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Entre a verdade e a aparência: a dissimulação nos negócios jurídicos

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07/03/2012 às 17:14

Resumo:


  • A simulação é um vício social do negócio jurídico que pode levar à sua nulidade, sendo caracterizada pela divergência intencional entre a vontade e a declaração, com o propósito de enganar terceiros.

  • A doutrina divide a simulação em espécies: simulação absoluta (sem intenção de produzir efeitos entre as partes) e simulação relativa ou dissimulação (com um negócio real oculto sob uma aparência diferente), podendo ser inocente (sem intuito de prejudicar) ou nocente (com intenção de causar prejuízo).

  • Os efeitos da simulação variam conforme sua natureza, podendo levar à nulidade do negócio simulado enquanto protege os direitos de terceiros de boa-fé; a prova da simulação é complexa e pode se basear em indícios e presunções, e o procedimento judicial para tratar da simulação visa obter a declaração de nulidade do negócio jurídico.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

CAPÍTULO V

A INTERPOSIÇÃO DE PESSOAS

Entre nós é extremamente vulgar a interposição de pessoas quer no contrato de compra e venda, principalmente de pais ou avós a filhos e netos, para evitar a exigência do consentimento dos outros filhos ou netos, ou o seu suprimento judicial, quer no contrato de doação que muitas vezes se dissimula sob a forma do contrato de compra e venda com interposta pessoa, quer nos contratos de arrendamento, quer nos testamentos.

José Beleza dos Santos[129]

A espécie dissimulação apresenta como modalidade subjetiva a interposição de pessoas. Nela, há um estranho entre os contratantes, com o fim de esconder o verdadeiro interessado. Este intermediário é vulgarmente conhecido por testa-de-ferro, homem de palha, empresta-nome, cabeça de pau ou fantoche.

Para Beleza dos Santos, “a interposição de pessoas consiste, assim, em alguém, a quem não pertencem os interesses em causa, praticar um ato jurídico em vez do titular desses interesses”[130].

Adverte Francesco Ferrara[131] que o conceito de interposta pessoa, na doutrina, é dominado por uma confusão inextrincável entre relações de índole heterogênea, fonte de equívocos e contradições.

A primeira distinção que se deve estabelecer é entre a interposição fictícia de pessoas, modalidade de simulação (para alguns doutrinadores, de dissimulação subjetiva) e interposição real de pessoas, configurando verdadeiro mandato sem representação. Como pontua Fernando de Sandy Lopes Pessoa Jorge, “há vantagem em separar as duas situações –interposição real e aparente– a fim de contrariar, quando possível, a tendência corrente de considerar necessariamente a interposta pessoa como um caso de simulação”[132].

Enquanto na interposição real de pessoas, vínculos decorrentes de negócios jurídicos verdadeiramente celebrados são estabelecidos entre interponente e interposto e, depois, entre interposto e o outro contraente (que pode se pretender ocultar, embora não necessariamente se pretenda), na interposição fictícia de pessoas o único vínculo decorrente de um só negócio jurídico se estabelece diretamente entre o interponente e o contraente oculto (que se pretende, necessariamente, ocultar). O interposto, na segunda hipótese, em momento algum intervém efetivamente no negócio celebrado entre interponente e contraente. Apenas empresta seu nome.

Para distinção entre as figuras e, conseqüentemente, compreensão da interposição fictícia de pessoas, é fundamental que se tracem algumas observações gerais sobre o contrato de mandato e sobre a representação, conceitos que não se confundem.

Nos termos do art. 653 do Código Civil de 2002, “opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do mandato”. O texto legal repete, não integralmente apenas por uma vírgula a menos, o art. 1.288 do Código Civil de 1916, “opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes, para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do mandato”. São características do contrato de mandato ser consensual, gratuito (embora não essencialmente), intuitu personae, bilateral (ainda que impróprio, para Clovis Bevilaqua[133], ou imperfeito, para Orlando Gomes[134]), preparatório e revogável (salvo as hipóteses previstas expressamente nos arts. 683 a 686, parágrafo único do Código Civil). Tem por objetivo permitir que um interessado (mandante), em um negócio jurídico que não pode, ou não quer realizá-lo diretamente, faça-o por intermédio de outra pessoa (o mandatário).

