4. O DANO EXTRAPATRIMONIAL COLETIVO AMBIENTAL: DO CONCEITO À QUANTIFICAÇÃO
4.1. A AFIRMAÇÃO DO DANO EXTRAPATRIMONIAL COLETIVO AMBIENTAL
Nesse último capítulo, consubstanciado nos estudos desenvolvidos nos capítulos precedentes, o tema central do trabalho será detalhado, e buscar-se-á chegar a uma conclusão sólida sobre a possibilidade de configuração do dano extrapatrimonial coletivo em matéria ambiental, tudo com fulcro na legislação nacional, nos estudos doutrinários e decisões jurisprudenciais a respeito.
O ordenamento jurídico brasileiro, a exemplo do Código Civil de 2002, aos poucos vem introduzindo dispositivos condizentes com a tendência de constitucionalização do direito em geral – como ocorrem com a função social dos contratos e com adequação do direito de propriedade com o meio ambiente –, contudo, permanecem arraigados na mentalidade da sociedade e de alguns operadores do direito, valores dissociados da realidade atual, tais quais a prevalência do individualismo, do valor absoluto da propriedade e do caráter econômico dos bens da vida, acarretando, assim, interpretações privatistas aos conflitos transindividuais[139], como será a frente verificado.
Valores como o materialismo e o imediatismo tornam incompreensíveis termos como solidariedade, bens imateriais e ética das gerações vindouras, o que dificulta a interpretação e aplicação dos ramos jurídicos que tratam de interesses difusos como o Direito Ambiental.[140]
No entanto, como visto nos capítulos antecedentes, a postura jurídica caminha no sentido da ampla proteção do ser humano, com a elasticidade da proteção dos valores extrapatrimonias e com o realce dos interesses da coletividade. Carlos Alberto Bittar citado por Medeiros Neto reforça que com “a evolução operada, na linha da coletivização da defesa de interesses, entes não personalizados e grupos ou classes ou categorias de pessoas indeterminadas, passaram também a figurar como titulares de direito à reparação civil (...).”[141]
Nesse sentido, pedido corriqueiramente feito nas ações civis públicas em todo país é a reparação por dano extrapatrimonial coletivo ambiental.
A existência deste tipo de lesão, todavia, vem sendo negada por alguns doutrinadores e até pelo Superior Tribunal de Justiça. A justificativa principal em desfavor da reparação pelos danos extrapatrimonias coletivos em matéria ambiental é assim traduzida na seguinte ementa:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO AMBIENTAL. DANO MORAL COLETIVO. NECESSÁRIA VINCULAÇÃO DO DANO MORAL À NOÇÃO DE DOR, DE SOFRIMENTO PSÍQUICO, DE CARÁTER INDIVIDUAL. INCOMPATIBILIDADE COM A NOÇÃO DE TRANSINDIVIDUALIDADE (INDETERMINABILIDADE DO SUJEITO PASSIVO E INDIVISIBILIDADE DA OFENSA E DA REPARAÇÃO). RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.[142]
O emblemático entendimento adotado pela Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça em 02.05.2006 no julgamento do Recurso Especial n. 598.281, no qual se debatia a lesão ao meio ambiente por conduta de empresa do setor imobiliário, revela um posicionamento de não ser indenizável o dano moral coletivo em situações que envolvem ofensas a direitos transindividuais, em especial danos ao meio ambiente. Para a maioria dos julgadores, na esteira do entendimento do Ministro Teori Zavascki “a vítima do dano moral deve, necessariamente, ser uma pessoa”.
A lide originou-se no Estado de Minas Gerais, onde o Ministério Público estadual pleiteou danos morais coletivos em decorrência de danos ambientais causados pela Municipalidade de Uberlândia e pela empresa do setor imobiliário Canaã Ltda, havendo condenação em primeira instância. Ocorre que a decisão foi reformulada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais e confirmada em instância superior pela impossibilidade deste tipo de reparação.
