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Entre a verdade e a aparência: a dissimulação nos negócios jurídicos

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07/03/2012 às 17:14
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CAPÍTULO VI

EFEITOS, LIMITES, PROVA E PROCEDIMENTO JUDICIAL NA SIMULAÇÃO

É evidente, por um lado, que nem toda a dissimulação social tem o propósito de acobertar a prática de consciente de um mal; mas seria irrealista supor que isso jamais aconteça, ou seja, que pelo menos uma parte dela não tenha precisamente esse fim.

Eduardo Giannetti[170]

Estabelecidos os contornos da simulação nas suas espécies e nas modalidades do negócio dissimulado, o presente capítulo pretende abordar três aspectos polêmicos envolvendo o tema: os efeitos do negócio dissimulado entre os contratantes e em face de terceiros, os limites no uso da dissimulação e o procedimento judicial relativo ao negócio simulado, ora para invalidá-lo, ora exatamente para fazê-lo subsistir.

6.1 Efeitos e limites da dissimulação

A doutrina reconhece que em todo o estudo sobre a simulação é grande a controvérsia relativa aos seus efeitos.

Na simulação absoluta inocente, afirmam Francesco Ferrara e José Beleza dos Santos, existindo divergência entre a vontade real e a declaração, essa declaração é em princípio ineficaz e, portanto, nulo o ato jurídico nela baseado, por falta da vontade, elemento essencial ao negócio jurídico. Pontua Francesco Ferrara que “o negócio absolutamente simulado é nulo. Afastada a aparência falaz que o demonstrava sério, nada mais resta dele; quebrou-se o encanto e a ilusão desapareceu”[171]. Ao que aduz José Beleza dos Santos que, “se existe divergência entre a vontade real e a sua declaração, essa declaração é em princípio ineficaz e, portanto, nulo o ato jurídico nela baseado, por que lhe falta um elemento essencial”[172].

Para Pontes de Miranda, o negócio jurídico puramente aparente, ou em que houve simulação absoluta e inocente não é, inexiste. “Seria equívoco dizê-lo nulo e dar-lhe o mesmo trato que ao ato jurídico em que há simulação nocente. Aquele, pois que não é, não tem qualquer eficácia”[173]. Conseqüentemente, se uma das partes violar o pacto simulatório, no sentido de tentar prevalecer a relação jurídica simulada, inexistente, não há obstáculo em que a outra obtenha declaração judicial de inexistência desta relação. Neste sentido já houve manifestação da jurisprudência:

De acordo com o Código Civil, a simulação gera nulidade do negócio simulado. Nada impede, outrossim, que a simulação seja alegada pelos próprios simuladores em litígio ou reconhecida de ofício pelo Juízo. Assim sendo, o negócio simulado não tem qualquer valor e não produz efeitos, porquanto o ato nunca existiu[174].

As partes realizam, na simulação absoluta inocente, uma aparência negocial para fins não-negociais. Da realização dessa aparência não resultam quaisquer efeitos jurídicos[175]. Para Custódio Miranda, se a partes criam esta aparência sem alterarem suas esferas jurídicas, a lei lhe é indiferente, ao contrário do que ocorre nas simulações fraudulentas.

Heleno Tôrres discorda deste posicionamento doutrinário. Para o autor, embora o entendimento de Francesco Ferrara tenha granjeado muitos críticos, foi o que prevaleceu no Código Civil brasileiro, na sua versão atual, em especial nos textos dos arts. 111 e 167, os quais aderem claramente às teses do italiano, por conseguinte,

Deve ser excluído do discurso jurídico qualquer pretensão de qualificar o negócio simulado como inexistente ou ineficaz. Não se trata de negócio inexistente pela óbvia do seu existir como fato jurídico negocial verossímil ao tipo negocial correspondente, ao que a tutela dos terceiros de boa-fé funda-se exatamente na prática de verdade que este suscita no mundo exterior. E não é ineficaz, porquanto produza todos os efeitos aos quais se destina[176].

Embora a doutrina divirja entre a inexistência e a nulidade, se pacificou a possibilidade da simulação absoluta inocente ser alegada pelo terceiro interessado ou mesmo por uma das partes, visando exatamente obter declaração judicial de inexistência/nulidade da relação jurídica. As partes, na hipótese, não agiram com a turpitudo, ou seja, a torpeza, a fealdade, a desonra a impedi-las de obter a declaração judicial requerida.

Noutro giro, em regra, o negócio simulado de forma absoluta ou o dissimulado, sendo nocente ou fraudulento, vincula as partes à sua declaração tal como terceiros o vêem. Nestes casos, a vontade real dos simuladores é irrelevante, em regra. Como esclarece Ferrara:

É certo que o direito deve permitir que se desenvolva livremente a autonomia privada e, portanto, tem que atender à vontade do agente, mas não é menos verdadeiro que se deve fundir e combinar este princípio com os interesses opostos da sociedade, que reclama segurança nas relações comerciais e não quer ver atraiçoadas as legítimas expectativas dos outros indivíduos[177].