Na representação, o representante emite vontade em nome do representado, obrigando ou adquirindo direitos este e não aquele. Para assim proceder e com tais conseqüências em esfera jurídica alheia, deve estar investido de poder[135]. Pode ser a representação legal ou de ofício, quando o poder provém de determinação legislativa. Pode também ser convencional ou voluntária, “quando uma pessoa encarrega outra de praticar em seu nome negócios jurídicos ou administrar interesses, sendo normal para este efeito a constituição do mandato”[136]. Normal, mas não necessariamente mandato. Do mesmo modo, nem sempre que ocorrer mandato, ocorrerá a representação.

Caio Mário da Silva Pereira afirma que “nosso direito não guarda fidelidade ao Romano [...] no direito brasileiro, como no francês, no português etc., a representação é essencial e a sua falta desfigura o contrato para prestação de serviços”[137]. O mandatário, portanto, apenas executaria contrato de mandato quando age em nome do representado.

Assim também entendia Clovis Bevilaqua, como se vê na seguinte passagem do seu Direito das Obrigações: “Há mandato, quando alguem constitue outrem seu representante, conferindo-lhe poderes para que execute um acto ou um série de actos jurídicos, tendo esse representante de agir em nome e segundo a vontade do representado”[138].

Ocorre, todavia, que a própria lei reconhece o mandato sem representação, não o convertendo necessariamente em prestado de serviços, ao dispor, no art. 663 do Código Civil de 2002: “sempre que o mandatário estipular negócios expressamente em nome do mandante, será este o único responsável; ficará, porém, o mandatário pessoalmente obrigado, se agir no seu próprio nome, ainda que o negócio seja de conta do mandante”. Não inovou o legislador de 2002, visto que também o Código Civil de 1916 tinha redação semelhante, no art. 1.307: “Se o mandatário obrar em seu próprio nome, não terá o mandante ação contra os que com ele contrataram, nem estes contra o mandante. Em tal caso, o mandatário ficará diretamente obrigado, como se seu fora o negócio, para com a pessoa, com quem contratou”.

Orlando Gomes, ainda em comentários ao Código Civil de 1916, já havia observado que a representação não era essencial ao contrato de mandato, afirmando que “é possível, outrossim, a existência de mandato sem representação, como admitia o direito romano e atualmente os códigos suíço, alemão e italiano. Não se deve, pois, confundir mandato com representação”[139].

Francesco Ferrara, combatendo a idéia de o mandato ser necessariamente representativo, esclarece que mandato e representação são duas relações jurídicas diferentes, podendo ou não existir conjuntamente.  Para ele, “o mandato nasce do acordo entre o mandante e o mandatário; o poder de representação deriva da declaração unilateral de vontade do mandante, declaração que se sobrepõe e acrescenta ao contrato em que se confere o encargo, e que pode até faltar”[140]. O mandato circunscreve às relações internas (intra-partes). A representação dirige-se para o mundo (terceiros), agindo o representante sempre em contemplatio domini. O representante e os terceiros que com ele contratam têm vontade comum de que os efeitos do contrato se reflitam diretamente sobre o representado, tanto na representação legal, quanto na representação voluntária.

Como rápida (todavia, oportuna) digressão, registre-se o interessante esclarecimento de Fernando de Sandy Lopes Pessoa Jorge: “A contemplatio domini não significa propriamente actuação do representante no interesse do representado, mas sim que aquele deve revelar que realiza o acto em nome deste.” E, mais à frente, na mesma obra, “a própria origem etimológica da palavra contemplatio denota a idéia de mostrar para que se possa ver: vem do verbo contemplo ou contemplor, que por sua vez deriva de templus, como locus qui ab omni parte aspici, vel ex quo omnis pars videri potest”. Quanto ao mandato, esclarece que a palavra “corresponde fundamentalmente à idéia de alguém confiar a outrem a realização de um acto”. Não se trata, “como poderia dar a entender o significado atual do verbo mandar, de ordenar, mas sim de confiar”[141].

A figura da procuração também não se confunde com o mandato ou com a representação. É comumente empregada para designar o instrumento de concessão de poderes, podendo ser verbal ou escrita.

Fernando de Sandy Lopes Pessoa Jorge define a procuração como “acto unilateral do constituinte dirigido à pessoa ou pessoas com quem o representante deve contratar, pelo qual aquele declara antecipadamente apropriar-se dos efeitos jurídicos desses actos”[142]. Trata-se de ato unilateral destinado ao conhecimento daqueles com quem o mandatário vai contratar, não intervindo em sua contextura o representante.

