5. A reação do pensamento católico
O neotomismo jurídico é uma releitura contemporânea das proposições clássicas apresentadas por Santo Tomás de Aquino. Desenvolve como princípio diretivo o desejo de promover o reconhecimento do poder de Deus na Terra através da aplicação plena dos Direitos Naturais construtivamente no interior dos ordenamentos jurídicos contemporâneos.
A filosofia jurídica neotomista possui regras, princípios e critérios preocupados com a garantia da dignidade da Pessoa Humana na perspectiva teológico-cristã necessariamente vinculados com as questões que prejudicam a implementação da prática jurídica humanizada no direito e na política. Essa releitura cristã do direito e da política tenta consolidar progressivamente um sistema de premissas que revelam verdades mais elevadas sobre a política jurídica atual (OLIVEIRA, 2001, p. 28); nessa linha de pensamento, portanto, os direitos naturais não são apenas fonte de interpretação da ordem política; servem também como fonte inspiradora para se produzir outras normas do sistema político-constitucional.
O neotomismo jurídico admite a interrelação ou convergência da animalidade, da racionalidade e da humanidade, propondo especialmente a construção de uma nova ordem social centrada na dignidade material e espiritual da Pessoa Humana, a exemplo do que sugere Santo Tomás de Aquino na Idade Média.
Diferente do positivismo, o neotomismo acredita que qualquer sistema legal que pretenda estabelecer os meios convenientes e úteis para os fins naturais do homem será gerado a partir de uma ordem moral verdadeira e própria, válida para todos em qualquer tempo e lugar (OLIVEIRA, 2001, p. 228). Essa ordem essencialmente moral tem seu fundamento primeiro em Deus, cuja irradiação nos homens adquire caráter de lei, inicialmente. Não basta ao político do direito, nesse contexto, seja legislador ou pesquisador de uma ciência específica, teorizar um quadro legislativo com certa estrutura lógica se faltar a efetiva observância e aplicação no corpo social dos princípios espirituais cristãos.
Os procedimentos metodológicos recomendados para localizar o neotomismo na realidade incluem o método dedutivo baseado na premissa dogmática de que os direitos naturais existem a priori, são universais e ahistóricos. Necessariamente inclui-se na pesquisa o submétodo histórico a fim de compreender melhor a realidade social concreta de cada caso para nela intervir teologicamente.
A metodologia do trabalho de campo é centrada na observação participante que também funciona programaticamente como um instrumento ético dotado de capacidade para viabilizar a aproximação do conhecimento teológico e bíblico com a vida moderna.
Na busca de dados empíricos, podem ser usadas técnicas qualitativas, dentre elas a observação participante, a análise do discurso e a história de vida. É possível ainda contar com ajuda da pesquisa documental e do trabalho de campo a fim de verificar o funcionamento real das instituições no cotidiano das pessoas, aplicando-se, especialmente, a pesquisa de opinião e a leitura crítica dos relatórios de governo e dos códigos legais.
A investigação neotomista declara seu compromisso teórico-prático com o processo que atribui existência real ao direito natural, formando um sistema de conhecimentos aplicados na ordem jurídica. A descrição crítica da realidade acumula nesse contexto dados positivos derivados da vivência histórica, da interpretação dos valores tradicionalmente guardados na consciência popular e também das evoluções psicológicas, ideológicas e religiosas que exercem profunda influência na história do direito.
O imaginário político do neotomismo jurídico se faz presente em várias encíclicas da Igreja Católica Apostólica Romana, expressando valores em defesa da dignidade da Pessoa Humana. Nesse tipo de imaginário religioso, o valor central da política é o bem comum; do direito, é a justiça; da religião, é o aperfeiçoamento espiritual. Esse conjunto de valores é percebido e valorizado nos escritos papais, como por exemplo, na encíclica do Papa Leão XIII, quando ele ressaltou pontualmente que “a liberdade de pensamento e de expressão, carente de todo limite, não é por si mesma um bem de que se possa felicitar justamente a sociedade humana, ao contrário, é fonte e origem de muitos males”. De acordo ainda com o que escreveu o Papa Leão XIII:
A essência da verdade e do bem não pode mudar ao capricho do homem, pois ele é sempre a mesma e não menos imutável conforme a natureza das coisas. Se a inteligência adere a opiniões falsas, se a vontade elege o mal e se une a ele, nem a inteligência nem a vontade alcançam sua perfeição, pelo contrário, abdicam de sua dignidade e ficam corrompidas (Pio XII, “Immortale Dei”, n. 15, em “Doctrina Pontificia” (Documentos políticos), Madrid, BAC, 1958, p. 208, apud OLIVEIRA, 2001, p. 66).