Segundo o posicionamento do Ministro Teori Albino Zavascki, a transindividualidade não encontra compatibilidade com o dano moral e, ademais, segundo ele, o Ministério Público não indicou, no caso, em que consistiria o alegado dano moral. Assim, vejamos em seu voto:
É perfeitamente viável a tutela do bem jurídico salvaguardado pela Constituição (meio ambiente ecologicamente equilibrado), tal como a realizada nesta ação civil pública, mediante a determinação de providências que assegurem a restauração do ecossistema degradado, sem qualquer referência a um dano moral. Registre-se, por fim, não haver o autor sequer indicado, na presente ação civil pública, em que consistiria o alegado dano moral (pessoas afetadas, bens jurídico lesados, etc.). (...). Ora, nem toda conduta ilícita importa em dano moral, nem, como bem observou o acórdão recorrido, se pode interpretar o art. 1º da Lei da Ação Civil Pública de modo “a tornar o dano moral indenizável em todas as hipóteses descritas nos incisos I a V do art. 1º da referida lei”. (Grifo nosso).
O entendimento acima esposado foi seguido majoritariamente pelos demais ministros da corte superior, porém, cabe ressaltar que houve voto vencido que acertadamente divergiu dos demais. O Ministro Luiz Fux entendeu ser plausível a condenação dos recorridos ao pagamento de dano moral, decorrente da ilicitude da conduta dos réus para com o meio ambiente, concluiu o ministro que “o meio ambiente ostenta na modernidade valor inestimável para a humanidade, tendo por isso alcançado a eminência de garantia constitucional” e que ademais “porquanto a Carta Magna de 1988 universalizou este direito, erigindo-o como um bem de uso comum do povo, o meio ambiente pertence a todos”. Assim, “com o advento do novel ordenamento constitucional – no que concerne à proteção ao dano moral – possibilitou ultrapassar a barreira do indivíduo para abranger o dano extrapatrimonial”. Desta sorte, tratando-se de defesa do bem ambiente, podem co-existir o dano patrimonial e o dano moral, interpretação que prestigia a real exegese da Constituição Federal em favor de um ambiente sadio e equilibrado.
Outrossim, como justificar o fato de indenizar prejuízo que atinge uma só pessoa e negar compensação a dano, de maior gravidade, que atinge milhares de pessoas?
Nesse toar, parece ter razão o Ministro Luiz Fux em defesa do dano moral coletivo. Salvo melhor juízo, o voto vencedor na máxima instância não se apresenta como a forma correta de se entender o tema, adota-se uma orientação individualista, que despreza o fato de o meio ambiente ser um interesse difuso e não privado, como passo a expor.
“A indefinição doutrinária e jurisprudencial concernente à matéria decorre da absoluta impropriedade da denominação dano moral coletivo, a qual traz consigo – indevidamente – discussões relativas à própria concepção do dano moral no seu aspecto individual”, revela Leonardo Roscoe Bessa.[143]
No mesmo sentido, Morato Leite esclarece que a nomeclatura dano moral coletivo é um entrave para a formulação de um conceito mais objetivo, amplo e desvinculado da palavra moral em si mesma que pode ter várias significações, fazendo nítida preferência pelo termo extrapatrimonial.[144]
A verdade é que o dano extrapatrimonial coletivo não se confunde com o dano moral individual. Se para este, como dito no capítulo segundo deste trabalho, não há mais a exigência da vinculação obrigatória à noção de dor, sofrimento ou qualquer afetação à integridade psíquica da pessoa, no que se refere ao dano extrapatrimonial coletivo esta exigência é ainda mais imprópria.