Ao inserir no texto do art. 653 do Código Civil que “a procuração é o instrumento do mandato”, o legislador acabou por reforçar a confusão entre o ato unilateral (destinado ao conhecimento do outro contratante), a representação voluntária (ato unilateral compreendido como a concessão de poderes de uma pessoa a outra para que esta pratique ato no nome daquela, celebrando negócios jurídicos ou administrando interesses) e o contrato de mandato.

No negócio jurídico, se o mandatário age em nome do mandante, o mandato diz representativo. O mandatário substitui o mandante, colocando-se no lugar dele e, juridicamente, tudo se passa como se fosse o próprio mandante o contratante. Nos termos legais, “sempre que o mandatário estipular negócios expressamente em nome do mandante, será este o único responsável” (art. 663, caput, CC).

Noutro sentido, se age o mandatário em nome próprio, sem representar o mandante, assume na sua própria esfera jurídica todos os efeitos do ato que pratica. Para o outro contratante, não interessa aquele anterior contrato de mandato celebrado entre mandante e mandatário (exclusivamente intra-partes). Celebra ele contrato exclusivamente com o mandatário, ainda que este, posteriormente, por força da convenção contratual, deva retransmitir o objeto do contrato ao mandante. Nos termos legais, “ficará, porém, o mandatário pessoalmente obrigado, se agir no seu próprio nome, ainda que o negócio seja de conta do mandante” (art. 663, caput, in fine, CC).

Este último perfil era, na realidade, o adotado no direito romano para o contrato de mandato. Esclarece Fernando de Sandy Lopes Pessoa Jorge que o formalismo dos atos jurídicos não coadunavam com a idéia de projeção de efeitos dos contratos sobre pessoas diversas à relação jurídica. O mandato aparecia, assim, no direito romano, como mandato sem representação:

O mandatário, em execução do encargo, actuava em nome próprio, comprometia-se pessoalmente para com terceiros, era ele que se tornava credor e devedor; não tendo o mandante qualquer ação contra a pessoa com quem o mandatário contratava, nem esta contra aquele, não se estabeleciam entre eles relações directas[143].

Esta singular característica do mandato sem representação o torna funcional, permitindo realizar por outrem certo negócio jurídico com a projeção dos efeitos sobre o verdadeiro interessado.

Mandatário sem representação não precisa revelar o nome do mandante. E muitas vezes o objetivo desta espécie de contrato é exatamente a ocultação da figura do mandante. Toma o mandatário, então, lugar no negócio como único destinatário dos seus efeitos. “Trata-se muitas vezes de uma ocultação inocente com o intuito de evitar especulações, de conseguir condições mais justas para um contrato, de manter o segredo do negócio ou de se esconder um benefício a outrem”[144].

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Pode acontecer, diversamente, que esta ocultação do nome do mandante sequer ocorra, como por exemplo, “se o preço é pago no próprio acto, ou mesmo por preferir [o contratante] ficar ligada à interposta pessoa, cuja honestidade e solvabilidade lhe inspiram maior confiança do que o interessado real”[145].

Neste ponto, é importante destacar que o Código Civil brasileiro de 2002 passou a tratar o contrato de comissão como típico, o regulamentando nos arts. 693 a 709. Nos termos do art. 693, “O contrato de comissão tem por objeto a aquisição ou a venda de bens pelo comissário em seu próprio nome, à conta do comitente”. Para Orlando Gomes, “pelo contrato de comissão obriga-se alguém a vender ou comprar bens em seu próprio nome, mas por conta de outrem, em troca de certa remuneração. A comissão é mandato sem representação”[146].

O contrato de comissão é essencialmente oneroso, tendo o comissário direito à remuneração ajustada, e, na falta de estipulação, à que resultar dos usos correntes no lugar (art. 701, CC). Ao contrato de comissão são aplicáveis, no quer couber, as regras sobre o mandato, nos termos do Código Civil (art. 709, CC).

Tem-se, de qualquer forma, que “este aspecto, ligado ao fraccionamento da operação econômica unitária em dois actos jurídicos distintos (mandato e negócio mandado), cria frequentemente a sensação de que se trata de uma operação simulada e como tal ilícita”[147].

