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Entre a verdade e a aparência: a dissimulação nos negócios jurídicos

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07/03/2012 às 17:14
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CAPÍTULO IV

 A DISSIMULAÇÃO

A existência de alguma discrepância entre a realidade e aparência – a prática social

da dissimulação – é indissociável da convivência humana.

Eduardo Giannetti[81].

A dissimulação é mais comumente chamada de simulação relativa. Recebe também o nome de negócio mascarado e negócio velado. Para os medievais, coloratus, figuratus, depictus. Daí o aforismo colorem habet, substantiam vero alteram.

Na dissimulação (ou simulação relativa) existem dois negócios: um real, dissimulado, destinado a produzir efeito entre as partes e um aparente, simulado, destinado a não produzir efeitos.

Consiste, segundo Francesco Ferrara, no disfarce de um ato, “quando se realiza aparentemente um negócio jurídico, querendo e levando-se a efeito um outro diferente. Os contratantes concluem um negócio verdadeiro que ocultam sob uma forma jurídica diversa, de modo a que sua verdadeira natureza permaneça secreta”[82].

A princípio, é lícito que as partes, para conseguir certo fim, ocultem a forma empregada, baseando-se na liberdade de contratar, desde que este engano seja inofensivo. Na hipótese, o fenômeno pode até ferir rigores éticos, mas se encontra no campo do juridicamente lícito.

Ultrapassando a barreira da inocência, defraudando direitos de terceiros, entra-se no campo da dissimulação ilícita (fraudulenta). “Então será de aplicar aquela sanção, qualquer que seja, que a lei estabeleça, do mesmo modo que se o negócio tivesse sido realizado abertamente”[83].

Afirma Heleno Tôrres ser interessante observar que também o negócio simulado lato sensu é uma expressão da autonomia privada, desse poder de criar normas, segundo as liberdades de contratar disponíveis, ausente vedação legal específica. A autonomia privada se expressa exatamente na disposição de vontade das partes com o fim de atingir um determinado objetivo. E daí ser o “negócio simulado, formalmente, também ele, uma decorrência de exercícios da autonomia privada, mesmo que seus efeitos possam a posteriori justificar algum modo de controle sobre o ato negocial, por parte de terceiros ou do Fisco”[84].

A doutrina clássica, em especial Francesco Ferrara e José Beleza dos Santos, vê a simulação relativa como um ato de desfiguração, com o intuito de enganar terceiros, fazendo aparecer um ato jurídico de natureza diversa, ou de conteúdo diferente, ou realizado por pessoas que não são as que na realidade nele intervieram. Assim, para José Beleza dos Santos, “há, portanto, na simulação relativa, declarações de vontade aparentes que mascaram todo ou parte do ato jurídico que se quer efetuar e declarações de vontades reais que dizem respeito a esse ato jurídico oculto”[85]. Sendo declaração de vontade aparente, em contraposição à declaração de vontade real, concluem os clássicos que na apreciação jurídica o ato simulado deve ser desconsiderado, por ser simples disfarce exterior e, consequentemente, “a aparência por ele produzida não pode ter eficácia jurídica alguma”[86].

É na esteira do pensamento de abstrair-se da aparência e atender somente ao negócio verdadeiro, que Francesco Ferrara afirma:

Quando se afasta o véu enganador, não restam vestígios das suas existências, e, uma vez descoberto o negocio oculto, a ilusão creada dissipa-se com o vento dissipa o nevoeiro. E aparece o negócio verdadeiro, na sua forma genuína e sincera, que é o fruto da vontade das partes: o único que tem importância jurídica[87].

Pontua Custódio Miranda que outro entendimento de dissimulação vê o fenômeno não como, necessariamente, uma manifestação de vontade em contraste com o querer, mas uma concordância entre as partes em dar certa forma a uma vontade diversa da verdadeira, de maneira que se comporiam dois atos antitéticos: a declaração de querer algo na aparência e a declaração de realidade distinta[88]. Para este conceito, a dissimulação não estaria no contraste entre a vontade e a declaração, mas entre a vontade e a aparência exterior do ato.

Amparados nas doutrinas de Betti e de Distaso, os adeptos deste último posicionamento propõem uma concepção unitária do fenômeno simulatório.