Nessa mesma linha de pensamento, o Papa Pio XII declarou que:
O juiz não pode nunca com sua decisão obrigar ninguém a um ato intrinsicamente imoral, ou seja, contrário por natureza à Lei de Deus ou da Igreja. O juiz não pode reconhecer e aprovar expressamente a lei injusta. No entanto, nem toda a aplicação de uma lei injusta equivale ao seu reconhecimento, ou à sua aprovação. Nesse caso, o juiz pode (e às vezes deve) deixar a lei injusta e seguir o seu curso, sempre que este seja o único meio de evitar um mal maior (“Com Felice Pensiero”, n. 16, em “Doctrina Pontificia” (Documentos Jurídicos), Madri, BAC, 1960, p. 301, apud OLIVEIRA, 2001, p. 159).
De maneira geral, conforme sugere o autor Oliveira (ibidem, p. 44), no jogo neotomista das ideias uma das metas é a realização da justiça. O neotomismo é orientado programaticamente neste caso para intervir em situações conflitivas concretas, muitas vezes derivadas da insuficiência ou da injustiça do sistema legal público. Ao mesmo tempo, o neotomismo é concebido para modificar a conjuntura social e busca como finalidade prática servir ao bem comum, escalando necessariamente os agentes do poder público a participar nessa missão transformadora.
Para que a vida social garanta o seu objetivo de conservação e de desenvolvimento da Pessoa Humana, é necessário atribuir novo significado ao ordenamento jurídico, aplicando-lhe os princípios universais da ordem natural para que sirva de apoio externo e de garantia ao bem comum. Efetivar essa ordenação como meta perfectiva é, sem dúvida, uma tarefa importante da política jurídica neotomista (OLIVEIRA, 2001, p. 48).
A anomalia política na avaliação do neotomismo jurídico surge quando a Lei se degenera em instrumento de perpetuação do poder das elites, afastando-se da realidade objetiva do direito que deve distinguir o meu, o teu, o seu e o nosso (OLIVEIRA, op. cit., p. 44). Por isso mesmo, a Lei não pode ser construída para cidadãos anônimos e idealizados (OLIVEIRA, op. cit., p. 44), mas sim para indivíduos reais e concretos. Portanto, a mudança das leis deve ser uma tarefa essencialmente ligada à política jurídica contextualizada, objetivando atender a um princípio natural intrínseco da razão que é fazer a Pessoa Humana ascender, gradualmente, do imperfeito ao grau perfeito.
Ao contrário de ser uma teoria política autoritária, onde todos os associados se deixariam absorver pela ditadura da vontade comum do grupo para adquirirem uma liberdade convencional totalmente diferente da liberdade natural; a sociabilidade neotomista valoriza a perfeição dos associados através da liberdade fraterna e socialmente responsável. Porém, só existirá perfeição humana plena para a consecução da felicidade natural na medida em que o homem se integrar à sociedade e estabelecer um fecundo intercâmbio de seus bens com os demais indivíduos da comunidade (idem).
A importância política do direito natural teológico foi e continua sendo marginalizada na história social devido aos sistemas materialistas e pessimistas que rejeitam a necessidade de se conhecer e administrar espiritualmente a realidade objetiva das leis (OLIVEIRA, op. cit., p. 21). Os erros decorrentes desse tipo de pensamento abstrato e antropocêntrico reforçam a separação radical entre o direito positivo e o direito natural na sociedade moderna. Conforme destacou a observação de Plínio Correa de Oliveira (“Projeto de Constituição angustia o país, em: Catolicismo, edição extra”. São Paulo, 1987, apud OLIVEIRA, 2001, p. 21), faz-se rápida referência a Deus no preâmbulo da Constituição, “mas em seguida se esquece de Deus, ou pelo menos não o menciona como deveria, como fonte suprema de todo o Poder. Pois logo no art. 1º, parágrafo único, afirma-se que todo poder emana do povo e em seu nome é exercido”.
Nas democracias orientadas pelo fio condutor materialista, a vontade coletiva passa a ser a regra primeira do direito. Seu critério ontológico é o contrato social nos termos dos jusnaturalistas, sem o que não poderá existir teoricamente uma sociedade civil estruturada (OLIVEIRA, op. cit., p, 21). Os problemas derivados dessa filosofia moderna através do individualismo burguês, do materialismo, da cultura maquínica e também do relativismo social, entre outros, são apenas alguns exemplos de desvios éticos dominantes nos sistemas atuais, legitimados pelos princípios lógicos que justificam a prática exagerada da liberdade; e relativizam os fins superiores em favor de demandas imediatistas do mercado e da política. Nesse contexto, a sociedade moderna se afasta juridicamente da Ética Cristã e das verdades absolutas reveladas pela Bíblia.
Meditando a respeito dessa problemática toda, o Papa João XXXIII declarou pontualmente que: “não poderá haver sobre a Terra nem justiça nem paz enquanto os homens não sentirem, em si mesmos, a sua dignidade como criaturas e como filhos de Deus, causa primeira e última de todas das coisas” (apud OLIVEIRA, 2001, p. 24).
Separado de Deus, considerou essa mesma autoridade católica, “o homem se faz cruel para consigo mesmo e para com os demais já que as mútuas relações entre os homens supõem, necessariamente, a boa harmonia da consciência humana com Deus, fonte de toda a verdade, justiça e amor” (Mater et Magistra, n. 215, em Doctrina Pontificia, Madrid BAC, 1964, p. 1.234 apud OLIVEIRA, op.cit., p. 24).
