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Servidores públicos e assédio sexual

01/10/2001 às 00:00
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A intenção primeira de qualquer espécie de empregador quando admite em seus quadros um trabalhador é obter deste um desempenho satisfatório observados padrões de produtividade que permitam gerar em favor da atividade desenvolvida os melhores resultados possíveis. Com vista a alcançar esse desiderato torna-se essencial selecionar bem a quem se contrata, ou investir em sua qualificação ao longo do tempo e durante o período em que este encontra-se à sua disposição. Mas não basta apenas essa preocupação. Há a necessidade de evitar desgastes nas relações interpessoais, porquanto estas se constituem em instrumento de deterioração do relacionamento no âmbito interno da entidade empregadora acarretando, em regra, insatisfação e a conseqüente redução da capacidade laborativa.

Fatores diversos podem implicar em evidentes prejuízos à atividade do empregador, especialmente quando não se tem a preocupação em detectar tais problemas e estimular soluções pacificadoras. Um ambiente de trabalho projetado de forma positiva poderá, sem dúvida, oportunizar maior produtividade. Impõe-se, para tanto, o cultivo de boas relações entre aqueles que tem a seu cargo o desempenho de atribuições de qualquer nível para a entidade empregadora.

Diversas e variadas são as causas de deterioração das relações que implicam em quebra do desempenho do trabalhador, não se podendo imputar a um ou outro motivo especificamente. Difícil e impossível será até mesmo fixar um número determinado e inalterável de situações, embora se possa claramente delinear os casos em que se observa ocorrerem com maior freqüência. Dentre tais situações, uma que se apresenta de forma freqüente e repetida é aquela que se insere na esfera das relações íntimas, quando um colega impõe ao outro aproximação de natureza amorosa e sexual, de forma abusiva e contrária ao interesse daquele a que foi dirigida a proposta.

Apresenta-se sob diversos aspectos essa aproximação entre colegas, criando, com certa freqüência, desgastes nas relações internas da repartição. Ora é o elogio atrevido, pondo em destaque atributos de determinada pessoa e sugerindo, de forma direta ou indireta, uma relação amorosa ocasional. Ora são os cumprimentos excessivamente efusivos que resultam quase sempre em abraços, beijos ou apalpações não desejadas ou consentidas. Mas também gera desagrado e constrangimento o galanteio exagerado e dirigido sempre à mesma pessoa e de forma freqüente. Os presentes e agrados com o escopo de facilitar a aproximação. Elogios e comentários acerca da sensualidade e elegância de determinado colega visando a estimular a aceitação do contato sensual ou a induzi-lo. Os toques físicos em pontos impróprios. Os empurrões disfarçados. O ataque direto ao outro visando a possibilitar um contato não permitido. O próprio ato sexual forçado que, sob a ótica penal, caracteriza o crime de estupro (CPB: art. ).

Casos e situações variadas são noticiadas no dia-a-dia, nem sempre oportunizando a responsabilização do responsável, embora tenha gerado indesejado constrangimento no recinto da repartição, não só para o colega afetado, como também para os demais que, de forma indireta, se vêem alcançados pelos efeitos do ato irregular praticado.

Cumpre saber, quando detectadas tais posturas no Serviço Público, como enquadrá-las e como responsabilizar o seu autor, impondo-lhe as sanções que, em cada caso, se tornaria possível aplicar. Não raro têm-se apenas a inércia e a omissão como resposta a tais atitudes, o que se presta a estimular a sua reiteração aumentando o número de pessoas afetadas pela atitude inconseqüente e irresponsável. E isto porque, conforme se explica, não haveria como provar o fato imputado já que sempre se observa a acusação não testemunhada e negado pelo suposto infrator. É palavra contra palavra.

Dificuldade outra que quase sempre se observa é realizar o enquadramento da conduta em dispositivos da lei aplicável em cada esfera. Na área federal, a Lei 8.112, de 1990, que institui o Estatuto dos Servidores Públicos Federais, enseja a tipificação de atos desse nível em algumas de suas disposições, admitindo a graduação da sanção conforme a gravidade da irregularidade cometida. Em casos mais simples, quando o dano for de menor nível e não houver maior repercussão para o servidor afetado ou para a repartição, perfeitamente possível situar a ação irregular como afronta ao dever respeitar a moralidade administrativa. Quando o fato cometido revestir-se de maior gravidade exigindo penalidade mais grave ou até mesmo o desligamento do infrator, perfeitamente possível enquadrar-se o seu ato como incontinência de conduta, punível com a pena de demissão nos moldes previstos no art. 132, ..., da Lei 8.112/90.

Oportuno asseverar que a moralidade administrativa a que se refere o art. 116, .., da Lei 8.112/90, admite que como tal se considere todo e qualquer ato contrário à moral e aos bons costumes, não havendo necessária correlação com afronta ao dever de honestidade, já que este, se vier a ocorrer, configurará a improbidade ou ato similar, figuras que a lei também contempla nos arts. 117 e 132. Galanteios deselegantes e insistentes, apalpações agressivas, insinuações libidinosas, gracejos ofensivos, são atos que podem perfeitamente tipificar ofensa à moralidade administrativa, admitindo a punição do servidor responsável com penas exemplares e menos graves (advertência e suspensão).