Reconhecer o dano extrapatrimonial coletivo é, sem dúvida, mais um avanço nos constantes desdobramentos da responsabilidade civil. Medeiros Neto é enfático nesse sentido:
A ampliação do dano extrapatrimonial para um conceito não restrito ao mero sofrimento ou à dor pessoal, porém extensivo a toda modificação desvaliosa do espírito coletivo, ou seja, a qualquer ofensa aos valores fundamentais compartilhados pela coletividade e que refletem o alcance da dignidade de seus membros. [145]
Na órbita social existem valores, aceitos e compartilhados pela coletividade, considerados de extrema relevância no seio comunitário, cujo respeito passou a ser reivindicado e exigido.[146]
Nesse panorama, não se pode deixar de reconhecer que da mesma forma que o indivíduo tem sua carga de valores, também a comunidade tem sua dimensão ética, desatrelada das pessoas que integram o grupo social quando consideradas individualmente, tratam-se de valores indivisíveis, que não se confunde com cada elemento da coletividade. [147]
Como enfatiza Gabriel A. Stigliz é no aspecto da moral dos grupos humanos que se encontra o ponto nevrálgico, no qual a teoria dos danos entra em contato com uma nova dimensão social dos sentimentos e aspirações humanas, em um mundo de convivência, de necessidades e expectativas que são compartilhadas em sociedade.[148]
André Ramos, captando essas ideias, assevera que “o ponto chave para a aceitação do chamado dano moral coletivo está na ampliação de seu conceito, deixando de ser o dano moral um equivalente da dor psíquica, que seria exclusividade de pessoa física”. E acrescenta que a reparação do dano moral, em face de pessoa jurídica, constituiu passo primordial para a aceitabilidade deste tipo de dano em relação a uma coletividade, que possui valores morais e um patrimônio ideal merecedor de reparação.[149]
Vê-se, pois, que o dano extrapatrimonial coletivo não está vinculado ao sofrimento sentido pela pessoa física, mas, sim, se refere à violação de valores compartilhados pela comunidade, cuja lesão possui o condão de atingir a qualidade de vida, o bem-estar social, entre outros valores que reflitam na dignidade humana. Resta, pois, rechaçado o posicionamento de que o dano moral tem caráter personalíssimo e não se coaduna com a noção de transindividualidade como defendido pelo STJ e também por renomados juristas, a exemplo de Rui Stoco.[150]
Nessa seara, Bittar Filho conceitua dano extrapatrimonal coletivo como: "injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos”. E continua:
Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico; quer dizer isso, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto imaterial.[151]
No que atine ao dano moral em decorrência de prejuízos ao meio ambiente, algumas considerações devem ser feitas. Não há dúvida que a lesão ambiental causa prejuízo ao habitat onde o homem vive, exerce suas relações interpessoais e divide sua experiência com a comunidade. Inevitavelmente, gera reflexos em seus costumes, sua cultura, sua economia, seu patrimônio, sua subsistência, seu modo de viver, sua qualidade de vida, sua saúde, sua dignidade, sua moral.[152]
Nesse sentido, não há como negar que o dano ambiental possa ter reflexo extrapatrimonial no âmbito da sociedade, tendo em vista a violação de valores essenciais e inerentes a esta, tal qual o direito fundamental de viver em um ambiente sadio, ecologicamente equilibrado, estética e paisagisticamente conservado, com qualidade de vida e saúde.
