4 A USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVA URBANA E SEUS REQUISITOS PROCESSUAIS ESSENCIAIS E ESPECÍFICOS
4.1 Aspectos gerais
Tendo em vista esta especialíssima modalidade de usucapião, seus requisitos essenciais e processuais vão ser objeto de estudos do presente capítulo, vez que o Estatuto das Cidades ao implementá-la, fez exigências distintas sobremaneira de todas as outras modalidade de usucapião existentes em nosso ordenamento jurídico.
Sendo assim, o presente capítulo objetiva complementar o estudado no capítulo 3 acima descrito, analisando os requisitos específicos e próprios da usucapião especial coletiva urbana.
4.2. Requisitos processuais
Reza o artigo 10 do Estatuto da cidade, que nas áreas urbanas com mais de 250 (duzentos e cinqüenta) metros quadrados onde não se possa identificar os terrenos, haverá a possibilidade de a comunidade carente, pleitear em juízo, coletivamente a usucapião especial coletiva urbana.
Nos dizeres de Portilho Mattos[25], os grandes obstáculos enfrentados pelos municípios para regularizarem de forma ágil o parcelamento do solo era a abordagem individualista e privatista disciplinada no Código Civil de 1916. Até mesmo a Constituição Federal de 1988, intitulada de “constituição cidadã” não operou com veemência a esta possibilidade da usucapião coletiva que trouxe o novel Estatuto da Cidade.
Pode-se dizer que esta nova modalidade possibilita de forma nunca antes existente a regularização fundiária dos centros urbanos, pois a prova da obtenção do prazo prescricional poderá se fazer de forma coletiva, assim, desde que demonstrada a antiguidade da ocupação no prazo mínimo de cinco anos após a vigência do Estatuto da cidade, poderá a comunidade carente proceder à usucapião.
Esta possibilidade se deve à grande mobilidade dos moradores, principalmente daqueles que habitam em favela, vez que é comum a constante mudança de uma favela para outra vizinha e até dentro da mesma favela, devido a insalubridade e riscos que os barracos apresentam em determinadas regiões destes conglomerados.
Nesta modalidade de usucapião, não existe limite para o tamanho da área total a ser usucapida, apenas deverá ser superior a 250 (duzentos e cinquenta) metros quadrados.
Destarte, como nas outras modalidades de usucapião acima expendidas, não é possível a usucapião de terras públicas, sejam elas de interesse comum do povo, especial ou devolutas. Assim, a área deverá ser de particular e ocupada por possuidores que habitam em barracos ou habitações precárias.
Benedito Silvério Ribeiro[26] aduz que:
Como óbvio, tendo em vista os parâmetros constitucionais, não é possível aceitar que cada um dos ocupantes receba fração ideal, conquanto possa ser diferenciada (§3° do artigo 10 do Estatuto da Cidade), que supere 250m², quantum estipulado para moradia urbana, consoante se infere do preceito contido no artigo 183 da CF.
Portanto, mister há de ressaltar que a metragem máxima para cada condômino não poderá ultrapassar os contornos da política urbana inserida no artigo 182 da CF. Neste sentido, o ora possuidor não poderá usucapir área maior do que 250 (duzentos e cinquenta) metros quadrados, mesmo não existindo o limite máximo previsto no artigo 10 da Lei, pois assim, restaria inconstitucional este artigo.
Nos termos do artigo 10, §3° da Lei, cada possuidor terá uma fração ideal idêntica à dos outros condôminos após o registro da sentença no cartório de registro de imóveis. Diz-se que o legislador assim determinou, tendo em vista a desorganização das moradias existentes nas favelas brasileiras. Pode-se afirmar que esta determinação garantiu ampla liberdade ao Poder Público para implementar programas de regularização fundiária, para se utilizar da melhor maneira o solo urbano nas áreas a serem usucapidas coletivamente pela população carente.
Nos dizeres de Portilho[27]:
Muitas vezes, a forma histórica de ocupação da área consagrou injustiças que podem ser corrigidas por um projeto que, ainda que respeitando as especificidades da ocupação, redistribua de forma mais ética a terra na favela. Essa possibilidade liberta o poder público de um grande obstáculo prévio ao Estatuto da Cidade para a regularização de favelas: o fato de que ao propor qualquer rearranjo territorial na área a ser usucapida, o Poder Público quebrava a continuidade da posse de cinco anos do possuidor relocalizado e o prazo se reiniciava do zero.
