Artigo Destaque dos editores

Da impossibilidade de emenda constitucional convalidar lei inconstitucional

01/10/2001 às 00:00
Leia nesta página:

" o homem que não ocupa um ponto no tempo e no espaço seria o mais infeliz dos seres, se não se pudesse julgar seguro nem sequer quanto a sua vida passada. Por esta parte de sua existência, já não carregou todo o peso de seu destino? O passado pode deixar dissabores, mas põe termo a todas as incertezas. Na ordem do universo e da natureza, só o futuro é incerto e esta própria incerteza é suavizada pela esperança, a fiel companheira de nossa fraqueza. Seria agravar a triste condição da humanidade querer mudar, através do sistema de legislação o sistema da natureza, procurando, para o tempo que já se foi, fazer reviver as nossas dores, sem restituir as nossas esperanças"

Portalis


1 INTRODUÇÃO

A idéia a ser desenvolvida no presente trabalho é analisar criticamente a possibilidade , ou não, de uma emenda constitucional convalidar lei inconstitucional.

O tema possui grandes reflexos práticos, podendo-se citar , exempli gratia, a vexatio quaestio ocorrida na interpretação da lei de nº 9718/98(1) que, no momento de sua entrada em vigor em nossa ordem jurídica, possuía disposições que violavam frontalmente o artigo 195 I da Constituição Federal, mas que a posteriori, com a alteração do parâmetro de controle no bojo da emenda constitucional de nº20, alcançou-se a compatibilidade entre a lei e a norma constitucional.

A fixação de um posicionamento sobre a matéria é fundamental haja vista a probabilidade de que tal situação de instabilidade do regime da supremacia constitucional torne-se comum. A atual configuração constitucional brasileira de Constituição nominal(2) deve evoluir a fim de se alcançar o desiderato da Constituição normativa e não sucumbir a interpretações que levem a admissão de estarmos vivendo sob o pálio de uma Constituição semântica.


2 O TEMPO E O DIREITO.

O estudo do Direito pressupõe a contínua interação dialética entre o mundo do ser e o mundo do dever-ser. No mundo do ser, o tempo é uma realidade inexorável, nada pode evitar o seu transcurso. O mundo do dever-ser(3), com suas afirmações retóricas, muitas vezes pretende modificar o passado, geralmente justificando tal excepcionalidade com um discurso de preservação do interesse do ser humano.

O conflito de leis no tempo possuí dependendo do ramo de nossa ordem jurídica soluções diferenciadas. Por exemplo o direito penal adota a retroatividade da lei mais benigna até mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória devendo, nessa hipótese, o juiz da execução penal( art 66 da LEP e súmula 611 do STF) aplicar a abolitio criminis ou a novatio legis in mellius, enquanto no processo penal adota-se a aplicação imediata da lei.

No presente estudo, o conflito no tempo abrange a sucessão de normas constitucionais( paradigmáticas) e seus efeitos na validade e eficácia da legislação infra-constitucional .


3 A IRRETROATIVIDADE DAS EMENDAS CONSTITUCIONAIS

A priori é interessante contextualizar o presente problema a partir da precisa lição de Celso Antônio Bandeira de Mello(4) apontando, em tese, a possibilidade de exisitir quatro soluções para o problema:

"a) uma regra que não foi, no passado, oficialmente reconhecida- e pelos meios próprios- como inconstitucional, é existente e válida desde o início, pois sua invalidade dependeria de haver sido constituída no pretérito; logo, se antes os termos da emenda nada se lhe pode censurar, seria um sem sentido pretender recusar-lhe, no presente, uma validade que nunca deixou de ter;

b) a regra acoimada de originariamente inconstitucional, ainda que efetivamente o fosse, se compatível com a emenda, fica retroativamente validada, porque passou a estar de acordo com a Constituição e não se pode considerar inconstitucional aquilo que no presente, se encontra afinado com ela;

c) a regra originariamente inconstitucional, se compatível com a emenda, dela receberá um fundamento de validade a posteriori, entretanto só oferecerá esteio para seus efeitos a partir da própria Emenda...

d) a regra originariamente inconstitucional continua a padecer de inconstitucionalidade ...."