Partindo desta concepção unitária, entende Custódio Miranda que na simulação relativa os elementos constitutivos do procedimento simulatório são o acordo simulatório e o negócio simulado. Ao negar autonomia ao negócio dissimulado, afasta o entendimento de haver dois negócios, o simulado e o dissimulado.

Deixando de constituir o terceiro elemento na simulação, o negócio dissimulado passa a integrar o todo do acordo simulatório, na compreensão de que “o intento dos simuladores, de criarem uma relação negocial diversa da aparente, é único e originário não só na sua determinação psicológica, mas também na unidade do seu momento teleológico”[89]. E é pelo acordo simulatório que as partes celebram um negócio jurídico com aparência de um negócio normal, que terá efeitos intra-partes diversos do ostensivo e próprios do respectivo tipo ou categoria negocial.

A simulação seria, então, um complexo procedimento que se destina à criação de uma aparência enganadora. Nela ocorre um nexo de contemporaneidade e de contextualidade psicológica entre o ato aparente e o escopo dissimulado, sendo o negócio dissimulado indissociável do negócio simulado.

No mesmo sentido entende Heleno Tôrres, para quem mister se faz compreender que o acordo simulatório “compreende a criação do contrato simulado e da relação dissimulada, que formarão o contrato simulado. Portanto não há dois negócios jurídicos, quais sejam, o simulado e o dissimulado, mas um único negócio simulado”[90]. E aduz que às normas jurídicas criadas por legítimo exercício de autonomia privada, tratando-se de negócios jurídicos, devem ser atribuídas eficácia.

Um elemento em comum em todas as concepções da dissimulação é o necessário conluio das partes, no sentido de se simular um ato aparente para enganar terceiro, dissimulando-se outro ato (correspondente à vontade real das partes) sob a aparência do primeiro.

Na falta deste elemento essencial, qualifica-se o ato jurídico como oculto, inconfundível com a simulação relativa.

Também não se confundem a dissimulação e o negócio erradamente denominado, a saber, aquele ao qual as partes atribuem um nomen iuris não correspondente à sua natureza, por ignorância ou equívoco. Afinal, o Código Civil estabelece, no art. 112, que “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”.

A imprecisão de linguagem deixa intacto o conteúdo prático a que se quer chegar, segundo a intenção das partes. É o erro obstáculo, que afeta não o conteúdo, mas a declaração de vontade. Sobre ele, esclarece José Beleza dos Santos:

O desacordo entre a vontade e a declaração pode derivar diretamente do declarante, como se resulta de um lapso por ele cometido na maneira de se exprimir verbalmente, ou de redigir a declaração por escrito – empregando uma palavra em vez de outra, designando um objeto por outro – ou dele ter dado a uma palavra uma significação que ela não tenha por desconhecimento da língua ou do seu significado corrente ou técnico. Pode também o erro na declaração resultar da sua redação infiel feita por terceiro encarregado de a escrever ou da sua transmissão inexata, como se foi feita por telégrafo e na recepção ou transmissão se alterou o conteúdo do telegrama[91].

O erro obstáculo e a dissimulação diferenciam-se, ainda, do erro vício de consentimento, incidente sobre a determinação da vontade, o que acontece quando se declara algo que realmente se quis, mas que não se teria declarado, porque não se quereria, se o declarante conhecesse a realidade das coisas, fatos ou princípios de direito que se pressupuseram. O erro vício de consentimento está disciplinado nos arts. 138 a 144 do Código Civil, figurando como causa de anulabilidade do negócio jurídico.

Para o negócio erradamente qualificado, basta uma interpretação retificadora da denominação imprópria; para o negócio dissimulado, será necessária a descoberta do seu caráter oculto teleológico (exame da intenção das partes) e conseqüencial (exame da ocorrência de abuso de direito, de violação de disposição legal cogente etc).

Também se diferenciam a dissimulação e os negócios jurídicos indiretos. Caracterizam-se, estes, de acordo com Domenico Rubino, “pelo emprego de um negócio para a consecução de fins que se obtém normalmente por outro caminho”[92]. 

Nos negócios indiretos, ou com fins indiretos, os negócios são verdadeiros na sua totalidade, apesar de produzir efeitos complexos. O resultado de um negócio jurídico indireto aparece manifestamente, “ainda que seja resultado de vários atos que se unem e combinam e que, pela sua ação complexa, chegam a produzir um efeito equivalente ou análogo a outro tipo de contrato”[93].