A interposição real de pessoas, em si, não é ilícita. Poderá ser ilícita, contudo, caso viole alguma proibição legal, do que seria um exemplo, burlar incapacidades de qualquer natureza. A sanção legal, no caso, é a mesma da violação direta da proibição. Como leciona Francesco Ferrara, “a lei quer que os seus mandamentos sejam observados e infringe o mesmo castigo contra toda sorte de transgressões”[148].

Ocorrendo a efetiva transmissão de direitos e obrigações entre o interponente e contratante será necessário posteriormente um (ou vários) negócio(s) translativo(s) para que o negócio passe da esfera jurídica do interposto para do mandante.

A doutrina clássica vê no caso dupla transferência dos efeitos dos negócios praticados pelo mandatário. Do interponente para o interposto (mandatário) e deste para o outro contratante ou do contratante para o interposto (mandatário) e deste para o interponente.

Uma formulação especial desta modalidade foi elaborada por Francesco Ferrara, por meio da Teoria da Transmissão Fiduciária. De acordo com ela, o mandante investiria o mandatário na propriedade da coisa a alienar por meio de um negócio fiduciário, “por força do qual, por um lado, a interposta pessoa fica comprometida a agir no interesse doutrem, a não usar em seu próprio benefício dos direitos adquiridos, (e) a restituir estes ao mandante ou a um destinatário convencionado”[149].

Os negócios fiduciários, para Francesco Ferrara, distinguem-se dos simulados, precisamente por que aqueles “são sérios e efetivam-se realmente entre as partes com o fim de obter um efeito prático determinado. Os contraentes querem o negócio com todas as suas conseqüências jurídicas, ainda que se sirvam dele para uma finalidade econômica diversa”[150]. Os negócios fiduciários produzem a transferência plena do direito, tornando o fiduciário proprietário perante todos.

Nesta teoria, se para alienar é necessário um negócio fiduciário, para adquirir já não seria necessário. Na aquisição, a propriedade do mandatário resulta do próprio objeto do contrato de mandato.

Sobre a distinção entre negócio fiduciário e o simulado, ensina Pontes de Miranda:

NEGÓCIOS JURÍDICOS FIDUCIÁRIOS E SIMULAÇÃO. – Os negócios jurídicos de fidúcia e outros atos jurídicos fiduciários são queridos. Não são aparentes: são. Em verdade, são plus: por eles, transmite-se direito para fim econômico que não exigiria tal transmissão. O fiduciário é proprietário em frente a todos; apenas a sua propriedade não é eficaz quanto ao fiduciante (relatividade da eficácia, não da propriedade). O fiduciante fia-se no fiduciário. Não há negócio ou ato jurídico aparente: há negócio jurídico, que é. Por ele, cria-se relação jurídica de fidúcia, que obriga o fiduciário a destinar o bem fiduciário ao fim da fidúcia. As espécies mais notáveis são a transmissão abstrata para segurança (a abstrakte Sicherungsubereignung) e a compra-e-venda fiduciária. Nem aquela nem essa é ato jurídico aparente ou simulado. Por isso é, e não é anulável conforme os arts. 102, 104 e 105[151].

Há corrente, todavia, para a qual a admissibilidade do negócio fiduciário, ou pelo menos a produção de seus efeitos naturais é questionada. Encabeça os que o inadmitem José Beleza dos Santos, sob argumento de se voltarem especificamente a fim prático que não aquele que determina e explica sua regulamentação jurídica. “Entre a causa, razão de ser do ato, e os efeitos que o direito lhe atribui, há, portanto, uma divergência que mostra bem a incompatibilidade estrutural do contrato positivo de transmissão, com o pacto fiduciário que o desfigura”[152]. É desta contradição, conclui José Beleza dos Santos, que resulta serem as conseqüências jurídicas do negócio fiduciário inadmissíveis.

Fernando de Sandy Lopes Pessoa Jorge, por sua vez, sustenta a completa inexistência, na hipótese, de negócio fiduciário ou qualquer outro análogo. Atendendo à vontade do mandante e do mandatário, ocorreria transferência direta do bem. Se o mandatário assume pessoalmente as obrigações, cabendo a ele cumpri-las, caso não o faça o mandante, no plano dos efeitos reais, “o direito que o mandatário aliena, em execução do mandato, passa recta via ao adquirente, assim como o que adquire, se transfere ao mandante, sem se inserir, em momento algum na sua esfera jurídica”[153]. Esta concepção qualifica os atos do mandatário como atos de administração de interesses (gerência em geral).

