2 A USUCAPIÃO NO ESTATUTO DAS CIDADES
Os grandes centros urbanos são os espaços onde se verificou o maior crescimento populacional nas últimas décadas. A sociedade evoluiu e se transformou e com isso, diversos novos problemas surgiram, tais como, a degradação do meio ambiente, a utilização incorreta dos recursos financeiros, o grande número de desempregados, o uso impróprio do solo e das reservas naturais, violência urbana desenfreada, ausência de saneamento básico e de moradias, surgimento de favelas e ocupações clandestinas.
A par de todos estes problemas, a concepção de propriedade diante da história, bem como da legislação, principalmente por influência da Constituição Federal de 1988, sofreu grandes transformações, admitindo um conceito social, havendo necessidade de sua regulamentação diante dos padrões do Direito Urbanístico.
Desta necessidade, fez-se surgir a Lei n° 10.257, de 10 de julho de 2001, publicamente conhecida como Estatuto da Cidade. Esta lei funciona como instrumento de política urbana, sendo objeto apto a ensejar o cumprimento da tão observada função social da propriedade, ressaltada no texto constituinte.
Acerca do que foi implementado após a vigência do Estatuto das Cidades, assevera Dallari[16]:
O Estatuto afirmou com ênfase que apolítica urbana não pode ser um amontoado de intervenções sem rumo. Ela tem uma direção global nítida: “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana” (artigo 2º, caput), de modo a garantir “o direito a cidades sustentáveis” (incisos I,V,VIII e X).
2.1 A usucapião especial de imóvel urbano segundo o Estatuto das Cidades
O Estatuto da Cidade disciplina em seus artigos 9° e seguintes, matéria de interesse social inquestionável, que é a usucapião especial urbana.
Pode-se dizer que esta modalidade de usucapião que tem como primordial finalidade a moradia, já havia sido prevista na Constituição da República de 1988, no Capítulo da Política Urbana, em seu artigo 183.
Segundo leciona Liana Portilho Mattos[17], a usucapião urbana foi inserida “no contexto e na esteira do comando constitucional da função social da propriedade, relacionando-se com o artigo 182 que estabelece sanções aos proprietários que não atendem a este princípio da política urbana”.
Disciplina o artigo 9° do estatuto da cidade:
Artigo 9º: Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1o O título de domínio será conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2o O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3o Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão
Pode-se afirmar que o entendimento pacífico da doutrina pátria é que este artigo, que repete a redação do artigo 183 da Constituição Federal de 1988, pune o proprietário que abandona a gleba urbana, deixando-a vazia, uma vez que a sua inércia ocasionou ocupação da área, concedendo aos posseiros as condições para que possam requerer em juízo a usucapião para a finalidade de moradia.
Neste sentido, pode-se dizer que o supracitado artigo não reconhece apenas um fato, mas sim um direito que emergiu deste fato, tendo em vista a permanência do possuidor no local ocupado, o qual poderá adquirir a propriedade pela via jurisdicional.
O Estatuto da Cidade possibilitou que a usucapião possa se realizar em cinco anos, em lotes cuja área não ultrapasse 250 (duzentos e cinquenta) metros, desde que o possuidor não seja proprietário de outro imóvel e que a posse seja destinada à sua moradia e ou de sua família. Este fato representou uma evolução da regularização fundiária nos municípios brasileiros, vez que a redução do prazo prescricional atendeu ao princípio da função social da propriedade.
2. 1. 1. Aspectos processuais da usucapião especial de imóvel urbano
Ressalta Moraes Sales[18], que processualmente a declaração da usucapião especial urbana pode ser pleiteada tanto pelo brasileiro nato quanto pelo naturalizado, bem como o estrangeiro residente no Brasil, uma vez que não se fez expressa menção quanto à delimitação de somente ser possível a brasileiros.
Em relação à posse nesta modalidade de usucapião, destaca-se o lapso temporal reduzido, que é de 05 anos, devendo este transcorrer contínua, mansa e pacificamente, tendo o possuidor animus domini.
Também conhecida por usucapião pro casa, pro habitatio ou pro morare, esta deverá ter a posse exercida exclusivamente para moradia do possuidor ou de sua família, sendo esta posse de caráter pessoal.