Destarte, o artigo possibilita que se os usucapientes ingressarem em juízo com acordo coletivo, as frações ideais poderão ser dispostas diversamente na forma pactuada para cada um dos futuros condôminos. Afirma-se que esta possibilidade pode ser uma boa solução quando a favela for ordenada territorialmente, ou quando a organização comunitária for enraizada e legitimada socialmente, casos em que serão desnecessárias as intervenções do Poder Público.
4.2.1 Da Legitimidade ativa, do interesse de agir e do objeto hábil
Reza o artigo 12 da Lei 10.257/2001:
Artigo 12. São partes legítimas para a propositura da ação de usucapião especial urbana:
I – o possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originário ou superveniente;
II – os possuidores, em estado de composse;
III – como substituto processual, a associação de moradores da comunidade, regularmente constituída, com personalidade jurídica, desde que explicitamente autorizada pelos representados.
§ 1o Na ação de usucapião especial urbana é obrigatória a intervenção do Ministério Público.
§ 2o O autor terá os benefícios da justiça e da assistência judiciária gratuita, inclusive perante o cartório de registro de imóveis.
O legislador quando da elaboração do presente artigo vislumbrou dirimir dúvidas que pudessem surgir na prática do processamento das ações de usucapião especial coletiva, estabelecendo quem são os legitimados a propor a ação de usucapião.
São legitimados: o possuidor em litisconsórcio ativo que pode ser superveniente à propositura da ação; o conjunto de moradores/possuidores do imóvel, através da composse exercida por todos que dá azo ao litisconsórcio e a associação de moradores que pode ingressar em juízo, e através da substituição processual, representar seus associados.
A “ocupação” constante no artigo 10 do Estatuto deve ser realizada por população carente, que é quem tem a legitimidade ativa para a propositura da ação de usucapião. A doutrina entende que esta legitimidade advém do objetivo do legislador em dar oportunidade à população de baixa renda para que consiga usucapir uma moradia para habitar.
O possuidor poderá pleitear a usucapião coletiva somente ou com sua família, porém, esta deverá ser de forma pessoal e direta, sendo proibida a posse por intermédio de prepostos. Como a finalidade desta usucapião foi possibilitar um teto para a população de baixa renda morar, o possuidor não poderá ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Ainda, deverá o usucapiente exercer a posse, no prazo mínimo de cinco anos, com animus domini, ou seja, além de utilizá-la para a moradia, também deverá ter o ânimo de dono, ou seja, portar-se perante a sociedade como se realmente fosse o proprietário daquela gleba.
Entende grande parte da doutrina que a expressão “para sua moradia” constante do caput do artigo 10 da Lei, não afasta a possibilidade da utilização do imóvel para pequenos comércios, tais como, “boteco”, “venda” e “quitanda”, dentre outros. Ressaltando-se este posicionamento, aduz o professor Benedito Silvério[28]:
As favelas, no entanto, constituem um todo orgânico e devem ser consideradas como unidades, daí por que alguns imóveis comerciais não podem, desde que exista predominância de residência, impedir futura urbanização. Não é de afastar a possibilidade de usucapião coletiva, no caso em que poucos imóveis sejam utilizados para fins comerciais (...).
O possuidor, a fim de cumprir o prazo prescricional estabelecido no caput do artigo 10 da Lei, poderá somar a sua posse com a do seu antecessor, não fazendo o legislador qualquer ressalva em ser o sucessor obrigatório ou facultativo, desde que ambas sejam contínuas, ou seja, não haja intervalo de tempo entre a posse do antecessor e a do sucessor.
Segundo doutrina dominante, a ação coletiva especial exige que os interesses individuais não sejam conflitantes, pois não há possibilidade de se obrigar quem quer que seja a usucapir coletivamente, portanto, os interesses devem ter origem comum, não obstante serem os direitos divisíveis.
Quanto ao litisconsórcio dos moradores da comunidade carente, ou seja, a adesão ou não de certos possuidores à usucapião coletiva, certas diferenças quanto à localização de suas glebas podem interferir sobremaneira no intento dos demais usucapientes.