Nulo ex vi legis, nos termos do art. 167, caput, do Código Civil, para parte da doutrina os contratantes nada poderiam alegar em juízo quanto à simulação do negócio, em litígio de um contra o outro. Embora inexista regra expressa neste sentido, se baseiam os autores na máxima latina “nemo auditur propriam turpitudinem allegans” ou “ninguém pode fazer valer em juízo um direito alegando a própria torpeza”.

Assim decidiu o TJMG, para contrato examinado sob a égide do Código Bevilaqua:

SIMULAÇÃO - EMPRÉSTIMO ACOBERTADO POR CONTRATO DE compra e venda DE IMÓVEL JÁ PERTENCENTE AOS COMPRADORES - OPERAÇÃO REALIZADA ENTRE PESSOA FÍSICA E factoring - PAGAMENTO PARCIAL - RATIFICAÇÃO DO ATO PRATICADO - ANULAÇÃO - IMPOSSIBILIDADE DE ARGÜIÇÃO POR QUEM PARTICIPOU DO NEGÓCIO SIMULADO. Se a parte consente em assinar contrato de compra e venda com reserva de domínio cujo objeto é um imóvel que já é de sua propriedade, resta clara a simulação praticada com vistas a acobertar empréstimo contraído de empresa factoring não autorizada a negociar títulos com pessoas físicas. Se foram efetuados vários pagamentos relativos ao empréstimo contraído e acobertado por contrato simulado de compra e venda, do qual tinha plena ciência, nos termos dos arts. 148, 150 e 151 do Código Civil de 1916, aplicáveis à espécie, acaba por ratificar a simulação de quem a participou, não estando autorizada a pleitear sua anulação, valendo-se da própria torpeza[178].

Na mesma esteira também entendeu a 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Distrito Federal:

Civil – Processual Civil – Ação de indenização por danos morais- simulação de negócio jurídico com o intuito de lesar co-herdeiras – negócio ilícito e viciado por nulidade absoluta, envolvendo herança de pessoa viva – Princípio geral do direito pelo qual ninguém pode alegar a sua própria torpeza para dela obter proveito – Dano moral não configurado – indenização incabível – recurso conhecido e provido – sentença reformada[179].

No julgamento deste recurso, o Juiz-relator asseverou que a torpeza não contaminaria apenas o próprio negócio jurídico em que foi manejada, mas todo o contexto fático a ele inerente, pelo princípio nemo auditur propriam turpiditudinem suam allegans. E que, tendo a autora agido de forma maliciosa, com má-fé, sua torpeza não lhe poderia vir a beneficiá-la, aduzindo ainda que:

Nenhum simulador confesso pode alegar ter agido de boa-fé no auxílio a outro simulador, e não pode pretender forrar-se em vantagem sob a alegação de que esse outro simulador o acusou de ter agido precisamente da maneira como o fez. Anuir a isso equivaleria a se tornar o Judiciário conivente com uma indignidade que afronta as bases éticas do direito[180].

Ensina José Beleza dos Santos que “ocorrendo divergência entre a vontade e a declaração, decorrente de ato intencional, para aparentar o que realmente não quis, a boa-fé e a equidade impediriam ao declarante de argüir a nulidade. A ordem jurídica não pode tutelar interesse indigno de proteção”[181].

Fundamenta tal entendimento a disciplina do abuso de direito antecedente, decorrente de ato das partes no negócio viciado original. Excedendo-se no exercício do direito subjetivo de contratar, as partes extrapolam os limites do princípio da autonomia privada e, pelo negócio jurídico simulado, acabam por causar danos a terceiros, excedendo a razoabilidade. “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução –expressa o art. 422 do Código Civil– os princípios de probidade e boa-fé”.

Nos termos do art. 187 do Código Civil, “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Estes limites do uso da dissimulação se põem não a priori, por meio de cláusula legal terminantemente proibitiva, mas na observância do princípio da boa-fé na conclusão e execução do contrato, ou seja, como conseqüência ou a posteriori. É o que Menezes Cordeiro denomina primazia da materialidade subjacente. Para ele,

A ideia que aflora na regra da primazia da materialidade subjacente é de fácil exteriorização: o Direito visa, através dos seus preceitos, a obtenção de certas soluções efectivas: torna-se, assim, insuficiente a adopção de condutas que apenas na forma correspondam aos objectivos jurídicos, descurando-se, na realidade, num plano material. A boa-fé exige que os exercícios jurídicos sejam avaliados em termos materiais, de acordo com as efectivas conseqüências que acarretam.[182]

A boa-fé exprime valores fundamentais ao sistema jurídico, sendo assim, “dizer que, no exercício dos direitos, se deve respeitar a boa-fé, equivale a exprimir a ideia de que, nesse exercício, se devem observar os vectores fundamentais do próprio sistema que atribui os direitos em causa”[183].

A boa-fé, leciona ainda Menezes Cordeiro, apresenta duas feições: uma objetiva, que “actua como uma regra imposta do exterior e que as pessoas devem observar”, consistente em “princípios, regras, ditames ou limites por ela comunicados ou, simplesmente, para um modo de atuação dito de boa-fé” e uma feição subjetiva, desdobrado em dois sentidos diversos: um puramente psicológico, para o qual “estaria de boa-fé quem pura e simplesmente desconhecesse certo facto ou estado de coisas, por muito óbvio que fosse” e um sentido ético, de acordo com o qual “só estaria de boa-fé quem se encontrasse num desconhecimento não culposo: noutros termos: é considerada de má fé a pessoa que, com culpa, desconheça aquilo que deveria conhecer”[184].