Em relação à coisa hábil, para esta modalidade de usucapião, o seu limite se dá em 250 (duzentos e cinqüenta) metros quadrados, tanto para a área total do terreno, quanto para a edificação. Outra característica específica desta modalidade, inserida no §3° do artigo 9°, é que a família ou o possuidor individual somente poderá usucapir por esta modalidade de usucapião, uma única vez, não sendo reconhecido os seu direito se pleitear novamente em juízo a aquisição da propriedade através desta modalidade, ou se já for proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Assim, tendo-se em vista que o conceito de família foi ampliado pela Constituição Federal de 1988, permitindo-se até mesmo a usucapião nos casos de união estável, esta Lei reconheceu o direito de propriedade para ambas as partes, bem como para qualquer dos pais e seus descendentes.
Quanto à comprovação de que o possuidor é ou não proprietário de outro imóvel urbano, resta extrema dificuldade, vez que poderia se afirmar que cabe ao adquirente o ônus da prova, nos termos do artigo 333 do Código de Processo Civil. No entanto, exigir-se do possuidor carente tal prova restaria impossível esta modalidade de usucapião, vez que em um país tão extenso quanto o Brasil, não há como este apresentar certidões negativas de todos os cartórios de registro de imóveis.
A fim de elucidar tal questão, Odete Medauar[19] assim disciplina:
Com base no artigo 333 do Código de Processo Civil, a doutrina e a jurisprudência tem equalizado o problema que seria para o usucapiente, que se presume carente, produzir tais provas em juízo, uma vez que elas são elementos necessários para a caracterização do fato constitutivo de seus direito.
Baseando-se no ora explicitado, será suficiente ao autor da ação de usucapião alegar a sua condição de não ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Havendo réu, caberá a este provar a inverdade desta alegação, vez que lhe cabe o ônus de provar existência de fato impeditivo do direito do autor.
Tendo-se em vista a forte influência constitucional que disciplinou esta Lei, o §1° do artigo 9°, trouxe o comando de que as sentenças de usucapião devem conferir o título de domínio tanta para o homem quanto à mulher, ou ambos, não sendo requisito o estado civil do possuidor.
Destarte, é oportuno ressaltar-se a controversa matéria acerca da possibilidade da usucapião de terras devolutas, pois alguns doutrinadores entendem que as mesmas não devem ser consideradas públicas.
Porém contra este entendimento equivocado, existe a Súmula 340 do STF que dirime qualquer dúvida acerca deste tema, pois ressalta que “desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”, e, sendo as terras devolutas bens públicos, não são aptas à usucapião especial urbana.
2.2 A usucapião especial coletiva urbana
Esta é a modalidade de usucapião mais inovadora existente no ordenamento jurídico pátrio, e encontra-se disciplinada no artigo 10 da Lei 10.247/2001:
Artigo 10: As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.
§ 2o A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis.
§ 3o Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas.
§ 4o O condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio.
§ 5o As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes.
Fato inegável nos dias atuais é o grande avanço das favelas e loteamentos irregulares nas cidades brasileiras que, consequentemente, derivam-se de invasões e compras irregulares de terrenos.
Disserta Ricardo Pereira Lira[20] que:
as populações carentes, predominantemente vindas do campo e até mesmo de áreas urbanas menos atendidas, em virtude da valorização do centro urbano, inclusive peça prática das renovações urbanísticas, se assentam nas periferias.
Atualmente, se pode ver nas cidades uma grande parcela da população vivendo irregularmente e de maneira clandestina, sob a ótica do registro de imóveis, diante da enormidade de conjuntos habitacionais e conglomerados humanos, tais como as favelas, loteamentos irregulares e clandestinos, que se enraízam e se tornam irremovíveis na paisagem das grandes cidades, integrando, consequentemente, a zona urbana de maneira definitiva.
O legislador viabilizou o acesso das comunidades carentes na obtenção de suas moradias, tendo-se em vista a dificuldade encontrada pela população de baixa renda em adquirir a propriedade pelos meios convencionais, para que venham usucapir, conjuntamente, com a finalidade de que cada morador destas localidades possa se tornar o real proprietário de seu terreno.