Nesse viés, o dano extrapatrimonial coletivo ambiental vem assim sendo definido pela nossa doutrina:
O dano ambiental extrapatrimonial é, portanto, uma espécie autônoma do gênero dano extrapatrimonial (neste contexto especificadamente causado por uma lesão ao meio ambiente), é o reflexo negativo do dano ambiental nos bens de natureza extrapatrimonial sejam eles de caráter individual ou coletivo. (...). O dano ambiental extrapatrimonial coletivo diz respeito à violação do interesse comum de toda a sociedade ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, por sua vez, pode-se dizer que o sentimento negativo suportado pela coletividade quando há dano ambiental é, em regra, de caráter objetivo, e não, referente a interesse subjetivo particular.[153]
Oliveira conclui que “toda ofensa ao meio ambiente capaz de ensejar uma diminuição na qualidade de vida da comunidade ou do indivíduo é passível de reparação por danos morais”.[154]
Flávio Tartuce, por sua vez, defende ser indenizável o dano de caráter extrapatrimonial da coletividade em decorrência dos danos ambientais, em razão de a Constituição Federal, em seu artigo 225, proteger o meio ambiente e caracterizá-lo como bem pertencente a todos, bem difuso, visando à sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações.[155]
Assim, a configuração do dano extrapatrimonial coletivo em matéria ambiental tem intrínseca relação com a ofensa à saúde, ao bem-estar e à qualidade de vida da sociedade e o direito de viver em um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. Podendo ser pleiteado, pois, quando qualquer desses valores e interesses que permeiam toda a sociedade, grupo, categoria ou classe forem violados. Cumpre deixar claro que só há razão de existir o dano de caráter extrapatrimonial se dada comunidade for afetada pela lesão ambiental. Dessa forma, embora constantemente esse dano seja chamado de dano moral ambiental, a verdade é que este é um prejuízo coletivo em seu aspecto imaterial, reflexo da lesão ao meio ambiente. Há, em meu vê, pois, uma impropriedade na denominação adotada comumente na doutrina: dano moral ambiental, já que, em verdade, a lesão ao meio ambiente é a fonte geradora de ofensa a valores morais coletivos defendidos constitucional e infraconstitucionalmente.
Em todo o país a reparação pelos danos de caráter imaterial da coletividade reflexo do dano ambiental, é cada vez mais pleiteada em ações civis públicas de autoria dos Ministérios Públicos Estaduais e Federais e demais entes autorizados pela legislação, com fulcro em especial no art. 1º da Lei de ação civil pública n. 7.347/85, que dispõe:
“Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994)
l - ao meio-ambiente;
ll - ao consumidor;
III – à ordem urbanística; (Incluído pela Lei nº 10.257, de 10.7.2001)
IV – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; (Renumerado do Inciso III, pela Lei nº 10.257, de 10.7.2001)
V - por infração da ordem econômica e da economia popular; (Redação dada pela Medida provisória nº 2.180-35, de 2001)
VI - à ordem urbanística. (Redação dada pela Medida provisória nº 2.180-35, de 2001). (Grifo nosso).
E também com fundamento no artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor, onde fica designado ser direitos básicos do consumidor “a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”.
Dessa forma, resta sedimentada de forma explícita, em plano infraconstitucional, a base legal para a proteção do dano extrapatrimonial coletivo aplicável aos diversos ramos do direito que tutela os interesses transindividuais, como é o caso da Direito Ambiental. O legislador brasileiro, assim, vem acompanhando a tendência inevitável da coletivização do direito.
Cabe destacar que a destinação do montante da indenização a título de dano extrapatrimonial coletivo é revertida para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDD) nos termos do art. 13[156] da Lei n. 7.347/85 e não tem o condão apenas de reconstituição dos bens lesados, mas, também, de compensação em face da lesão a bens de caráter imaterial. Dessa forma, nos termos do artigo 1º, §3º[157] da Lei 9.008/95, diploma responsável por regulamentar o fundo em comento, os recursos, atualmente, podem ser utilizados na promoção de eventos educativos e científicos, na edição de material informativo relacionado com o dano causado, como também na modernização administrativa dos órgãos públicos responsáveis pela execução da política referente à defesa do direito atingido.