É no contexto das feições subjetivas e objetivas da boa-fé que se deve interpretar o art. 187 do Código Civil, segundo o qual o exercício manifestamente excessivo de limites impostos pela boa-fé, consiste na prática de ato ilícito, ou seja, em abuso de direito.

Consistindo em ato ilícito, a invocação deste mesmo exercício abusivo para satisfação de interesses próprios, esbarraria na fórmula tu quoque, que segundo Menezes Cordeiro traduz “com generalidade, o aflorar de uma regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderia, sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído”[185].

O abuso do direito, afirma Clovis Bevilaqua, é “acto illicito, que consiste no exercício irregular ou anormal do direito, de modo a prejudicar alguem”[186]. Visando afastar sua ocorrência, esclarece Pedro Baptista Martins, é que se observa haver “uma constante na legislação de todos os povos e que se tem manifestado em todos os momentos históricos: a preocupação de prevenir ou reprimir a atividade maliciosa ou fraudulenta dos litigantes”[187].

Na compreensão do abuso do direito e da fórmula tu quoque, é que se pode concluir serem feridos o sentimento de justiça e eticidade uma pessoa desrespeitar uma norma legal e depois comparecer a exigir de outro seu acatamento. É o que se registraria freqüente caso a nulidade do negócio acarretasse o completo retorno das partes ao status quo ante, sem qualquer ressalva de situações particulares.

Bem verdade que o direito atual não mais prevê regra correspondente à do direito anterior, segundo o qual, nos termos do art. 104 do Código Civil de 1916, “tendo havido intuito de prejudicar a terceiros ou infringir preceito de lei, nada poderão alegar, ou requerer os contraentes em juízo quanto à simulação do ato, em litígio de um contra o outro, ou contra terceiros”.

Por outro lado, há muito a hermenêutica reconhece aos princípios caráter fundante e precedente hierarquicamente às regras legais. A lei, observa Vasconcellos Naves, “é tão-somente um ‘meio’ –sempre imperfeito– de buscarmos atingir um dos mais nobres ideais éticos da humanidade, a Justiça”[188].

Sopese-se, de qualquer modo, que no Código Civil anterior, a simulação se constituía causa de anulabilidade. No Código de 2002, o negócio simulado, pela dicção legal, é nulo. Na observação de Sílvio Venosa:

Questão a ser considerada era aquela levantada pelo art. 104 do Código antigo. Por esse dispositivo, na simulação maliciosa, os simuladores não podiam alegar o vício em juízo, um contra o outro, ou contra terceiros, numa aplicação do princípio pelo qual a ninguém é dado alegar a própria torpeza. A doutrina e a jurisprudência sempre resistiram a esse entendimento. Portanto, a contrario sensu, a simulação inocente podia ser alegada pelos agentes, porque nesse caso, a lei não proibiu. No sistema do Código Civil de 2002, desaparece definitivamente a restrição, porque a simulação se situa no plano de nulidade[189].

Analisando o tema no direito português, Domingues de Andrade esclarece que a “nulidade dos negócios simulados poder ser argüida pelos próprios simuladores é doutrina pacífica desde há bastante, quanto à simulação inocente”. Já quanto à simulação fraudulenta, expõe que a mesma doutrina está hoje consagrada no Assento 10-V-1950, “mas em face da lei o ponto tem sido muito controvertido, aliás, não injustificadamente”. E prossegue afirmando que a opinião dominante vota pela arguibilidade da simulação fraudulenta entre os próprios simuladores. Registra, contudo, que “tem havido quem propugne o ponto de vista contrário”[190].

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A questão já foi analisada algumas vezes pelos nossos tribunais superiores, em especial o STJ. Neste já se concluiu pela possibilidade de argüição da simulação fraudulenta pelos próprios simuladores contratantes mesmo na vigência do Código Civil de 1916. Em voto no EDcl no AgRg no Recurso Especial n° 402.925-MG, o Ministro Humberto Gomes de Barros (relator) afirmou que “o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que, mesmo na vigência do Código Bevilaqua, os contratantes podem argüir em juízo a nulidade do negócio simulado”. Acolhidos por unanimidade os embargos de declaração, nos termos do voto do Ministro Relator, a decisão ficou assim ementada:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. VÍCIOS EXISTENTES. ACOLHIMENTO.

Existentes os vícios apontados pelo embargante, merecem acolhimento os embargos declaratórios.

SIMULAÇÃO. ARGÜIÇÃO. CONTRATANTE. POSSIBILIDADE. ART. 158 DO CÓDIGO BEVILAQUA. ATUAÇÃO DE OFÍCIO DO JUIZ. IMPOSSIBILIDADE. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADA.

1. As partes envolvidas na simulação podem argüir a nulidade do negócio. Precedentes.

2. O Art. 158 do Código Civil impede o enriquecimento sem causa, mas não autoriza atuação de ofício do juiz, no sentido de extrapolar os limites da lide e emitir sentença além do pedido, especialmente quando os interesses envolvidos na demanda são exclusivamente privados.