Assim, é de suma importância o instituto da usucapião especial coletiva urbana para a perfeita regularização fundiária dos grandes centros, vez que possibilita o desenvolvimento organizacional regular destas cidades, podendo-se até extinguir as moradias irregulares existentes nas mesmas.
Insta ressaltar que divergências foram apontadas pela doutrina acerca de ser a usucapião especial coletiva urbana um direito novo no ordenamento pátrio. No entanto, observa-se que a Lei fala em áreas com mais de 250 (duzentos e cinquenta) metros quadrados, impossibilitando a usucapião especial urbana individual.
Como finalidade desta usucapião, temos a consolidação de um condomínio e a possibilidade de substituição processual e de formação de litisconsórcio ativo com inúmeros possuidores, o que não existia anteriormente. Os demais requisitos desta modalidade de usucapião serão estudados de forma aprofundada em capítulo específico.
3 REQUISITOS PROCESSUAIS ATINENTES A TODAS AS MODALIDADES DE USUCAPIÃO
Conforme podemos observar, em todas as modalidades de ação, existem requisitos essenciais estabelecidos na lei processual civil que são indispensáveis para a obtenção do direito tutelado. Os requisitos essenciais da ação de usucapião serão analisados a seguir.
3.1. Da possibilidade jurídica do pedido e do interesse de agir
Possibilidade jurídica do pedido é a aptidão do pedido para ser acolhido, assim, se em tese é possível que o pedido seja acolhido, há a constatação desta. Essa condição foi pensada por Liebman para explicar os casos em que se pedia divórcio na Itália, à época, proibido. Em uma situação como aquela, nem mesmo deveria se processar, visto que o pedido não era admitido pelo ordenamento jurídico. Posteriormente houve aprovação dessa possibilidade e Liebman ficou sem seu único exemplo para explicar tal condição. Diante disso, na edição seguinte de seu livro o autor resolveu por excluir essa condição. Todavia, dadas as dificuldades de comunicação naquela época, essa informação não foi passada aos processualistas brasileiros e, por isso, tal condição consta em nosso Código de Processo Civil.
Segundo Didier[21], trata-se de algo um tanto quanto inapropriado, visto que, se o pedido não pode ser acolhido pelo ordenamento jurídico, a hipótese seria de improcedência do mesmo, e não de carência de ação, que é decisão sem exame de mérito. Tal entendimento encontra fundamento legal no artigo 169, I, do Código de Processo Civil.
Desta forma, a possibilidade jurídica do pedido se enquadra na ação de usucapião, quando o autor da demanda tenha formulado pedido individualizando, atendidos os requisitos essenciais da modalidade que pretende usucapir e desde que o bem imóvel que pretende transferir para o seu domínio seja passível de ser usucapido.
Já a condição do interesse de agir, segundo Didier[22], deveria ser considerada um pressuposto processual, dada a sua importância. Trata-se da necessidade de que a demanda seja útil e necessária. Deve-se estabelecer que aquela demanda acarretará algum proveito, não se tratando de frivolidade. Por isso, quando há a perda do objeto, fala-se na perda do interesse de agir, pois o processo não terá qualquer utilidade.
Uma demanda necessária, por sua vez, é demonstrada pela necessidade de ir a juízo para que se atinja seus propósitos. Em não se restando comprovada essa necessidade, diz-se que tal ida é abusiva.
Não obstante, parte da doutrina defende que o interesse de agir tem uma terceira dimensão, pois, além da utilidade e da necessidade, no exame do interesse de agir também estaria adequação, ou seja, busca-se comprovar que o procedimento seja adequado ao que se pede. De forma diversa, o procedimento seria considerado inadequado, pela falta de interesse-adequação. Isto por que a escolha do procedimento nada tem a ver com a demanda, visto que aquela é puramente processual. Além disso, quando a parte escolhe o procedimento inadequado, nada impede que o juiz o conserte, diferentemente da utilidade e da necessidade.