As partes no negócio indireto não pretendem dissimular, mas conseguir efeitos jurídicos idênticos empregando simultaneamente várias formas jurídicas. Distinguem-se, portanto, da simulação, já que todos os negócios são realmente queridos. “E verdadeiramente, a tese da simulação, afirmando que o aspecto jurídico do negócio médio não é querido, representa um plus frente à simples incongruência entre o aspecto jurídico e o conteúdo prático do negócio [indireto]”[94].

De relevante importância, muito discutida na doutrina, é a diferenciação entre dissimulação e fraude à lei.

Usualmente a fraude à lei é entendida como a ocorrência de infração à lei de forma indireta, oblíqua, como forma de afastar o negócio jurídico efetivamente levado a cabo da hipótese de incidência legal.

A fraude, escreve Francesco Ferrara, “constitue uma violação indirecta da lei, não segundo o seu conteúdo literal, mas segundo o seu espírito”[95]. O defraudador não contradiz as palavras da lei, porém, cingindo-se à sua letra, vai, na realidade, contra o sentido da disposição, frustrando a finalidade a que tendia. “A par da transgressão da lei, está o iludi-la inteligentemente e subtilmente, para conseguir o fim proibido por um caminho indirecto”[96].

Para Francesco Ferrara, a fraude muda o estado de fato regulada pela lei, tornando-a inaplicável. Assevera então: “para mim, os negócios fraudulentos são negócios reais indirectos que procuram conseguir, pela combinação de diversos meios jurídicos realizados seriamente, o mesmo resultado que a lei proíbe ou, pelo menos, um equivalente”[97]. Os negócios em fraude à lei buscariam uma realidade, sendo sérios, reais, realizados pelas partes para conseguirem um resultado proibido.

Em semelhança com a dissimulação, também os negócios fraudulentos querem “prejudicar a lei”, mas por outros meios: “não oculta o acto exterior, mas deixa-o claro e visível, tratando de fugir obliquamente à aplicação da lei, mercê duma artística e sábia combinação de vários meios jurídicos não reprovados”[98]. Enquanto a fraude à lei consiste numa violação indireta, a simulação seria uma violação direta, frontal da lei, de forma oculta.

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José Beleza dos Santos não vê grande distinção entre as duas figuras. Entendendo que devem ser considerados proibidos por lei apenas os atos nela compreendidos (no texto ou no aspecto teleológico), reconduz os atos em fraude à lei aos atos contra a lei, negando autonomia dogmática da fraude à lei. “Esta distinção absoluta entre a simulação e a fraude à lei, tal como quer Francesco Ferrara, perde toda a sua razão de ser desde que a fraude à lei não constitui, como realmente acontece, uma situação que tenha configuração própria absolutamente diferenciada dos atos contra legem”[99].

Homéro Prates afirma que a grande diferença entre negócio dissimulado e in fraudem legis é que “no primeiro, vale o ato simulado, se reunir as condições prescritas em lei para sua eficácia, ao passo que na fraus legis, o ato oculto não prevalece por ser proibido”[100].

Sobre seu posicionamento importante destacar duas ressalvas: como acima registrado, não ocorre ocultação do negócio verdadeiramente celebrado em fraude à lei. A figura não se destina à ocultação, mas ao afastamento de efeitos jurídicos (e, principalmente, efeitos econômicos) indesejados pelos celebrantes no percurso de celebração ou dela decorrentes, caso o mesmo negócio se desse de forma direta. A segunda observação é que nas simulações (absolutas ou relativas) o ato simulado nunca é eficaz. Pelo contrário, é sempre inexistente, ineficaz ou nulo, a depender da espécie e do entendimento doutrinário adotado. O que subsistirá é o negócio dissimulado (ou seja, o negócio verdadeiramente celebrado), se válido na forma e na substância.

Heleno Tôrres, após assumir certa dificuldade para concluir pela diferença entre dissimulação e fraude à lei, conclui que na dissimulação estaria uma intenção de prejudicar terceiros, o que não ocorreria na fraude à lei, em que bastaria a constatação da infração ou violação indireta da lei para sua caracterização. Conseqüentemente, sendo válido o negócio dissimulado, aplicar-se-ia o princípio da preservação, como modo de conferir proteção ao direito dos terceiros. Na fraude à lei, “isso não se vê, por ser de plano declarado nulo (o negócio), caindo, com ele, todos os direitos que terceiros, de boa-fé ou de má-fé, tenham adquirido”[101].

