Sob o pretexto do uso da expressão “Estado laico” vem se desenhando no Brasil uma proposital confusão entre o que seja “sociedade” e “Estado”. Aquela, sociedade, é maior que este, Estado, portanto, o Estado é um servidor da sociedade e de seus valores, e não o contrário.
O pluralismo de idéias e a dignidade da pessoa humana, princípios fundantes de nossa República são garantidos no art. 1º, incisos III e V de nossa Carta Magna. Prestigiar essa variação cultural de nosso povo é preceito constitucional. Também não se pode tratar como expressões sinônimas, Estado laico = humanismo ateu, outro enfadonho equívoco que se vislumbra nas entrelinhas dos debates atuais.
A proposta de vida cristã pautada no Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo não é um ideal para “vida privada”, para o “recôndito do lar”, mas sim uma proposta que faz parte da cultura brasileira, da vida pública do povo brasileiro, daí porque o suposto “Estado laico” não pode querer excluir o aspecto religioso da vida pública. Seria criar um Estado sem sociedade, o que é um retorno às ditaduras no século XX.
Não queremos um retorno ao Estado religioso, mas também não podemos admitir que o Estado laico seja sinônimo de um Estado ateu, onde “quem de alguma forma professe uma fé religiosa seja ela qual for, seja considerado um cidadão de segunda categoria e por isso tenha de ficar quieto e não se manifeste” – com bem acentua Dom Odilo Scherer (“Fazemos questão do Estado laico”, Época, 25/06/2007, p.110).
Precisamos de clareza na cena política. O Estado é laico, mas a sociedade não é. Ao contrário, em sua grande maioria a sociedade professa uma fé religiosa, cuja manifestação está garantida como direito fundamental no art. 5º, VIII da Constituição Federal. Portanto, aos cristãos cabe o chamado de Cristo: “Duc in altum”.
Não obstante o governo é pluralista e laico, logo, não pode impor que a proposta da Igreja Católica por um humanismo integral seja vista como coisa estranha, ao contrário, é uma proposta que faz parte da cultura e da vida brasileira. Defender o uso de crucifixos e Bíblias em prédios e espaços públicos, lutar contra o aborto, defender a família, defender a vida humana na integralidade é dever missionário dos cristãos que formam a maioria do povo brasileiro, muito embora o Estado (micro-parte da sociedade) seja laico. “Não somos cidadãos de segunda classe”, insisto em Dom Odilo Scherer.
É oportuno lembrar o que diz o procurador-geral da República aposentado, Cláudio Fonteles, quando pontua com base na Doutrina Social da Igreja (DSI) que o Estado deve ser visto de forma subsidiária quando se discute a temática das questões sociais, com preeminência para pessoa e seus valores. Diz ele: “é de muito relevo à Doutrina Social da Igreja o chamado princípio da subsidiariedade, que significa posicionar as instituições oficialmente engendradas pela razão humana, ou seja, o Estado e todo o aparato de serviços públicos executivos, legislativos e judiciais postos à satisfação das necessidades da pessoa humana, na vida em sociedade, em plano secundário. Vale dizer: toda essa estrutura executiva, legislativa e judicial não pode chamar a si a definição absoluta das questões sociais, subjugando, alienando, excluindo a pessoa humana do exercício de sua subjetividade criadora, manifestada singular ou comunitariamente.”
Por detrás da defesa intransigente do chamado “Estado Laico” revela-se sorrateiramente a idéia de um humanismo ateu, humanismo inumano, ou fragmentado, se comparado ao humanismo integral defendido pela Igreja. Indagamos: é possível um humanismo ateu? Diz Henri de Lubac: “Não é certo que o homem, tal como parece querer dizê-lo, por vezes, não possa organizar a terra sem Deus. O que é verdade é que, sem Deus, ele não pode, no fim de contas, organizá-la senão contra o homem. O humanismo exclusivo não passa de uma humanismo inumano” (“O drama do humanismo ateu”, Editora Porto: Lisboa, 1943, p.10).
Quando destruímos embriões, fazemos apologia ao aborto, e violamos a família, e negamos de forma contumaz a pobreza crescente, não só estamos refutando o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, estamos desrespeitando os próprios direitos humanos plasmados na Constituição Federal e o humanismo integral.
E como se define um humanismo integral em rechaço ao “humanismo ateu” que se desenha em paralelo ao “Estado Laico”. Quem pode nos responder é o Compêndio da Doutrinal Social da Igreja em seu parágrafo 153, que à luz da tradição bimilenar da Igreja diz; “153 – A raiz dos direitos do homem, com efeito, há de ser buscada na dignidade que pertence a cada ser humano. Tal dignidade, conatural à vida humana e igual em cada pessoa, se apreende antes de tudo com a razão. O fundamento natural dos direitos se mostra ainda mais sólido se, à luz sobrenatural, se considerar que a dignidade humana, doada por Deus e depois profundamente ferida pelo pecado, foi assumida e redimida por Jesus Cristo mediante a Sua encarnação, morte e ressurreição. A fonte última dos direitos humanos não se situa na mera vontade dos seres humanos, na realidade do Estado, nos poderes públicos, mas no próprio homem e em Deus seu criador. Tais direitos são “universais, invioláveis e inalienáveis, enquanto “inerentes à pessoa humana e à sua dignidade” e porque “seria vão proclamar os direitos, se simultaneamente não se envidassem todos os esforços a fim de que seja devidamente assegurado o seu respeito por parte de todos, em toda parte e em relação a quem quer seja. Inalienáveis, enquanto “ninguém pode legitimamente privar destes direitos um seu semelhante, seja ele quem for, porque isso significaria violentar a sua natureza”.
Enfim, o que está no cenário é um “Estado laico” ao lado de um humanismo ateu e cristofóbico, em contraste com uma sociedade que deseja ardentemente viver no aqui-e-agora um humanismo integral. Como lembra Frei Raniero Cantalamessa: “A suprema contradição que o homem de sempre experimenta – entre a vida e a morte – foi superada. Mas a contradição mais radical não está em viver e morrer, mas entre viver “para o senhor” e viver “para si mesmo”... Viver para si mesmo é novo nome da morte.” (“O poder da cruz”. 5º ed. Loyola: São Paulo, 2009, p. 13)