A doutrina de J. M. de Carvalho Santos, no sentido da existência no direito brasileiro dos negócios fiduciários, aclara o entendimento sobre o tema. O autor delimita os contornos, bem como realiza a distinção entre as figuras da simulação e do negócio fiduciário, nos seguintes termos:

Negócios fiduciários. Embora tenham alguma semelhança com os simulados deles diferem, por que são realmente concluídos pelas partes, não aumentando, porém, o patrimônio do adquirente, justamente porque visam a outros fins. No negócio fiduciário, sem dúvida, verifica-se a transferência do direito, mas é subtraído ao adquirente o exercício de determinada faculdade, conservando, pois, intato o conteúdo do direito. É o que se dá, por exemplo, com o sujeito que adquire a plena titularidade do direito, mas se obriga para com o transmitente a não exercitar determinada faculdade: adquire, v.g., a propriedade, mas se obriga a não usar da coisa ou a não aliená-la, ou a restitui-la, ou ainda, a transferi-la a outrem. É uma limitação fundada, como observa Barassi, somente sobre o honesto e escrupuloso cumprimento desta obrigação de abstenção; não atinge a ausência [sic] ou substância do direito e repousa sobre a confiança no adquirente (Inst., cit., §45)[154].

Caio Mário da Silva Pereira pretendeu, em seu projeto de Código de Obrigações, dar tipicidade ao contrato de fidúcia. O Código Civil de 2002 não o tipificou, apenas se atendo à compra e venda fiduciária, com a finalidade de garantia (arts. 1.361 a 1.368-A, sem correspondência no Código Civil de 1916). 

De acordo com Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald,

Como negócio jurídico bilateral, perfaz-se a alienação fiduciária quando o credor fiduciário adquire a propriedade resolúvel e a posse indireta de bem móvel (excepcionalmente de imóvel), em garantia de financiamento efetuado pelo devedor alienante –que se mantém na posse direta da coisa –, resolvendo-se o direito do credor fiduciário com o posterior adimplemento da dívida garantida[155].

Antes da entrada em vigor do Código Civil de 2002, o assunto era tratado, nos aspectos material e processual, pelo Decreto-Lei n° 911, de 1° de outubro de 1969. Observam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que a incorporação da disciplina de direito material da propriedade fiduciária pelo Código Civil esvazia, mas não revoga de todo o Decreto-Lei n° 911/69, pois “a normatização instrumental do processo de busca e apreensão lá se mantém presente, tendo, porém, sofrido relevantes alterações pela Lei n° 10.931/04”[156].

Segundo Caio Mário da Silva Pereira, na etiologia, o negócio fiduciário se desdobra em dois momentos, sendo um real e ostensivo e outro pessoal e secreto. Neste se formula a ressalva, contendo a obrigação do fiduciante retransferir a coisa adquirida, no prazo e condições estipulados[157].

A liberdade de estipular contratos atípicos, conferida às partes pelo art. 425 do Código Civil[158], faz admissível, no direito brasileiro, o negócio fiduciário. Assim entendia o STJ, mesmo na vigência do Código Bevilaqua, como se vê na ementa do Recurso Especial n° 155.242/RJ, de relatoria do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira,

DIREITO CIVIL. NEGÓCIO FIDUCIÁRIO. SIMULAÇÃO. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL COM PROMESSA DE DEVOLUÇÃO. PAGAMENTO DE PARTE DO FINANCIAMENTO PELO VENDEDOR. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. NEGÓCIO REAL E NÃO APARENTE. ARTS. 102, 103 E 104 DO CC. VALORES JURÍDICOS. HERMENÊUTICA. RECURSO PROVIDO.

I – O negócio fiduciário, embora sem regramento determinado no direito positivo, se insere dentro da liberdade de contratar própria do direito privado e se caracteriza pela entrega de um bem, geralmente em garantia, com a condição, verbi gratia, de ser devolvido posteriormente.

II – Na lição de Francesco Ferrara, “o negócio fiduciário, como querido realmente, produz todos os efeitos ordinários, ainda que entre si os contratantes assumam a obrigação pessoal de usar dos efeitos obtidos unicamente para o fim entre eles estabelecido” (A simulação dos negócios jurídicos, São Paulo: Saraiva, 1939, p. 76).

III – No negócio simulado há uma distância entre a vontade real e a vontade manifestada, ao contrário do negócio fiduciário, no qual a vontade declarada corresponde à realidade.