3. Nega-se seguimento a Recurso Especial interposto pela alínea “c” em que não se demonstra a divergência, nos moldes exigidos pelo Art. 255 do RISTJ[191].

Um dos precedentes mencionados na decisão foi baseado na observação do Ministro Eduardo Ribeiro, no voto-vista no Recurso Especial n° 2.216-SP:

Dentro deste quadro, tenho como admissível alegar-se simulação, sem contrariar o objetivo a que visa atingir o questionado art. 104 que, diga-se de passagem, consagra norma que a doutrina considera superada. Fraudulenta ou não, a simulação – esta a atual tendência – há que se admitir possa qualquer dos partícipes pretender a declaração da verdadeira natureza do ato, ressalvando-se apenas terceiros de boa-fé. Essa a sistemática do Anteprojeto do Código Civil. Enquanto não ocorre a mudança legislativa, não se impede sejam introduzidos temperamentos, especialmente quando esteja em causa a salvaguarda de outra norma de ordem pública, como acentuado[192].

Em decisão mais recente, embora discutindo negócios jurídicos entabulados quando da vigência do Código Civil de 1916 (cujo art. 104 foi aplicado, acarretando impossibilidade de alegação da simulação por um dos contratantes), a Ministra Nancy Andrighi destacou o seguinte:

É importante salientar que sob a Égide do Código Civil ora vigente a solução seria outra, pois, de acordo com o disposto no art.167, é nulo o negócio jurídico simulado, ressalvada a validade do ato dissimulado, se válido for na substância e na forma, sendo que essa nulidade poderá ser alegada por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público, e deverá ser pronunciada, de ofício, pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda que a requerimento das partes[193].

Mesmo quando a vedação era expressa, o STJ ao se manifestar sobre a questão, acabou adotando uma posição salomônica. Apreciando um caso de simulação, o STJ se manifestou no sentido de que “no cotejo entre dois valores protegidos pelo Direito, cabe ao julgador prestigiar o de maior relevo e que no caso de manifesta com maior nitidez”[194]. No mesmo Recurso Especial, no voto-vista do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, vê-se a seguinte manifestação:

O que na verdade aconteceu foi uma simulação por parte dos dois celebrantes em prejuízo do Sistema Financeiro de Habitação e da Caixa Econômica Federal, isto é, prejuízo de interesse público, com fim ilícito, de conseguir mediante a fraude, a vantagem do recebimento do FGTS e a vantagem do financiamento parcelado, em longo prazo, o que não conseguiram de outro modo. Parece-me que houve negócio simulado e não simplesmente fiduciário, como se depreende das citações feitas pelo eminente relator. O objetivo dos dois foi esconder uma realidade. Como ambos agiram mal, cabe ao juiz dizer quem pecou mais[195].

Baseou-se o tribunal na vedação ao enriquecimento indevido, que acabaria se verificando em diversas oportunidades caso se proibisse, em absoluto, a alegação da simulação pelos contratantes. Assentou o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira ser prevalente no direito brasileiro o repúdio ao enriquecimento sem causa, sobretudo o ilícito, em detrimento da impossibilidade de alegação da simulação maliciosa pelas partes.

De todo modo, ainda que declarado nulo o negócio jurídico, alguns efeitos positivos serão observados, já que a lei ressalva os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contratantes do negócio jurídico simulado. Para os terceiros de boa-fé, a eficácia do negócio subsistirá, embora haja uma nulidade anterior que, em regra, deveria inquinar todos os atos praticados posteriormente na mesma cadeia de vínculos formada a partir daquele o negócio nulo anterior.

Também nesta seara, é basilar o entendimento da disciplina do abuso de direito antecedente, decorrente de ato das partes no negócio viciado original. Mais uma vez é a compreensão de que o excesso no exercício do direito subjetivo de contratar extrapola os limites do princípio da autonomia privada que fundamenta a ressalva da situação do terceiro mesmo em face de um negócio jurídico nulo.

Neste ponto, é importante entender quem é este terceiro que vê seus direitos ressalvados.

Domingues de Andrade esclarece que

São terceiros, para efeitos de simulação, quaisquer pessoas que não sejam os simuladores, nem seus herdeiros (ou legatários), a menos que (quanto a estes) se trate de herdeiros legitimários que venham a impugnar o negócio simulado para defender as suas legítimas. Ocorre, todavia, que as mesmas pessoas sejam titulares de um direito (situação ou posição jurídica) ilicitamente prejudicado – ainda que só na sua consistência prática (credores) – com a validade ou nulidade do negócio simulado[196].

Estando o terceiro de boa-fé, viu-se a conseqüência jurídica do ato nulo por simulação: a eficácia do negócio perante os contratantes. Pode ocorrer, porém, de o interessado na validade do negócio jurídico está de má-fé e então também seu interesse seria indigno de proteção, hipótese em que “o obstáculo à declaração da nulidade desaparece e subsiste o princípio fundamental de que, se a declaração diverge da vontade, o ato é nulo”[197].