A discussão deve se pacificar com o novo Código Civil, em vigor desde 2003. O legislador estabeleceu limites legais à autonomia privada, prevendo expressamente a nulidade do negócio jurídico in fraudem legis, com regra geral segundo a qual “é nulo o negócio jurídico quando: [...] VI – tiver por objetivo fraudar lei imperativa” (art. 166, VI, CC). Previu, ainda, a sanção de nulidade também para o negócio jurídico simulado (art. 167, caput, CC), equiparando, nos efeitos, as duas figuras.

Surgem também confusões entre os negócios jurídicos dissimulados e os praticados com fraude contra credores.

O negócio jurídico realizado em fraude contra credores não se reveste de outra aparência negocial com conteúdo divergente. Opera-se normalmente e incide sobre o patrimônio do devedor, garantia geral dos credores.

A fraude contra credores, segundo Francisco Amaral, compõe-se de dois elementos: o objetivo (eventus damni), consistente em todo ato prejudicial ao credor, por tornar o devedor insolvente ou por ter sido praticado em estado de insolvência e o subjetivo (consilium fraudis), consistente na má-fé, no intuito malicioso de prejudicar[102]. Mesmo posicionamento tem J. M. de Carvalho Santos: “Elemento subjetivo da fraude: É o ‘consilium fraudis’, ou seja, a má-fé, que se presume algumas vezes, por parte do devedor; vale dizer, a intenção do devedor de prejudicar seus credores”[103].

Para Pontes de Miranda, todavia, o consilium fraudis não é elemento da fraude contra credores: “uma vez que o direito brasileiro, nos arts. 106 e 107, abstraiu do consilium fraudis, fraude há, se há insolvência, eventus damni, e, nas espécies do art. 107, scientia fraudis”[104]. Nos termos dos referidos artigos do Código Civil de 1916: “art. 106. Os atos de transmissão gratuita de bens, ou remissão de dívida, quando os pratique o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, poderão ser anulados pelos credores quirografários como lesivos dos seus direitos (art. 109). Parágrafo único. Só os credores, que já o eram ao tempo desses atos, podem pleitear-lhes a anulação” e “art. 107. Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória ou houver motivo para ser conhecida do outro contraente”.

A guardar semelhança com a dissimulação, pontua Washington de Barros, tem-se que também na figura o animus nocendi não tem relevância. “Basta que o devedor tenha consciência de que de seu ato advirão prejuízos” [105].

A figura atualmente está prevista nos arts. 158 a 165 do Código Civil, sem grandes modificações na disciplina legal. Decorrentemente, pode-se concluir com Pontes de Miranda não constituir elemento da fraude contra credores o consilium fraudis. Com efeito, dispõe o art. 158 do Código Civil de 2002: “Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos. §1°- Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente. § 2°- Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles”.  E, de acordo com o art. 159: “Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante”.

Analisando a questão, Humberto Theodoro Júnior afirma que na doutrina estrangeira se discute se o devedor tem de agir com “intenção de lesar os credores” ou se bastaria a “consciência desse prejuízo[106]. Esclarece que “no direito brasileiro, a lei é silenciosa acerca da caracterização do elemento psicológico da fraude por parte do devedor”[107], e aduz, concluindo:

Nossa doutrina, porém, é uniforme no sentido da dispensa do propósito deliberado de lesar os credores (animus nocendi). O consilium fraudis configura-se com o simples ‘conhecimento que tenha ou que deva ter o devedor, do seu estado de insolvência e das conseqüências que, do ato lesivo, resultarão para os credores’.

O direito pátrio, na verdade, tem o consilium fraudis como presumido no comportamento do devedor que cria ou agrava a própria insolvência. Nosso Código Civil, nessa ordem de idéias, ‘contenta-se com o eventus damni; não exige que o ato seja intrinsecamente fraudulento. Ou melhor, presume a fraude, uma vez demonstrados referidos pressupostos’.[108]

A ação destinada a anular atos realizados em fraude contra credores é a revocatória ou pauliana.