IV – No cotejo entre dois valores protegidos pelo Direito, cabe ao julgador prestigiar o de maior relevo e que no caso se manifesta com maior nitidez. (Sem grifos no original)[159].

Como exceção à liberdade de estipular contratos atípicos, devem-se destacar, todavia, os contratos relativos aos negócios reais.

Pelo princípio da taxatividade, os direitos reais são listados em número fechado na lei, em especial no art. 1.225 do Código Civil (mas não exclusivamente nele). Esclarecem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que, “destinando-se a operar contra toda a coletividade, não pode qualquer direito real ser reconhecido juridicamente se não houver prévia norma que sobre ele faça previsão”[160], ao que aduzem que a taxatividade “importa considerar que fora do catálogo legal exclui-se a possibilidade de a autonomia privada conceder direitos reais que produzam conseqüências erga omnes”[161].

Mesma opinião é a de Orlando Gomes, segundo o qual, malgrado alguma doutrina divergente, domina no Brasil o entendimento de que “a constituição dos direitos reais obedece ao sistema do numerus clausus, ao contrário da formação dos contratos, na qual, vigorando o princípio da liberdade de estruturação do conteúdo, prevalece o sistema do numerus apertus”[162].

De qualquer forma, é de se notar que o Código Civil de 2002, não tendo adotado expressamente nenhuma das teorias sobre o negócio fiduciário, não deixou de disciplinar, ainda que modo incidental, o assunto. Assim, nos termos do art. 668, “o mandatário é obrigado a dar contas de sua gerência ao mandante, transferindo-lhe as vantagens provenientes do mandato, por qualquer título que seja”, e do art. 670: “pelas somas que devia entregar ao mandante ou recebeu para despesa, mas empregou em proveito seu, o mandatário pagará juros, desde o momento em que abusou”.

Totalmente diversa da interposição real de pessoas, é a chamada interposição fictícia de pessoas. Nesta, o nome dado pela doutrina esclarece aspecto fundamental: na realidade não ocorre interposição alguma. O contrato é celebrado diretamente entre os interessados, sem que o interposto tenha qualquer intervenção efetiva no negócio. Ante a figura, Fernando de Sandy Lopes Pessoa Jorge fez a pergunta: “mas o que é, afinal, a interposição fictícia?”, à qual respondeu nos seguintes termos:

A interposição fictícia verifica-se quando um negócio jurídico é realizado simuladamente com uma pessoa, dissimulando-se nele um outro negócio (real), de conteúdo idêntico ao primeiro, mas celebrado com outra pessoa. A declara vender determinada coisa a B, que manifesta a sua vontade de a comprar; mas sob esta aparência, esconde-se o verdadeiro contrato, não entre A e B, mas entre A e C[163].

Entre o testa-de-ferro e um dos contratantes não ocorre contrato de mandato, uma vez que o acordo entre eles não tem por objeto a prática de atos jurídicos. Também não é o cabeça de pau representante de um dos contraentes. Celebrado o contrato entre as partes, o homem de palha ficará apenas titular aparente, titular nominal, com o objetivo de subtrair ao conhecimento de terceiros o nome de uma das partes envolvida no contrato ou de violar a lei.

Diferentemente do que ocorre na interposição real de pessoas, na interposição fictícia não há efetiva cooperação jurídica do interposto, pelo que afirma Francesco Ferrara:

Entre o contratante secreto e a interposta de pessoa só se dá uma relação secundária, em virtude da qual a interposta pessoa se obriga a cooperar no engano, emprestando seu nome, e, eventualmente, a não abusar da sua qualidade aparente, que, por efeito reflexo doutras normas, pode produzir uma modificação jurídica[164].

Como a interposta pessoa não intervém no contrato, a ela não ocorre transmissão de direitos e obrigações, que são atribuídos diretamente nas esferas dos verdadeiros contratantes. Assim, para a formação do contrato, somente será necessária a intervenção jurídica dos dois verdadeiros contratantes, sendo o interposto completamente estranho à relação jurídica estabelecida. O interposto, “quando muito presta-se a uma simples cooperação material, que pode consistir em comparecer pessoalmente como parte contratual para tornar perfeita a mise-en-scène e repetir, mecanicamente, a declaração que lhe posta na boca”[165].