O direito brasileiro adotou este posicionamento já que, ao dispor, em regra, ser nulo o negócio jurídico simulado (art. 167, caput, CC), ressalvando os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contratantes do negócio jurídico simulado. (art. 167, § 2°, CC), contrario sensu, disciplina que ocorrendo má-fé tanto da parte dos contratantes quanto da parte dos terceiros interessados, nenhum dos interesses merece uma especial proteção do direito. Prevalece o princípio da nulidade completa do ato jurídico. Inicialmente, tudo deve retornar ao status quo ante.

Quanto à simulação relativa inocente, na doutrina clássica o entendimento é de que, constituindo a mecanismo dissimulatório de dois negócios jurídicos (o ostensivo-simulado e o oculto-verdadeiro) o ato simulado não deve ser levado em conta, por não ter eficácia alguma. Afastado o “véu enganador”, a “máscara”, apareceria o negócio verdadeiro, o “único que tem importância jurídica”[198]. Esclarece Francesco Ferrara, ser “isto que os autores querem significar quando dizem que no exame dos actos dissimulados não deve ter-se em conta o acto fingido, devendo abstrair-se da aparência e atender somente ao negócio verdadeiro”[199].

Os doutrinadores mais recentes sustentam que o negócio simulado é apenas uma parte (um elemento) da simulação, com ela não se confundindo. A simulação seria, então, um procedimento constituído pelo acordo simulatório e pelo negócio simulado. Em razão do pacto simulatório convencionado, surgiria a relação jurídica chamada de negócio dissimulado. É o posicionamento adotado por Custódio da Piedade Ubaldino Miranda e Heleno Taveira Tôrres, por exemplo.

De uma forma ou de outra, sendo inocente, o negócio dissimulado encontra resguardo na lei (art. 167, CC: “É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na forma e na substância”), atribuindo o legislador relevância à relação jurídica, que as partes procuraram atingir por meio do negócio aparente.

Ainda para esta doutrina mais recente, segundo a qual a simulação é um todo constituído pelos elementos pacto simulatório e negócio simulado, dando origem ao negócio dissimulado, violado o acordo simulatório por uma das partes, pretendendo fazer eficaz o negócio aparente, a outra poder alegar e provar em juízo a dissimulação para que prevalecessem os efeitos do negócio dissimulado. Tal entendimento decorre da visão do pacto simulatório também como exercício de autonomia privada, com efeito constitucional para produção de normas jurídicas.

Afirma Heleno Taveira Tôrres que “o negócio simulado, formalmente, também ele, é uma decorrência de exercícios de autonomia privada, mesmo que seus efeitos possam a posteriori justificar algum modo de controle sobre o ato negocial, por parte de terceiros ou do Fisco”[200].

Este moderno entendimento aprofunda a discussão, mas não se destaca da doutrina tradicional. Assim já compreendiam os clássicos. Para estes, sendo a dissimulação nocente, o tratamento jurídico é o acima exposto e não diverge daquele impingido ao negócio absolutamente simulado fraudulento ou em violação à lei. Sendo a dissimulação inocente, tem-se que a ausência da turpitudo, ou seja, da torpeza, não impede sua alegação mesmo para as partes. Em especial, se um dos declarantes assumir pretensões de ver se tornar efetivo o negócio simulado, em prejuízo do outro.

Requisito essencial, expresso em lei, para a subsistência do negócio dissimulado é sua validade na forma e na substância. O legislador, neste aspecto, inovou e encerrou discussões doutrinárias extensas sobre se o negócio dissimulado deveria atender aos requisitos de validade do simulado ou os requisitos de validade do negócio realmente celebrado, expressos em lei, para as hipóteses de negócio feito às claras. A partir do Código Civil de 2002, todos os requisitos formais e substanciais do negócio dissimulado devem ser observados se há pretensão de vê-lo válido. O novo dispositivo legal possivelmente levará a uma redução do uso das dissimulações, especialmente naqueles negócios jurídicos sujeitos ao registro.

A solução apresentada, tomando por base as espécies de simulação (simulação inocente e simulação nocente, em um plano, e simulação absoluta e dissimulação, ou simulação relativa, em outro plano) choca-se em parte com o entendimento da III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários (CEJ) do Conselho da Justiça Federal (CJF), realizada de 24 a 26 de novembro de 2004, em Brasília. Nela, Alberto Junior Veloso propôs, tendo sido aprovado, enunciado interpretativo ao art. 167 do Código Civil, segundo o qual:

Considerando os termos do novo Código Civil brasileiro, não há mais motivo para falar em simulação invalidante e não-invalidante, pois toda espécie de simulação gerará invalidade do negócio jurídico. Já não há, ante o Direito positivado, a diferença pregada pela doutrina entre os efeitos da simulação inocente e nocente, visto que, em ambas as hipóteses, haverá nulidade do negócio simulado.

E na justificativa, expressou:

Passou a dispor o art. 167 do Código Civil: É nulo o negócio jurídico simulado, as subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. Sendo assim, e como a lei não faz distinções, a tese propõe que todo negócio simulado é nulo, independentemente da intenção das partes de causar prejuízos a terceiros, pelo que toda simulação é, ante a regra legal citada, invalidante. A tese encontra amparo no princípio da eticidade, que inspira o Código Civil em vigor, uma vez que não seria possível admitir negócio em que há dissenso entre a vontade real (desejada) e aquela declarada, ou seja, não é possível encobrir a mentira. [...] Nas simulações relativas, o ato simulado (aquele que apareceu aos olhos de todos) sempre será nulo. O ato dissimulado, ou seja, aquele que foi originariamente escondido, poderá ou não ser declarado nulo, conforme tenha ou não havido ofensa à lei ou prejuízo a terceiros[201].