Sendo o imóvel possível de ser “desmembrado” da totalidade, o litisconsórcio será facultativo, pois a ação coletiva de usucapião não se torna inviável com a não adesão dos mesmos. Entende-se por imóvel desmembrado aquele que seja marginal à área, ou seja, que possa ser individualizado, vez que não está dentre os demais.
Outrossim, caso o imóvel esteja inserido no interior da área que se queria usucapir e o possuidor não concorde com o ingresso da ação coletiva de usucapião, resta esta prejudicada, vez que o litisconsórcio neste caso será necessário, vez que a recusa inviabiliza a demanda dos demais possuidores.
Porém, ressalte-se que existe uma solução jurídica para tal impasse, vez que os possuidores podem ingressar com a ação coletiva em juízo e procederem com a citação do possuidor omisso para integrar o pólo ativo da lide. Caso aceite, a legitimação resta cumprida, caso discorde, caberá ao juiz verificar se a procedência da demanda será oposta às suas conveniências ou se a recusa configura abuso de direito.
Assim, entendendo o juiz ser a recusa justificada, o processo será julgado extinto e os demais possuidores deverão ingressar individualmente, em querendo, com a ação de usucapião especial urbana disposta no artigo 9° do Estatuto da Cidade, porém, caso entenda a não anuência injustificada, o feito prosseguirá com situação semelhante à supressão de outorga de cônjuge.
A participação das associações de moradores, que possuem legitimidade para atuarem como substitutos processuais podem assumir papel relevante na urbanização posterior da área usucapida coletivamente, exigindo providências do Poder Público, promovendo a realização de plantas e memoriais descritivos das glebas usucapidas, das vias públicas e das áreas reservadas.
4.2.2. Dos demais requisitos processuais essenciais
A primeira parte do § 4º do artigo 10 do Estatuto da Cidade, disciplina que o condomínio especial que vem a ser constituído após a sentença que julgou procedente o pedido de usucapião especial coletivo urbano é indivisível e não se extingue. No entanto, sua segunda parte aduz que por deliberação de dois terços dos condôminos poderá extinguir-se, no caso de urbanização posterior à sua constituição.
É cediço que para a efetivação e execução da urbanização relativa a área urbana que foi objeto da usucapião coletiva, deverá haver previsão de recursos no plano diretor dos municípios com mais de vinte mil moradores.
A fim de se obter a posterior urbanização, não se restringirá a regularização fundiária em mera outorga de título de domínio, mas sim em uma efetiva realização de infra-estrutura básica da área usucapida coletivamente. Desta forma, o Poder Público poderá urbanizar a área, ou permitir que os próprios moradores a realizem, desde que observadas normas básicas para que não se comprometa o ordenamento do solo estabelecido no plano diretor do município.
Segundo Benedito Silvério[29]:
as leis estaduais e municipais que venham complementar o Estatuto da Cidade precisam atentar para o fato de que se evitem novas invasões, sobremodo em locais inapropriados e cuja regularização demande gastos extraordinários, a fim de que não desfigurem as cidades e não se prejudiquem aqueles que com muito custo adquirem seus imóveis e observam as posturas.
Quanto às deliberações na administração do condomínio especial, afirma Portilho Mattos[30]:
as decisões tomadas pela maioria dos condôminos obrigam a todos. Aqui, trata-se de maioria simples, ou seja, maioria dos presentes à assembléia. Esta é uma regra básica de qualquer sistema democrático: os que se ausentam devem submeter-se às decisões tomadas por aqueles que participam do processo de tomada de decisão. Da mesma forma, os vencidos em uma decisão tomada de forma democrática devem conformar-se ao decidido.
Tal como acontece na usucapião especial urbana, os possuidores encontram-se amparados pela justiça gratuita e assistência judiciária gratuita, com a isenção do pagamento de custas e honorários advocatícios pelo prazo de 05 anos, nos termos do artigo 12 da LAJ, bem como para o registro da sentença da usucapião coletiva no cartório de registro de imóveis, tendo em vista a hipossuficiência financeira dos posseiros que buscam esta via para a obtenção da propriedade.
O Estatuto da Cidade trouxe outra inovação disposta em seu artigo 13, que é a possibilidade de o possuidor que comprove a existência de todos os requisitos exigidos na Lei, alegar como matéria de defesa esta posse nas ações em que for réu, podendo até mesmo a usucapião especial urbana ser reconhecida e sentenciada nas ações em que o propósito do autor era a retirada do posseiro do imóvel.