A técnica jurídica não deixa de ser um recurso importante neste contexto que os políticos do direito utilizam para realizar seus fins operativos, porém, ela sozinha não basta para garantir a consecução espiritualista da norma positiva reivindicada pela doutrina neotomista.
A ação transformadora da sociedade moderna precisa resgatar virtudes que reforçam o domínio da prudência no Direito e na Política. Nessa direção, Santo Tomás de Aquino descreveu na “Suma Teológica” (OLIVEIRA, op. cit., p. 165) oito virtudes que podem complementar a importância contemporânea da técnica jurídica na prática militante do “político do direito” neste momento histórico da sociedade moderna do século XXI. São elas:
Memória do passado: dos êxitos e fracassos das normas positivadas, estejam ou não em vigência, o juspolítico retira sábios conselhos que vão juntar-se à tradição para melhor avaliar a autenticidade das tendências sociais.
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Inteligência do presente: consiste em concentrar a atenção nas coisas presentes, vê-las não somente nos seus fins particulares, mas também nas suas realidades profundas, percebê-las na organicidade de seus elementos intrínsecos.
Humildade: saber consultar os mais experimentados, já que ninguém se basta a si mesmo. Importa aos agentes trocarem informações e opiniões em matéria predicável, e principalmente, se valerem daqueles homens cujo peso dos anos e cuja herança de virtudes familiares os obrigam a manter vivo o nexo pelo qual a sabedoria do passado governa o presente sem, contudo, imobilizá-lo.
Sagacidade: na urgência das discussões do projeto normativo, ou em algumas linhas de seu conteúdo, tomar decisões imediatas e urgentes. Em determinados momentos da vida social, a emergência corretiva da ordem legal não permite demoradas conjecturas sobre sua oportunidade, sob pena de causar danos irreparáveis a essa mesma ordem.
Razão: o mais importante não é a potência, mas o bom uso da razão.
Providência: é a principal virtude integrante da prudência. A humana providência de seus agentes está orientada para o futuro, prognosticando as possibilidades menos prováveis de as hipóteses legais fracassarem.
Circunspecção: através dessa virtude, julgam-se atentamente as diversas circunstâncias que rodeiam um projeto normativo, pois haverá circunstâncias especiais que podem transformar certas proposições justas em algo pernicioso para a segurança jurídica.
Cautela: uma obra injusta se manifesta, muitas vezes, com a aparência de justa, ou mesmo sendo justa pode ser mesclada de erros e injustiças por influência de obstáculos extrínsecos. Daí a necessidade de juntar-se à prudência a cautela para o juspolítico esquivar-se ao encontro de certos erros que de ordinário acontecem.
A pesquisa neotomista do Direito precisa analisar e resolver problemas concretos quer pela via legislativa, quer judicial, mas nunca poderá desprezar a sabedoria do passado e dos princípios bíblicos (op. cit. p. 191). As leis que obedecem à tradição não constituem regressão neste caso, mas sugerem a busca do harmônico desenvolvimento do passado dentro e a favor de nossa atualidade (ibidem, p.194).
Inspirado na ideia sociológica do agir, não é prudente que o político do direito se deixe absorver apenas pelas imagens do presente com desprezo de toda a sabedoria herdada do passado. É importante saber harmonizar o dinamismo das reformas, que são estratégias para o desenvolvimento da personalidade humana e social, combinando-as com a estática das tradições, objetivando salvaguardar a segurança do ordenamento jurídico que deve ser estruturado, cada vez mais, nos princípios teológicos e na sabedoria dos antepassados (OLIVEIRA, op. cit. p. 197).
Apesar de existirem obstáculos institucionais e burocráticos que desviam a atenção dos cidadãos sobre temas relevantes da vida pública, há certos grupos, instituições e meios de comunicação social que podem despertar a formação de uma autêntica opinião pública e servirem de porta-vozes para o enfrentamento das dificuldades sociais neste momento. De acordo com Oliveira (ibidem, p. 201): “são poucos, infelizmente, esses elementos, mas eles existem”, enfatiza o autor. Além dos partidos, por exemplo, encontra-se a Igreja, que poderá melhor despertar a opinião pública na visão do neotomismo, enfatizando o bem comum espiritual (ibidem, p. 201).
No Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos (CNBB) possui considerável respeito frente à população. Através dessa mesma instituição é possível praticar-se boas influências, assinalando critérios de justiça para vários temas nacionais. Outras instituições públicas ou privadas podem ser idôneas para inspirar o genuíno sentido do verbo coletivo (op. cit., p.203) como as Universidades, a internet e a mídia em geral.
Conforme sugere finalmente o Papa Pio XII, a opinião pública é autêntica quando acolhe o eco natural e a ressonância mais ou menos espontânea dos acontecimentos e das circunstâncias (ver Prensa Católica y Opinión Pública, n. 3 em Doctrina Pontifícia, Madrid, BAC, 1958, p. 969, apud OLIVEIRA, 2001, p. 199).