Acontece que a solução adotada acaba por afastar a lei de sua finalidade. Ao ressalvar os direitos de terceiros, o legislador o fez exatamente em face do negócio jurídico simulado. É este, o aparente, que se projeta para fora da relação interna verdadeiramente estabelecida (intra-partes contratantes) e, portanto, único hábil a atraiçoar legítimas expectativas de terceiros de boa-fé. É deste negócio – o simulado – que o legislador vai ressalvar direitos, reconhecendo eficácia, ainda que o declare nulo.

Além disso, ao firmar-se que “nas simulações relativas, o ato simulado (aquele que apareceu aos olhos de todos) sempre será nulo”, tolhe-se a liberdade de contratar, atingindo diretamente a própria autonomia privada. O indivíduo, desde que não cause danos a terceiros, pode licitamente conseguir certos fins econômicos, ocultando a forma jurídica empregada para o efeito. A eticidade invocada, levada a extremos acabaria por ser totalmente absorvida pela direito, em confusão nem sempre proveitosa. A teoria geral do direito sempre se esforçou por definir fronteiras, ainda que mais ou menos flexíveis, entre ética (ou moral, para alguns) e direito.

A própria mentira, ademais, nem sempre se destina a causar prejuízos a outrem. A experiência individual comprova isso. De modo que, mesmo repudiada socialmente, por imoral ou antiética, nem sempre a mentira é sancionada pelo direito[202], ainda que cause certo desconforto tal constatação. Miguel Reale chegou a afirmar que “o campo do direito, infelizmente, tutela muita coisa que não é moral. Embora possa provocar nossa revolta, tal fato não pode ficar no esquecimento”[203].

Verifica-se no enunciado confusão entre simulação e mentira, entre simulação e falsidade. A possibilidade desta confusão não passou despercebida, aliás, a nenhum dos autores sobre o tema. Todos normalmente fazem grandes perambulações por figuras próximas à simulação (lato sensu) ou que com ela podem se confundir, a fim de estabelecerem claras diferenciações entre a simulação e outras figuras, em especial a fraude à lei, os negócios jurídicos indiretos, os negócios fiduciários, o erro, o dolo e a reserva mental.

Heleno Taveira Tôrres em especial, trata longamente das relações entre a aparência e a simulação e discorre largamente sobre o suposto dever de verdade, enquanto norma geral na celebração e execução dos negócios jurídicos. E responde à sua indagação proposta “existe no ordenamento alguma exigência de dever geral, universal e incondicional de publicidade verídica, de demonstrar, a todos o sentido dos atos que se cumprem como exercício da autonomia da vontade?”, de forma singela: “Cremos que não”[204]. Para Tôrres, o comando universal é o de preservar o direito à inviolabilidade da privacidade. E conclui: “não se pode dizer que a simulação esteja, desde o princípio, proibida por lei; do mesmo modo que não há como justificar algum direito à simulação”[205].

Com argumento diferente, mas de mesmo resultado, entende Pontes de Miranda ser equívoco entender o negócio simulado sempre nulo. Negando a própria existência do negócio jurídico puramente aparente, ou em que houve simulação absoluta inocente, afirma “aquele, pois, que não é, não tem qualquer eficácia (seria haver efeito sem causa): todos os figurantes não quiseram que o ato entrasse no mundo jurídico; e a lei não precisou proteger a ninguém contra essa pura aparência”[206]. E conclui: “A simulação invalidante é simulação mais elemento ilícito, que dá ensejo à sanção de não-validade”[207].

Por fim, a manifestação de Michel Dagot, segundo a qual “porque a simulação, pode-se dizer, apresenta um caráter neutro: salvo exceções, ela não é, por si mesma, uma causa de nulidade”[208].

Pelo exposto, não há como concordar com o enunciado de já não haver, no atual direito civil brasileiro, diferença entre simulação nocente e inocente já que o princípio da autonomia privada, ainda que mitigado por normas cogentes, cada vez em maior número, ainda é o princípio fundamental no direito civil, implicando nem sempre a simulação acarretar nulidade do negócio jurídico. Tal efeito apenas se observará quando ocorrer infração direta da lei ou prejuízos para terceiros.

A lei deve ser interpretada sem radicalidades. Os fatos do mundo são inusitados e policromáticos. Sempre vale relembrar a lição de Carlos Maximiliano, segundo o qual, o direito deve ser interpretado “no sentido conducente ao resultado mais razoável, que melhor corresponda às necessidades da prática, e seja mais humano, benigno e suave”[209]. E aduz, ainda: “Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providência legal ou válido o ato, à que tome aquela sem efeito, inócua, ou este, juridicamente nulo”[210].