Nesse panorama, a importante contribuição de Carlos Alberto de Salles sobre o papel compensatório dos Fundos de Defesa dos Direitos Difusos (FDD):
Deve o Fundo Federal, como forma de compensar o dano sofrido, adotar providências para promover ações que beneficiem o interesse lesado em proporção ao dano sofrido. Daí a possibilidade, indicada na legislação regulamentadora, de medidas indiretas de compensação, não diretamente associadas ao evento danoso, como a promoção de campanhas educativas, de aparelhamento dos órgãos de defesa, e mesmo benfeitorias ambientais não relacionadas com a reparação do dano, mas representativas de uma compensação em espécie, como a criação de um parque, de um criatório de animais selvagens, de um centro de estudos etc.[158]
Cumpre destacar que ao fomentar políticas públicas o valor da indenização revertido ao fundo em questão, ao contrário dos danos individuais, também adota uma função preventiva, consentâneo com o Direito Ambiental da contemporaneidade.
Outro ponto importante no presente tema consiste na árdua tarefa da doutrina e da jurisprudência na fixação de parâmetros para a designação do montante indenizatório nesta modalidade de dano.
Oliveira traz em seu livro um rol de elementos objetivos e subjetivos que devem ser levados em consideração, pelo magistrado, para a fixação do quantum indenizatório, quais sejam: a gravidade e repercussão do dano, a capacidade econômica do agente poluidor, a extensão e natureza do prejuízo, a reprovabilidade da conduta, o lucro obtido pelo infrator, a importância do patrimônio lesado, as implicações de natureza patrimonial do dano, a possibilidade de recomposição ao estado anterior e a condição política e social da comunidade, grupo ou classe atingidos.[159]
É de se ter mente que o aplicador do direito deve arbitrar o valor da indenização com fulcro em elementos racionais, utilizando-se do bom senso e da equidade para que não se tenha arbitramento de valores desarrazoados e absurdos, tendo, esse, o dever, outrossim, de fundamentar a decisão independentemente do critério escolhido.
Por fim, o julgador deve atentar ainda para o caráter pedagógico da indenização fixada, de maneira a acarretar um desestímulo ao infrator e a terceiros em se aventurar na prática reiterada do dano ambiental.
Leonardo Bessa afirma que “o dano moral coletivo é sanção pecuniária, com caráter eminentemente punitivo, em face da ofensa a direitos coletivos ou difusos nas mais diversas áreas (consumidor, meio ambiente, ordem urbanística, etc).” E acrescenta que o “objetivo preventivo-repressivo do direito penal conforma-se mais com o interesse social que está agregado aos direitos difusos e coletivos.”[160]
Na esteira desse pensamento, Almeida e Augustin afirmam que o debate referente ao dano extrapatrimonial coletivo impõe que a atividade hermenêutica dos direitos coletivos e seus instrumentos de proteção deve se pautar no efeito almejado pela lei: o de prevenir a ofensa a direitos transindividuais, ora se aproximando de elementos e noções de responsabilidade civil, ora se aproveitando de perspectiva própria do direito penal.[161]
Bittar Filho, a respeito do tema, pondera que “em havendo condenação em dinheiro, deve aplicar-se, indubitavelmente, a técnica do valor de desestímulo, a fim de que se evitem novas violações aos valores coletivos (...)”.[162]
Como já exposto no capítulo segundo do presente trabalho, não se pode olvidar que com a consagração dos direitos transindividuais, em especial do meio ambiente como bem difuso, de uso comum do povo e essencial a sadia qualidade de vida humana, resta imperioso a criação de instrumentos com aptidão para desestimular danos graves de natureza metaindividual ou comunitário. A relevância social destes interesses justifica uma tutela efetiva e real que se traduz, principalmente, no princípio da prevenção e precaução, onde se busca evitar o dano a todo custo.
Nesse panorama, a função pedagógica e preventiva da responsabilidade civil deve estar presente em situações excepcionais, consideradas de extrema importância dentro da sociedade, como é o caso dos interesses transindividuais.