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A incontinência de conduta exige punição mais grave, prevendo a Lei 8.112/90, para tais casos, a demissão do servidor responsável, porquanto prevista nas situações inscritas no art. 132 da aludida lei. Como tal poder-se-á enquadrar atos diversos, dentre os quais, exemplificativamente, os que vão a seguir relacionados: o ataque direto ao colega com o fim de alcançar a satisfação sexual (estupro; atos libidinosos); a perseguição em razão da recusa em consentir a prática de relações íntimas; a oferta de vantagens e a outorga destas com o fim de obter o consentimento para a prática de atos sexuais; o desvirtuamento do sistema de promoções e a oferta de benefício com o mesmo escopo; a remoção de servidor com o fito de puni-lo por não haver concordado com proposta indecorosa que lhe foi dirigida; investidas constantes e reiteradas, acompanhadas de ameaças à situação funcional do servidor; insinuações ofensivas à honra de servidor fazendo crer que seu crescimento profissional resulta do fato de manter relação amorosa com aquele que veicula tais informações etc.

A constatação de condutas desse nível não devem jamais ser deixadas sem apuração, ainda que a prova não se apresente manifesta e induvidosa. Havendo indícios suficientes, há de ser instaurado o procedimento disciplinar com vista ao levantamento de maiores elementos que, se obtidos, ensejarão a indiciação do responsável e sua punição, quando provada a sua culpa. É necessário alertar, todavia, para a necessidade de ter-se consistência em tais acusações, não se devendo deixar progredir imputações infundadas e sem qualquer consistência, calcadas apenas no espírito de emulação ou em interpretação equívoca de fatos.

Apresenta-se delicada a questão exposta, pois ter-se-á, em cada caso, que realizar um exame cuidadoso dos fatos e das provas ou indícios oferecidos, de modo a não estimular-se condutas irregulares ante a dificuldade de produção probatória, nem também a dar-se acolhida a denúncias calcadas apenas em afirmações e contrárias à realidade.

Papel de relevo possui, quando não se detém elementos satisfatórios, a sindicância com caráter meramente investigativo, quando não se fará ainda a imputação de responsabilidade a quem quer que seja. Por meio desta poder-se-á ouvir o denunciante, dele colhendo e registrando elementos informativos que poderão, à luz de outras informações, possibilitar a produção probatória necessária. Outros servidores, que tenham participado do convívio do denunciante e denunciado, poderão igualmente ser ouvidos acerca do relacionamento de ambos, apontando fatos que se prestem a configurar a conduta inadequada, especialmente quando vierem a afirmar, dentre outros fatos, haverem presenciado os constantes e reiterados galanteios, convites para sair, presentes sem qualquer motivação especial, elogios exagerados sobre a elegância e sensualidade do denunciante, pedidos ou ordens para permanecer na repartição além do horário normal de trabalho etc. Tais elementos podem, em princípio, constituir um conjunto de indícios que se prestarão a fundamentar a indiciação do denunciado quando cotejados com outros elementos de prova e com os seus antecedentes.

Reunidos elementos suficientes à imputação de responsabilidade, dever-se-á, a partir da sindicância investigativa, providenciar a instauração de processo disciplinar assegurando ao acusado a possibilidade de defender-se da forma mais ampla possível, inclusive mediante a reinquirição de pessoas já ouvidas no âmbito da sindicância e por meio da oitiva de outras que tenha arrolado oportunamente.

Questão relevante, quando se trata desse assunto na esfera da administração pública, diz respeito ao fato de buscar-se a configuração do assédio sexual apenas quando houver, entre o denunciante e o denunciado, relação de hierarquia. Não vejo, no plano funcional, como necessária essa caracterização, até porque as disposições legais citadas a tanto não se referem. A existência de relação hierárquica pode ser vista como instrumento para agravar a penalidade a ser imposta ao servidor, mas não se apresenta como condição para a sua configuração à luz das disposições da Lei 8.112/90. No contexto meramente funcional, o assédio estará configurado pelas ações irregulares perpetradas, não dependendo da existência de hierarquia entre os partícipes do ato.

Observados tais parâmetros, poder-se-á acompanhar a ocorrência de tais condutas, coibindo-as até mesmo de forma exemplar para que não venham a gerar desnecessários e inaceitáveis desgastes entre colegas de trabalho, ensejando prejuízo ao bom andamento do serviço e, por conseqüência, ao cumprimento das atribuições funcionais que a eles compete executar.

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Sobre o autor
Airton Rocha Nobrega

Advogado inscrito na OAB/DF desde 04.1983, Parecerista, Palestrante e sócio sênior da Nóbrega e Reis Advocacia. Exerceu o magistério superior na Universidade Católica de Brasília-UCB, AEUDF e ICAT. Foi Procurador-Geral do CNPq e Consultor Jurídico do MCT. Exerce a advocacia nas esferas empresarial, trabalhista, cível e pública.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NÓBREGA, Airton Rocha Nobrega. Servidores públicos e assédio sexual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2128. Acesso em: 22 dez. 2024.

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