6.2 Prova

Consiste na demonstração de ser o negócio jurídico ostensivo mera aparência. É essencial que os fatos alegados sejam provados, como já decidiu o TJMG:

AÇÃO ANULATÓRIA DE NEGÓCIO JURÍDICO - SIMULAÇÃO - AUSÊNCIA DE PROVA. Em Ação Anulatória de Ato Jurídico, a simulação não se presume, havendo necessidade de produção de provas necessárias à elucidação da controvérsia. Não se desincumbindo os autores do ônus de provar, nos termos do art. 333, I, do CPC, que o contrato particular de compra e venda de imóvel foi celebrado mediante simulação, improcedente é o pedido de declaração de sua nulidade[211].

E ainda,

SIMULAÇÃO - ANULAÇÃO DE NEGÓCIO JURÍDICO - PROVA - PARTE QUE A ALEGA. A simulação, que enseja a anulação de negócio jurídico, deve ser comprovada, de forma segura e robusta, por quem a alega[212].

A demonstração de ser o negócio jurídico ostensivo mera aparência pressupõe a comprovação da existência do acordo simulatório. Também é necessário que se carreiem provas do prejuízo que advém do negócio impugnado, como assentou o STJ no Recurso Especial 3404/PR:

SIMULAÇÃO INOCENTE. PROVA DO PREJUÍZO.

Na ação simulatória, aquele que pede o reconhecimento do vício deve demonstrar o prejuízo que lhe advém da realização do ato impugnado Dano indemonstrado (Súmula n° 7 do STJ).

Recurso especial não conhecido[213].

Em voto no Recurso Especial 3404/PR, o Ministro Barros Monteiro registrou que a parte necessita, ao vir a juízo, demonstrar que, face à dissimulação, fez negócio que não desejava realizar, ou que o fez com evidente prejuízo. Para o relator, não se declara a nulidade de ato ou negócio jurídico sem que dele resulte prejuízo para a(s) parte(s). E aduziu:

Certamente, aqui está o nó górdio da questão. Sem essa prova (do prejuízo) não estaria o Judiciário autorizado a anular o negócio dissimulado, porquanto estaríamos ante uma simulação de ordem moral, sem quantificação material que justificasse tornar sem efeito o ato simulado ou dissimulado[214].

A prova da simulação é reconhecida pela doutrina como uma das questões mais complexas do tema. Revela Custódio Miranda que “as dificuldades de prova são as que, na maioria das vezes desencorajam os advogados a recorrer às ações de simulação”[215].

Nos termos do art. 332 do Código de Processo Civil (CPC), “Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa.” A princípio, inexistindo normas jurídicas particulares, “o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observância do que ordinariamente acontece e ainda as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial”, segundo o art. 335 do CPC. A dilação probatória deve ser a mais ampla possível, consoante entendimento do STJ:

Contrato denominado “vaca-papel”. Inibição de prova da simulação. Cerceamento de defesa.

1. Em contratos da espécie, alegada a simulação, impõe-se a realização de ampla dilação probatória, configurando-se o cerceamento de defesa quando a improcedência da alegação está calcada na prova testemunhal, a única que foi deferida.

2.  Recurso especial conhecido e provido[216].

Utilizando-se dos dispositivos legais, a doutrina vem reconhecendo papel relevante à presunção para prova da simulação.

Alerta Caio Mário da Silva Pereira que a prova da simulação “nem sempre se poderá fazer diretamente; ao revés, frequentemente tem o juiz de se valer de indícios e presunções para chegar à convicção de sua existência”[217]. E também Pontes de Miranda: “Nunca se discutiu, nem se pôs em dúvida, no direito brasileiro, se cabia provar-se a simulação pelos vulgares meios de prova, inclusive indício e presunções”[218]. Foi este o entendimento do STF no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 73847/RJ:

Processual. Regimental. Valor legal da prova. Desprezar pelo mérito os indícios de simulação após concretamente apresentados e discutidos, não é o mesmo que negar seu valor legal como meio de prova[219].

No mesmo sentido decidiu também o TJMG:

ANULATÓRIA DE NEGÓCIO JURÍDICO - ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA - CANCELAMENTO DE REGISTRO - SIMULAÇÃO - VÍCIO SOCIAL - INDÍCIOS GRAVES, PRECISOS E CONCORDANTES - PREJUÍZO AOS HERDEIROS - PROCEDÊNCIA DO PEDIDO INICIAL - SENTENÇA MANTIDA. O ato jurídico é por sua essência a manifestação da vontade que, exercida em sua autonomia, consolida relações de ordem jurídica e produz os efeitos conforme a norma legal atinente à espécie, assim, caso surja em sua formação conflito entre a vontade e a sua declaração há de sobreviver aquela por ser o elemento fundamental do ato jurídico. É anulável o ato jurídico por vício resultante de simulação, realizado com o objetivo de produzir efeito diverso do ostensivamente indicado. Nos casos de simulação, a prova pode assentar-se em indícios e presunções, dada a dificuldade de se obter prova direta do vício. Indícios e presunções graves, precisos e concordantes entre si, encadeando-se de maneira a permitir um juízo seguro são elementos probantes suficientes para comprovar a ocorrência da simulação e macular o negócio jurídico que justifique a sua anulação[220].