Apartadas as figuras que podem se confundir com a dissimulação, pode-se passar a apresentá-la com mais detença.

A simulação, no gênero, apresenta duas espécies: a simulação absoluta e a simulação relativa, também denominada dissimulação. A segunda espécie, por sua vez, se apresenta em duas modalidades: a dissimulação objetiva (quanto à natureza ou ao valor do negócio) e a dissimulação subjetiva (quanto às pessoas envolvidas).

Parte da doutrina considera como modalidade de simulação relativa, a dos sujeitos (pessoas ou participantes do negócio jurídico), constituindo a interposição fictícia de pessoa. Outros doutrinadores têm-na por uma terceira modalidade de simulação, ao lado da absoluta e da dissimulação.

Ocorre a dissimulação objetiva quanto à natureza do negócio, quando sua incidência se dá na causa do negócio jurídico, “quando as cláusulas que integram o negócio ‘implicam com a própria tipicidade do mesmo negócio’”[109]. Exemplos deste caso, recorrentemente lembrados pela doutrina, seriam as ocultações de doações e ocultações de mútuos usurários.

A ocultação de doação é um dos objetivos mais freqüentes na dissimulação. Ocorre ora com propósitos fraudulentos (ilegais), ora sem o fim de causar dano (inocente). Opera-se normalmente por meio da simulação de um contrato de compra e venda, de natureza bastante diversa.

O contrato de doação é aquele “pelo qual um das partes se obriga a transferir gratuitamente um bem de sua propriedade para o patrimônio de outra, que se enriquece na medida em que aquela empobrece”[110], tendo por características a unilateralidade, consensualidade e gratuidade. A compra e venda, “contrato em que alguém se obriga a transferir a outrem a propriedade de uma coisa determinada, por certo preço em dinheiro ou em valor fiduciário equivalente”[111], tem por características ser sinalagmático[112], oneroso, consensual[113]. Aquele contrato, mesmo com encargo, não se torna contrato bilateral, pois entre as obrigações inexiste sinalagma[114]. Do que se extrai serem substancialmente diversos os efeitos econômicos de um e de outro, ainda que ambos sejam atos de alienação.

Exemplo de dissimulação de doação com propósito fraudulento é a de um homem casado, ainda que em regime diverso da separação absoluta que simula compra e venda de um bem qualquer à amante, declarando haver recebido o valor correspondente, quando, na verdade, doou o bem (art. 550, CC).

Recorre-se ainda à dissimulação sobre a natureza do negócio para ocultar mútuos usurários. Pode ser dar por alteração na estrutura típica do mútuo ou ocultando-se apenas os juros extorsivos.

O contrato de mútuo consiste naquele em que “uma das partes transfere uma coisa fungível a outra, obrigando-se esta a restituir-lhe coisa do mesmo gênero, da mesma qualidade e na mesma quantidade”[115].

Destinando-se a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder à taxa a que se refere o art. 406 do Código Civil, permitida a capitalização anual (art. 591, CC). A taxa referida é a aplicada para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional. Aparte a discussão jurisprudencial e doutrinária (atualmente sem repercussão) se esta taxa é a SELIC (variável) ou a do art. 161, § 1° do Código Tributário Nacional (1% ao mês), existe vedação em se estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal, nos termos do art. 1° do Dec. 22.626, de 07 de abril de 1933 (Lei da Usura). Excepcionalmente, de acordo com o enunciado da Súmula 596 do STF, “as disposições do Dec. 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integram o Sistema Financeiro Nacional”.  E, nos termos da Súmula 283 do STJ, “as empresas administradoras de cartão de crédito são instituições financeiras e, por isso, os juros remuneratórios por elas cobrados não se sofrem as limitações da Lei da Usura”.

Visando burlar as regras limitadoras impostas pela Lei da Usura, a fim de obter um empréstimo em dinheiro, com juros superiores aos legais, dissimula-se o mútuo com um simulado contrato de venda com pacto de retrovenda. Convenciona-se como uma venda de um bem imóvel do mutuário com pacto de retrovenda, servindo o imóvel de garantia ao mutuante. O mutuário assume papel de aparente vendedor e o mutuante de aparente comprador. O preço do mútuo assume o título de preço da venda. No cumprimento do pacto de retrovenda, o mutuante devolve (“revende”) o imóvel, recebendo o capital, somado aos juros usurários, que assumem, novamente, o título de preço da venda. A operação envolve o sério risco do mutuante não conseguir para a importância devida (capital mais juros), perdendo o imóvel para o “comprador” (mutuante).