Foi possível constatar no capítulo segundo do presente trabalho, na citação Costa e Pargendler, que um exemplo saudável na ordem jurídica pátria sobre a indenização exemplar é a multa prevista na LACP para o caso de danos cuja dimensão é transindividual, como os danos ambientais. Sendo a multa recolhida a um fundo público e tendo destinação coletiva e não individual, deve-se acolher a função punitiva da responsabilidade civil de forma que se atenda perfeitamente ao princípio da preservação que polariza o Direito Ambiental.[163]
Na tutela dos direitos coletivos e difusos deve-se prestigiar o aspecto preventivo do dano. E essa prevenção somente será alcançada por intermédio de instrumentos eficazes para impor uma punição ao comportamento que ofenda aos interesses metaindividuais. Deve-se utilizar, então, a técnica do desestímulo, com a finalidade de que novos danos a valores coletivos não ocorram.[164]
Portanto, a base teórica da responsabilidade civil deve sofrer mutações no sentido de evoluir e se desvincular da concepção individualista, para adotar uma postura de coletivização, voltada não só para os direitos do indivíduo, mas, também, preocupada com os valores compartilhados na comunidade.
A bem da verdade, a solução para as dúvidas e dificuldades relativas aos parâmetros a serem adotadas na responsabilidade por dano moral coletivo não pode ser encontrada no modelo criado para as relações individuais e privatistas. A ausência de disposições próprias e codificadas dos direitos transindividuais acarreta a utilização errônea de concepções e instrumentos incapazes de proporcionar uma adequada prestação jurisdicional de forma a atender aos anseios da contemporânea sociedade de massa.
4.2. PANORAMA JURISPRUDENCIAL
A despeito dos posicionamentos contrários, já se vislumbra uma parcela significativa de estudiosos do Direito que defendem o dano extrapatrimonial coletivo em matéria ambiental, bem como uma gradativa transformação na postura de alguns magistrados brasileiros que, cada vez mais afetos a proteção ambiental, vem avançado e determinando com mais frequência a reparação desse tipo de dano, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana, na legislação da Ação Civil Pública, da Constituição Federal e do Código de Defesa do Consumidor.
Nesse diapasão, a Segunda Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, abordando o assunto, assim concluiu:
Poluição Ambiental. Ação Civil Pública formulada pelo Município do Rio de Janeiro. Poluição consistente em supressão da vegetação do imóvel sem a devida autorização municipal. Cortes de árvores e início de construção não licenciada, ensejando multas e interdição do local. Dano à coletividade com destruição do ecossistema, trazendo conseqüências nocivas ao meio ambiente, com infringência às leis ambientais, lei Federal 4.771/65, Decreto Federal 750/93, artigo 2º, Decreto Federal 99.274/90, artigo 34 e inciso XI e a Lei Orgânica do Município do Rio de janeiro, artigo 477. Condenação à reparação de danos materiais consistentes no plantio de 2.800 árvores, e ao desfazimento das obras. Reforma da sentença para inclusão do dano moral perpetrado a coletividade. Quantificação do dano moral ambiental razoável e proporcional ao prejuízo coletivo. A impossibilidade de reposição do ambiente ao estado anterior justificam a condenação em dano moral pela degradação ambiental prejudicial à coletividade. Provimento do recurso.[165] (Grifo nosso).
No voto da Desembargadora Relatora Maria Raimunda T. de Azevedo a questão foi da analisada seguinte forma:
Outra é o dano moral consistente na perda de valores ambientais pela coletividade. O dano moral ambiental tem por característica a impossibilidade de mensurar e a impossibilidade de restituição do bem ao estado anterior. Na hipótese, é possível estimar a indenização, pois a reposição das condições ambientais anteriores, ainda que determinado o plantio das árvores, a restauração ecológica só se dará, no mínimo dentro de 10 a 15 anos. Conforme atestam os laudos (fls. 11/12 e 17/18) nesse interregno a degradação ambiental se prolonga com os danos evidentes à coletividade, pela perda da qualidade de vida nesse período.Os danos ao meio ambiente, vêm sendo cada vez mais perpetrados, resultante da insensibilidade dos perpetradores, por isso que devem ser reprimidos a benefício da coletividade.Assim sendo, de acordo com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade norteadoras da fixação do valor, e de acordo com o brilhante parecer do procurador de Justiça Dr. Luiz Otávio de Freitas, que na forma regimental passa a integrar o julgado, dá-se provimento ao apelo, para condenar o apelado ao pagamento de danos morais ambientais, no equivalente a 200m(duzentos) salários mínimos nesta data, revertidos em favor do fundo previsto no artigo 13 da Lei 7.347/85. (Grifo nosso).