6.3 Procedimento judicial

As partes ou interessados que pretenderem o reconhecimento da inexistência de qualquer negócio jurídico na simulação absoluta inocente ou do negócio jurídico simulado e, conseqüentemente, descortinamento do verdadeiro negócio jurídico dissimulado, na dissimulação inocente, se utilizam do procedimento comum com o fim de obterem a declaração judicial, nos termos do art. 4° do CPC: “O interesse do autor pode limitar-se à declaração: I – da existência ou da inexistência da relação jurídica”. A sentença, na hipótese, seria exclusivamente declaratória.

Para Pontes de Miranda, na simulação absoluta inocente, “para qualquer deles fazer ressaltar a pura aparência, isto é, para mostrar que não houve ato jurídico, basta alegar que só se trata de ato jurídico aparente (= não-ato jurídico). A decisão, a respeito, é declarativa negativa”[221]. Na simulação relativa inocente (dissimulação inocente), “qualquer dos figurantes podem pleitear não a declaração da anulação, por que não houve defeito, mas a declaração de que se quis outra coisa que aquilo que se simulou”[222].

A nulidade nas simulações nocentes ou fraudulentas é declarada na sentença da comumente denominada “ação anulatória”[223] (principal) ou no curso de qualquer procedimento judicial, de maneira incidental.

Destina-se a anulatória à declaração da nulidade do negócio jurídico, sendo, para doutrina dominante, de natureza declaratória. A sentença não cria novo estado jurídico, mas apenas reconhece a invalidade dos negócios submetidos à apreciação judicial[224].

Posicionamento diferente tem Heleno Tôrres, para quem apenas seria possível falar-se em sentença declaratória na simulação absoluta. Na dissimulação, a ação é anulatória e, portanto, constitutiva negativa, uma vez que o negócio jurídico simulado existe realmente, aparece e surte efeitos contra terceiros. “A sentença que reconhece a simulação é desconstitutiva do ato, alcançando a este e aos efeitos, restabelecendo a situação anterior. Após a decretação, nada fica do acordo (simulatório), pela sua desconstituição”[225].

No mesmo sentido de Heleno Tôrres, mas tratando apenas dos terceiros, já que no sistema do Código Bevilaqua, tendo havido intuito de prejudicar a terceiros ou infringir preceito de lei, em regra nada poderiam alegar ou requerer os contraentes em juízo, quanto à simulação do ato, em litígio um contra o outro, ou contra terceiros (art. 104, CC de 1916), leciona Pontes de Miranda: “O terceiro, que depara com negócio jurídico simulado, que lhe causa prejuízo, pode alegar a simulação; mas aí, a ação é constitutiva negativa: o ato jurídico existe; é apenas anulável”[226].

A nulidade do negócio, nos termos do art. 168 do Código Civil, pode ser alegada por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir. Deve, também, ser pronunciada pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e a encontrar provada, não se lhe sendo permitido supri-la, ainda que a requerimento das partes.

Para o STJ, a apuração da legitimidade deve-se perquirir não a titularidade do direito pretendido, mas a simples possibilidade de que ela exista. É neste sentido a decisão unânime da Terceira Turma do STJ no Recurso Especial n° 794940/DF, com a seguinte ementa:

PROCESSUAL CIVIL. ANULATÓRIA. ATO JURÍDICO. LEGITIMIDADE ATIVA. SIMULAÇÃO COMPROVADA.

Para a apuração da legitimidade deve-se perquirir, não a titularidade do direito pretendido, mas a simples possibilidade de que ela exista.

É parte legítima quem, em tese, tem ação para defender um interesse tutelável, desde que prove os fatos alegados.

É nulo o negócio jurídico simulado que prejudique direito de terceiro de boa-fé[227].

Michel Dagot esclarece que interesse legítimo não se confunde com existência de um prejuízo efetivo. “O terceiro não tem de provar que suportou um prejuízo de fato decorrente do ato simulado; é suficiente que demonstre que a simulação pode se revelar nociva ao seu encontro [com os interesses legítimos]”[228].

Ainda no Recurso Especial n° 794940/DF[229], deve-se destacar o entendimento do STJ no sentido de ser “nulo o negócio jurídico simulado que prejudique direito de terceiro de boa-fé”. In contrario sensu¸ a decisão indica entendimento da 3ª Turma da Corte de que os atos que não prejudiquem direito de terceiro de boa-fé não são nulos.

Ao negócio jurídico nulo é impossível o convalescimento pelo decurso do tempo, nem se possibilita a confirmação (art. 169, CC). Na expressão do art. 182 do Código Civil, “anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que se achavam e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente”.

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Sobre o autor
Alex Lamy de Gouvea

Bacharel em Direito (UFMG). Especialista em Direito Processual (PUC Minas). Concluiu o Curso de Formação de Oficiais na Academia de Polícia Militar de Minas Gerais (curso equivalente aos superiores de graduação). É oficial da reserva não-remunerada da PMMG. Analista Judiciário-Área Judiciária na Justiça Federal de Primeiro Grau em Minas Gerais. Professor voluntário de Direito Civil na UFMG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOUVEA, Alex Lamy. Entre a verdade e a aparência: a dissimulação nos negócios jurídicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3171, 7 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21224. Acesso em: 17 abr. 2024.

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