Com efeito, Luiz Rodrigues Wambier, Flávio Renato Correia de Almeida e Eduardo Talamini[23], afirmam que o interesse processual nasce, portanto, da necessidade da tutela jurisdicional do Estado, invocada pelo meio adequado, que determinará o resultado útil pretendido, do ponto de vista processual. Sendo assim, não é admitida a usucapião nos casos em que o autor da demanda poderá adquirir a propriedade do imóvel pela via ordinária, ou seja, administrativa. Isto ocorre quando, por exemplo, o possuidor possui uma escritura válida de compra e venda, mas não registra para se eximir do pagamento do registro no Cartório de Registro de Imóveis competente e do imposto de transmissão de bens imóveis (ITBI), ou quando os herdeiros pleiteiam a usucapião de imóvel que deveria ser objeto de partilha, uma vez que com a mesma poderão regularmente registrar o mesmo no registro de imóveis.
3.2 Da legitimidade: capacidade de ser parte, de estar em juízo e postulatória
O conceito de parte se relaciona com a capacidade processual prevista nos artigos 7º e seguintes do Código de Processo Civil. Com referência ao conceito de parte, mister se faz distinguir três aspectos: capacidade de ser parte, capacidade de estar em juízo e capacidade postulatória.
A capacidade de ser parte está prevista especialmente no artigo 12. Ela se refere à capacidade de ter direitos como ser humano, uma vez que a personalidade civil é reconhecida desde o nascimento com vida, embora desde a concepção se resguardem alguns direitos do nascituro, nos termos do artigo 2º do Código de Processo Civil. Toda pessoa pode ser titular de direitos civis e figurar em relação jurídica processual seja como autor ou réu.
A capacidade de estar em juízo significa legitimidade para o processo e somente é cabível àqueles que se encontrarem no exercício de seus direitos, nos termos do artigo 7º do Código processual civil. Essa legitimação não se confunde com capacidade de ser parte, visto que constitui um requisito do processo de usucapião e não da ação, dizendo respeito à capacidade de exercício da demanda. Desta forma, analisando-se os artigos 4º, 5º, 8º, 9º e 1.767, todos do Código Civil, os absolutamente incapazes não poderão praticar qualquer ato no processo, devendo haver representação e os relativamente incapazes o poderão fazer, mediante assistência de quem lhes complete a capacidade.
Já a capacidade postulatória é o poder de requerer pessoalmente em juízo e somente será atingido através de pessoas especializadas e mediante outorga de mandato por escrito a advogado legalmente habilitado e inscrito nos quadros da Ordem de Advogados do Brasil[24].
3.3 Dos requisitos gerais e especiais
Conforme disciplina o artigo 282 do Código de Processo Civil, são requisitos da petição inicial e deverão estar indicados na mesma: o juiz a que é dirigida; prenomes, sobrenomes, estado civil, profissão, domicílio e residência do autor e réu; fato e fundamentos jurídicos do pedido; pedido com suas especificações; valor da causa; provas que o autor pretende produzir e requerimento para citação do réu.
Como requisitos especiais da ação de usucapião, temos o disposto nos artigos 942 e 943 do Código processualista, a saber, o autor deverá juntar a planta do imóvel usucapiendo, requererá a citação do proprietário e dos confrontantes do imóvel e por edital os réus em local incerto e terceiros interessados; serão intimados por via postal as Fazendas Públicas da União, Estado e Município em que se localiza o bem objeto da ação.
Ademais, outros documentos especiais devem ser apresentados pelo autor da ação de usucapião, como a certidão atualizada do imóvel, a fim de que se comprove em nome de quem o imóvel está registrado e demais certidões negativas dos demais cartórios de registros de imóveis, se houver no local da situação do bem imóvel; certidões de ações possessórias e petitórias em nome do usucapiente e de seus antecessores na posse, a fim de se comprovar que a posse, de fato, foi mansa, pacífica e ininterrupta; memorial descritivo a ser apresentado conjuntamente à planta do imóvel, sendo que ambos deverão possuir assinatura do engenheiro responsável com prova de anotação de responsabilidade técnica no CREA ao qual o mesmo está vinculado; dependendo da modalidade de usucapião pretendida também é necessária certidão dos cartórios de registros de imóveis da localidade do bem, comprovando que o autor da ação não é proprietário de quaisquer outros imóveis (usucapiões especial individual e coletiva).