Estabelece o artigo 11 do Estatuto da Cidade que “na pendência da ação de usucapião especial urbana, ficarão sobrestadas quaisquer outras ações, petitórias ou possessórias, que venham a ser propostas relativamente ao imóvel usucapiendo”.
Sendo esta regra de caráter processual, visa estabelecer uma ordem hierárquica de prioridades acerca da usucapião especial coletiva, em detrimento das demais ações relativas ao mesmo terreno.
Leciona Mores Salles[31] que esta norma visa impedir a concomitância da ação de usucapião e das ações petitórias ou possessórias, com “o objetivo evidente de evitar decisões contraditórias, que poderiam decorrer do processamento concomitante ou simultâneo de ambas as ações”.
Por fim, objetivando diminuir a morosidade nos processos de usucapião, a Lei disciplinou em seu artigo 14 que o rito processual a ser observado é o sumário. Esta determinação, nos dizeres de Portilho Mattos[32] “deriva de uma conjunção de facilidades admitidas pelo Estatuto da Cidade”.
Não obstante, também haverá a participação do Ministério Público nesta modalidade de usucapião, exercendo o papel de custos legis, vez que deverá acompanhar todos os atos do Processo, nos termos dos artigos 943 e 944 do Código de Processo Civil e artigo 12, §1° do Estatuto da Cidade. Esta participação do Parquet é determinante na concretização da prescrição aquisitiva pela usucapião especial coletiva.
Neste entendimento, ressalta Fiorillo[33]:
O Ministério Público além de participar na ação de usucapião especial urbana intervindo obrigatoriamente (artigo 12, § 1° do Estatuto), tem legitimidade ativa para propositura da usucapião ambiental metaindividual em decorrência do que estabelece o artigo 127, caput da CF.
Diz-se que a sentença da usucapião coletiva é declaratória de direito, e não constitutiva de direito, vez que o juiz declara a existência de requisitos autorizadores da aquisição do domínio pela usucapião através deste decisium.
Assim, para fins de registro do título, o possuidor ou a associação de moradores, caso ocorra a substituição processual, utilizar-se-á desta sentença, levando-a ao cartório de registro de imóveis, vez que é o ato que aperfeiçoa a prescrição aquisitiva do domínio, encerrando a insegurança da posse que outrora existia.
Portanto, a sentença que declara a usucapião especial coletiva urbana reconhece a aquisição da propriedade que foi realizada pelos posseiros, garantindo-se, assim, a segurança jurídica para fins de que possam obter sua regular moradia.
4.3 Críticas à ação de usucapião especial coletiva urbana
A doutrina pátria faz críticas do caráter processual da ação de usucapião especial coletiva urbana, afirmando que o número elevado de pessoas no polo ativo dificulta o regular andamento processual, haja vista a morosidade na citação e intimação de todos os condôminos, confrontantes, réus e terceiros interessados, além da intimação de cônjuges, herdeiros, dentre outros.
Também será dificultoso para o poder público julgar as ações de usucapião especial coletiva, tendo em vista a enorme dificuldade para produção de provas, tanto documentais (comprovação de que o possuidor não é proprietário de outro imóvel urbano ou rural), quanto testemunhais (possuidor recente tente comprovar que reside há mais de cinco anos no terreno), bem como para reunir as centenas de moradores para deliberarem acerca do condomínio especial criado no Estatuto da Cidade.
Por fim, há de se ressaltar que as críticas da doutrina não são unânimes, uma vez que o assunto tratado pelo Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) é bastante polêmico e divergente, já que a manutenção das favelas não é a melhor maneira de se atender ao plano diretor dos municípios, que visam o ordenamento urbano, com o regular parcelamento do solo. Além disso, a população carente vive marginalizada nessas áreas, devido aos riscos à saúde e integridade física, bem como o perigo estrutural dos barracos e da própria comunidade.
Em contrapartida, o Poder Público não pode deixar de atender à enormidade de pessoas carentes existentes no Brasil, impedindo que tenham o constitucional direito à moradia. Além disso, deve ser atendida a função social da propriedade, vez que a usucapião de favelas, é direito coletivo, vide a abrangência de centenas de possuidores carentes que não poderiam, pelos meios próprios, obter uma regular moradia, mas desde que cumpridos todos os requisitos legais e processuais à concessão da sentença declaratória de usucapião especial coletiva urbana.