um procedimento complexo orientado para a criação de uma aparência negocial diferente da realidade que se oculta sob esta aparência. O negócio jurídico, na sua aparência normal, é um instrumento de que as partes lançam mão para alcançarem umas vezes efeitos não-negociais (simulação absoluta) e outras vezes efeitos diferentes dos efeitos normais do negócio (simulação relativa)[79].

Por fim, para Emilio Betti, ocorre simulação quando as partes de um negócio bilateral, “estabelecem um regulamento de interesse diverso daquele que entendem observar nas suas relações, buscando, por meio do negócio, um objetivo (dissimulado) divergente de sua causa típica”[80].

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Sobre o autor
Alex Lamy de Gouvea

Bacharel em Direito (UFMG). Especialista em Direito Processual (PUC Minas). Concluiu o Curso de Formação de Oficiais na Academia de Polícia Militar de Minas Gerais (curso equivalente aos superiores de graduação). É oficial da reserva não-remunerada da PMMG. Analista Judiciário-Área Judiciária na Justiça Federal de Primeiro Grau em Minas Gerais. Professor voluntário de Direito Civil na UFMG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOUVEA, Alex Lamy. Entre a verdade e a aparência: a dissimulação nos negócios jurídicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3171, 7 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21224. Acesso em: 25 dez. 2024.

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