Os tribunais brasileiros têm sido rigorosos nestas situações, aplicando ao contrato a nulidade, em razão deste tipo de avença não ser tolerada no direito brasileiro. Entendem os tribunais que a hipótese acaba por se configurar como pacto comissório, de vedação expressa nos termos art. 1.428 do Código Civil de 2002 (de mesma redação do art. 765 do Código Civil de 1916), in verbis: “É nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento”.

Esclareceu o Ministro Eduardo Ribeiro, em voto-vista no Recurso Especial 2216/SP: “O art. 765 do Código Civil, é certo, refere-se expressamente, ao penhor, anticrese e hipótese. Não pode, entretanto, deixar de abranger aquelas outras situações em que o não pagamento do empréstimo conduza à perda, em benefício do credor, de um bem, colocado como garantia”[116]. A decisão, por unanimidade, deste Recurso Especial, ficou assim ementada:

Empréstimo de dinheiro garantido por imóvel. Simulação. Pacto comissório. É nulo o negócio simulado, que permite ao credor ficar com o objeto da garantia, no caso da dívida não ser paga no vencimento;

2. Em decorrência dos motivos, e relevantes, da nulidade, o pacto comissório não se limita aos casos expressamente previstos no art. 765 do Cód. Civil. Hipótese de sua aplicação em venda e compra (escritura e compromisso);

3. Recurso especial conhecido e provido[117].

No mesmo sentido, o julgamento do Recurso Especial 41233-1/SP, assim ementado:

Pacto comissório – Simulação

A proibição atinge todas hipóteses em que, para garantir o pagamento de mútuo, se convencione deva o credor ficar com bem de propriedade do devedor. A dação em pagamento é lícita quando visa simplesmente a saldar o débito, não se vislumbrando que a ela se tenha condicionado o mútuo. Hipótese em que isso não ocorreu, pois a renegociação da dívida, com a concessão de novo prazo, vinculou-se a negócio simulado em que o credor recebeu bens e, na mesma oportunidade, prometeu vendê-los ao devedor, mediante pagamentos mensais que, em realidade, correspondiam a amortizações do empréstimo. Nulidade reconhecida[118].

O STJ, em hipóteses semelhantes, chegou a deferir medida liminar para suspender os efeitos de escritura de compra e venda de imóveis que teria sido lavrada com o propósito de encobrir negócio usurário, a partir de fatos processuais que reforçavam a conveniência da medida, embora com exigência de prestação de caução, nos termos do art. 804 do CPC[119]. Reconheceu ainda, mesmo sob a égide do Código Bevilaqua, ser possível à parte que celebrou o contrato (o comparsa do verdadeiro simulador) ter a iniciativa de argüir a sua anulação[120].

O TJMG já decidiu pela decretação da nulidade de escritura pública de compra e venda simulada de imóvel, sem qualquer pagamento, mas apenas garantia de empréstimo, como se vê na seguinte ementa:

REIVINDICATÓRIA - RECONVENÇÃO - ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA - SIMULAÇÃO - NULIDADE. Sendo apurado que a compra e venda do imóvel tratou-se de simulação, sem qualquer pagamento, mas apenas garantia de empréstimo por fim quitado, decreta-se a nulidade da escritura pública correspondente[121].

Importante destacar também a vigência no ordenamento jurídico brasileiro da Medida Provisória 2.172-32, de 23 de agosto de 2001, que estabelece a nulidade das disposições contratuais que menciona e inverte, nas hipóteses que prevê, o ônus da prova nas ações intentadas para sua declaração. A referida medida continua em vigor, encontrando-se atualmente em tramitação no Congresso Nacional, em razão do disposto na Emenda Constitucional n° 32, de 11 de setembro de 2001, art. 2º: “As medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação desta emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional”. Dispõem seus arts. 2° e 3°:

Art. 2º  São igualmente nulas de pleno direito as disposições contratuais que, com o pretexto de conferir ou transmitir direitos, são celebradas para garantir, direta ou indiretamente, contratos civis de mútuo com estipulações usurárias.