Francesco Galgano, que reputa o pacto simulatório elemento essencial no contrato simulado, entende que o acordo para simulação relativa por interposição fictícia de pessoas é um acordo a três, já que participam na contra-declaração seja as partes do contrato simulado, seja o terceiro interponente.

Não basta um acordo a dois, entre o interposto e o interponente: é preciso a participação do terceiro ou, quando menos, a sua adesão sucessiva ao acordo. O contraente direto do interposto, se não fosse partícipe da contra-declaração, poderia exigir do interposto, no lugar do interponente, a execução do contrato (por exemplo, o pagamento do preço de venda)[166].

A interposição fictícia de pessoas é simulação relativa e não absoluta,  porque sob a aparência de um negócio (o fictício) tem-se um negócio verdadeiro, escondido. A dissimulação nesta espécie exige que, além dos contratantes, também o interposto saiba os termos do acordo simulatório, distinguindo-se (por esta ciência) o testa-de-ferro do vulgarmente chamado laranja.

Os fins conducentes à utilização da dissimulação subjetiva podem ser, como de resto em toda simulação, lícitos (honestos ou inocentes) ou ilícitos (fraudulentos ou nocentes).

Destaca Fernando de Sandy Lopes Pessoa Jorge que o mais característico nesta interposição é o seu caráter subjetivo. A dissimulação do negócio se dá por meio de um dos sujeitos e não no conteúdo do contrato[167].

José Beleza dos Santos sintetiza a interposição fictícia de pessoas por meio dos elementos necessários à sua existência:

1 Que haja duas ou mais pessoas a quem interesse a realização de um determinado ato jurídico;

2 Que todos ou alguns dos interessados não queiram ou não possam realizar diretamente realizar;

3 Que exista um intermediário por meio de quem o ato se pratique e com quem os diretamente interessados estabeleçam relações jurídicas;

4 Que esse intermediário não tenha interesse próprio na realização do ato em que intervém como parte[168].

Exemplo de interposição fictícia de pessoas seria a que visa burlar a regra do art. 496 do Código Civil, segundo a qual “é anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido”. Deste modo, pai, querendo celebrar com um dos filhos contrato de compra e venda sem consentimento de outros filhos e, por não poderem efetuar o contrato diretamente, se utilizam de um intermediário (fictício) que apareça como adquirente do pai para vender ao filho, tendo o contrato se dado, na realidade, imediata e diretamente entre pai e filho[169].

A disciplina de (in)validade dessa simulação é a geral. Em seus termos, o Código Civil afirma ser nulo o negócio simulado. O dissimulado, contudo, subsistirá se válido for, na forma e na substância. Da mesma forma, terceiros de boa-fé que contratarem com o interposto, têm ressalvados seus direitos em face dos contraentes do negócio jurídico simulado. É de se observar, no caso, que o interposto nem mesmo chegou a ter em sua esfera jurídica direitos e obrigações decorrentes do negócio simulado.

Estabelecida a necessária diferenciação entre as interposições de pessoas – real e fictícia – e firmado que não são espécies de dissimulação, apenas o sendo a fictícia, é pertinente anotar que casos sejam inocentes, não causando prejuízos a terceiros (ainda que apenas em potencial) invalidade alguma ocorrerá. Sendo ilícitas, por outro lado, o dispositivo legal que fundamenta sua invalidade é diverso.

Tem-se assim, que a dissimulação subjetiva, quando nocente, considera-se nula, nos termos do art. 167, § 1°, I do Código Civil, por “aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente conferem, ou transmitem”. Já na hipótese de interposição real de pessoas, por meio de negócios que buscariam resultado proibido, configurar-se-ia fraude à lei. Nos termos do art. 166, VI do Código Civil: “é nulo o negócio jurídico quando: [...] VI- tiver por objetivo fraudar lei imperativa”.

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Sobre o autor
Alex Lamy de Gouvea

Bacharel em Direito (UFMG). Especialista em Direito Processual (PUC Minas). Concluiu o Curso de Formação de Oficiais na Academia de Polícia Militar de Minas Gerais (curso equivalente aos superiores de graduação). É oficial da reserva não-remunerada da PMMG. Analista Judiciário-Área Judiciária na Justiça Federal de Primeiro Grau em Minas Gerais. Professor voluntário de Direito Civil na UFMG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOUVEA, Alex Lamy. Entre a verdade e a aparência: a dissimulação nos negócios jurídicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3171, 7 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21224. Acesso em: 25 dez. 2024.

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