Destaque, agora, para a decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região que, em julgamento de apelação cível, interposta pelo Ministério Público Federal e outro, contra a sentença do Juízo da 18ª Vara da Seção Judiciária do Ceará – que não acatou o pedido formulado pelo MPF, no sentido de condenar o réu ao pagamento de uma indenização pelos danos ecológicos causados –, traz em seu bojo a seguinte argumentação em defesa do meio ambiente e seus efeitos extrapatrimoniais:
DIREITO AMBIENTAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA TUTELA DO MEIO AMBIENTE. OBRIGAÇÕES DE FAZER, DE NÃO FAZER E DE PAGAR QUANTIA. POSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO DE PEDIDOS ART. 3º DA LEI 7.347/85. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA. CONDENAÇÃO PARA RECOMPOR O DANO AMBIENTAL CAUSADO E AO PAGAMENTO DE UMA INDENIZAÇÃO PELOS DANOS ECOLÓGICOS. ....(omissis). 4. A natureza do dano ambiental, porque diz respeito a um interesse difuso intangível, exige, além da reparação material - se possível de restituição à situação anterior – a reparação moral coletiva, porque não se atinge uma única esfera jurídica, mas um direito compartilhado transindividualmente por todos os cidadãos. Por isso é que é plenamente possível a condenação em indenização por dano moral coletivo, até porque existe previsão normativa expressa sobre a possibilidade de dano extrapatrimonial em relação a coletividades, consoante se depreende da parte final do artigo 1º da Lei nº 7.347/85.....(omissis). 7. Apelação do MPF provida, para o fim de ser o Réu condenado a pagar uma indenização pelo dano ambiental causado, no valor de 500 (quinhentas) UFIR’s. Apelação do Réu improvida. Mantida a sentença recorrida em todos os seus demais termos. [166] (Grifo nosso).
Nas palavras do Desembargador Federal Francisco Barros Dias, relator da Apelação Civel n. 431925/CE em comento, deve predominar, de maneira progressista, o entendimento amplo que admite a condenação em danos morais coletivos, visto que, sempre que necessário, deve-se possibilitar a recomposição do sentimento do grupo, da coletividade, impondo-se uma sanção que signifique, ao mesmo tempo, reprimenda e compensação revestida de caráter eminentemente educativo, observa-se:
Ou seja, entendemos ser plenamente possível a condenação cumulativa em obrigação de fazer ou não fazer e de pagar, sobretudo porque, em matéria ambiental, tal cumulação mostra-se ainda mais premente, em virtude do dano moral provocado à coletividade atingida pela devastação ecológica, tendo esse tipo de dano natureza peculiar, sendo de difícil reparação e mensuração, pelo que a condenação em dinheiro, se não consegue corresponder exatamente aos recursos naturais destruídos, no mínimo, desempenha um caráter educativo de intimidação à prática de ações similares.....(omissis).Além disso, como já ressaltado, a natureza do dano ambiental, porque diz respeito a um interesse difuso intangível, exige, além da reparação material – se possível de restituição à situação anterior – a reparação moral coletiva, porque não se atinge uma única esfera jurídica, mas um direito compartilhado transindividualmente por todos os cidadãos. (Grifo nosso).
O Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por sua vez, apresenta julgado em defesa do dano extrapatrimonial coletivo em matéria ambiental, no qual também ressalta o caráter punitivo e educativo deste tipo de reparação:
PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE CIVIL E ADMINISTRATIVA. INDEPENDÊNCIA. RECOMPOSIÇÃO DO AMBIENTE E DANO MORAL COLETIVO....Omissis.2.Comprovado o dano ambiental coletivo: (i) destruição de matacões, inclusive com uso de explosivos, e retirada de grande quantidade de areia da praia, para calçamento da propriedade particular; (ii) construção de muro à beira mar; (iii) realização de extenso aterro na área da praia; (iv) bloqueio de acesso do público à praia; e (v) manutenção de aves silvestres em cativeiro -, tudo em área de preservação permanente, inserida, outrossim, na Estação Ecológica de Tamoios, a responsabilidade civil é objetiva (art. 225, § 3º, da CF e 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81), cabendo ampla reparação.3.Deve o poluidor ser condenado, como ensina Guilherme Couto de Castro, simultaneamente na recomposição do ambiente, sob pena cominatória, e também em verba a título punitivo (A responsabilidade civil objetiva no direito brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 119-120), também chamada educativa, didática ou por dano moral coletivo, com base no art. 1º da Lei nº 7.347/85, com a redação determinada pelo art. 88 da Lei nº 8.884/94. 4.Apelação parcialmente provida para, superada a extinção do processo (art. 515, § 3º, do CPC), ser julgado procedente, em parte, o pedido.[167] (Grifo nosso).
Por fim, cumpre trazer a lume, também as observações produzidas pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro na Apelação Cível n. 2009.001.10577, cuja ementa revela, litteris:
APELAÇÃO CIVIL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - DANOS MORAIS AMBIENTAIS – RESPONSABILIDADE OBJETIVA.1- Versa a presente demanda sobre danos ambientais causados em virtude de construçãoclandestina de um quiosque sobre a areia da praia na localidade Praia Grande em Angra dos Reis; 2- A responsabilidade por danos ambientais é objetiva, ou seja, independente de culpa. Restou cabalmente demonstrado que o réu-apelado estabeleceu, clandestinamente e durante bom tempo, um quiosque sobre a areia da praia, em área de preservação permanente (fls. 12/17); 3- O dano extrapatrimonial não surge apenas em conseqüência da dor, em seu sentido moral de mágoa, mas também do desrespeito a valores que afetam negativamente a coletividade. A dor, em sua acepção coletiva, é ligada a um valor equiparado ao sentimento moral individual e a um bem ambiental indivisível, de interesse comum, solidário, e relativo a um direito fundamental da coletividade.- Configurado o dano extrapatrimonial (moral), eis que houve um dano propriamente dito, configurado no prejuízo material trazido pela degradação ambiental, e houve nexo causal entre o ato do autuado e este dano. 4- Recurso provido.[168] (Grifo nosso).
Por todas as considerações aqui feitas, e tomando por base o fato que a proteção ambiental dever ser a mais ampla possível, parece-nos que as decisões aqui elencadas estão corretíssimas. Independentemente das contrariedades na jurisprudência como demonstrado ao longo deste estudo, infere-se que o meio ambiente sadio e ecologicamante equilibrado, a qualidade de vida, o bem-estar social e as cidades sustentáveis são direitos da presente e das futuras gerações e, assim, ao restar configurado um dano ambiental que irradie efeitos negativos nesses valores e diretos compartilhados pela comunidade, presente estará o dano extrapatrimonial coletivo.
Em suma, a necessidade de reparação de quaisquer danos de caráter extrapatrimonial, principalmente quando da violação de interesses titularizados pela coletividade, corresponde um a desejo íntegro e legítimo hodiernamente. Ganha destaque, assim, no ordenamento jurídico pátrio, o dano extrapatrimonial coletivo, ou seja, os reflexos de índole não patrimonial aos direitos difusos e coletivos, em especial em sede de matéria ambiental.