Art. 3º  Nas ações que visem à declaração de nulidade de estipulações com amparo no disposto nesta Medida Provisória, incumbirá ao credor ou beneficiário do negócio o ônus de provar a regularidade jurídica das correspondentes obrigações, sempre que demonstrada pelo prejudicado, ou pelas circunstâncias do caso, a verossimilhança da alegação.

Com base no disposto na referida Medida Provisória, decidiu o TJMG:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DESPEJO C/C COBRANÇA DE ALUGUÉIS E DEMAIS ENCARGOS. ALEGAÇÃO DE SIMULAÇÃO. AGIOTAGEM. VEROSSIMILHANÇA DAS ALEGAÇÕES. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. Se o réu da ação de despejo demonstra a verossimilhança de sua alegação de suposta ocorrência de simulação, em virtude da prática de agiotagem, deve-se inverter o ônus da prova, nos termos do art. 3º da Medida Provisória nº 2.172/32, sendo certo que caberá ao autor, que é credor ou beneficiário do contrato de locação, o ônus de provar a regularidade das obrigações firmadas no referido contrato[122].

Retomando as modalidades de dissimulação, tem-se que a dissimulação objetiva sobre o conteúdo do negócio versa sobre o objeto, o valor ou a data.

Sobre o objeto, ou identidade da prestação, simula-se incidir o negócio sobre o bem móvel A, quando, na verdade, dissimulou-se o negócio incidente sobre o bem móvel B. De acordo com Custódio Miranda, “embora rara, pode existir”[123].

Sobre o valor, retome-se ao exemplo do contrato de mútuo, no qual, com o fim de ocultar os juros excedentes ao limite, declara-se um valor superior ao real, cobrando-se juros superiores aos legais.

Sobre a data, pode ocorrer apenas em instrumentos particulares, por antedata ou pós-data, o que, para Michel Dagot, são duas faces de um mesmo fenômeno[124]. Esclarece Pontes de Miranda: “Tem-se dito que a antedata ou pós-data é falsidade, e não simulação. O art. 102, III[125], corta, cerce, a questão”[126]. Exemplo da hipótese seria o interdito que se obriga atualmente com data anterior à sentença que o interditou[127].

Os aspectos da antedata e pós-datada têm relevância prática no cheque.

Consistente em uma promessa de pagamento feita pelo emitente, destaca Wille Duarte Costa ser “a data da maior importância no cheque, já que a partir dela conta-se o prazo para apresentação do cheque ao sacado e, consequentemente, o prazo de prescrição da ação de execução”[128].

É de uso comum o chamado cheque pré-datado, para apresentação futura ao banco junto ao qual o sacado possui conta. Na realidade, o cheque seria pós-datado, já que nele consta data futura, ocasião em que normalmente haverá fundos suficientes para o pagamento do título.

De qualquer forma, o cheque (pós ou antedatado) não perde, por força de lei, a sua natureza de ordem de pagamento à vista, pagável na apresentação, ainda que antes da data estipulada para tanto. É o disposto na Lei n° 7.357, de 02 de setembro de 1985 (Lei do Cheque): “Art. 32. O cheque é pagável à vista. Considera-se não escrita qualquer menção em contrário. Parágrafo único. O cheque apresentado para pagamento antes do dia indicado como data da emissão é pagável no dia da apresentação”.

Qualquer apresentação fora da data ajustada entre as partes apenas pode ser discutida em eventuais perdas e danos. De acordo com o enunciado da Súmula 370 do STJ: “caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado”.

Do exposto, compreende-se a desconhecida utilidade da pós-data ou antedatada no cheque para o fim de simulação.

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Sobre o autor
Alex Lamy de Gouvea

Bacharel em Direito (UFMG). Especialista em Direito Processual (PUC Minas). Concluiu o Curso de Formação de Oficiais na Academia de Polícia Militar de Minas Gerais (curso equivalente aos superiores de graduação). É oficial da reserva não-remunerada da PMMG. Analista Judiciário-Área Judiciária na Justiça Federal de Primeiro Grau em Minas Gerais. Professor voluntário de Direito Civil na UFMG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOUVEA, Alex Lamy. Entre a verdade e a aparência: a dissimulação nos negócios jurídicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3171, 7 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21224. Acesso em: 2 nov. 2024.

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