Verificamos a profundidade do tema pela possibilidade de argumentos ontologicamente contrários serem suscitados, cabendo nesse contexto lembrar o escólio de Chaim Perelman quando relata a inexistência de verdades absolutas e irrefutáveis no Direito, contentando-se a lógica jurídica apenas com um caráter de adesão ao argumento(5).

Deveras, as Constituições não são eternas, é possível a sua emenda desde que observados os requisitos formais bem como as limitações materiais, circunstânciais e temporais existentes.

Frise-se como premissa básica que as emendas constitucionais tem por finalidade o aperfeiçoamento das normas constitucionais, logo não devem determinar a mitigação dos efeitos da supremacia da norma constitucional pretérita em desacordo com o sistema constitucional vigente.

Por outro lado a doutrina constitucional aponta ser a Constituição um sistema aberto de normas e princípios. A alteração constitucional deve, portanto, obedecer essa lógica sistemática sob pena de significar um retrocesso e uma ruptura do sistema.

Além disso, é cediço que a inconstitucionalidade formal é apurada com a norma constitucional em vigor no momento da produção legislativa. A discussão é sobre o referencial para a inconstitucionalidade material e se esta, por tratar-se de obra do poder constituinte derivado, deve ser apurada também no momento da entrada em vigor da lei .

Destaca-se a diferença da emenda constitucional para a obra do poder constituinte originário ilimitado(6), tanto que quando da análise da compatibilidade de qualquer lei anterior a Constituição com a nova Carta Magna se discute o fenômeno da recepção de lei e não inconstitucionalidade, enquanto que no plano constitucional o Brasil não adotou o fenômeno da desconstitucionalização, sendo a Constituição pretérita revogada totalmente.

A emenda constitucional não pode alterar ex tunc os efeitos da norma constitucional pretérita, porque ela não é inovadora na ordem jurídica, mas sim um instrumento legislativo feito na conformidade dessa ordem jurídica, devendo respeitar as cláusulas pétreas(7).

A retroatividade da emenda consubstanciaria o paradoxo de que no pretérito a lei inconstitucional teve eficácia maior do que a então norma constitucional vigente, o que é um rematado absurdo.

Consideremos a situação em que um determinado contribuinte aciona o Poder judiciário respaldado na Constituição alegando incidentalmente a inconstitucionalidade de determinada lei. O juiz de 1º instância julga procedente o pedido. Entre a interposição do recurso e o julgamento deste pelo Tribunal opera-se a emenda constitucional. Qual seria,então, a decisão adequada para o presente caso? É evidente existir ultratividade da norma constitucional revogada.

Mesmo que o contribuinte não tenha movimento o judiciário deve-se reconhecer a supremacia constitucional. A evolução do Direito impeliu os Estados a adotarem um texto positivo contendo precipuamente a organização e limitação do poder, além de garantir os Direitos Humanos. Quid Iuris, se no momento de materialização das normas constitucionais utiliza-se subterfúgios para afastar a correta aplicação do Direito.

Não pretendemos analisar considerações meta-jurídicas a respeito das fraudes e abusos que poderiam surgir ao se admitir a possibilidade de emenda constitucional convalidar lei inconstitucional, todavia convém ressaltar o risco que seria esta prática para a estabilidade do sistema democrático e da força normativa da Constituição.

Em última análise diríamos que a inconstitucionalidade da lei implica na sua retirada da ordem jurídica sem aptidão para produzir efeitos mesmo após a emenda. Na verdade, o efeito da emenda é a modificação da Constituição(8). Se a antiga norma é inconstitucional nenhum efeito pode dela ser retirado. Se for conveniente que seja efetuada uma novel lei(9), mas que não se tente violar a segurança jurídica de cada cidadão.


4 CONCLUSÃO

A função precípua da Constituição, além do seu caráter dirigente, é servir de ordem jurídica fundamental, garantindo os direitos humanos e servindo de limitação ao(s) Estado(s).

As Constituições não são estanques. Existem processos formais e informais(especialmente mutações constitucionais) de mudanças a fim de adaptar o texto da norma às aspirações da comunidade. O processo de interpretação da norma Constitucional tem um caráter vital na conformação do direito vigente em virtude da posição altaneira deste tipo de norma.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

As leis devem se adequar às prescrições constitucionais e não o contrário sob pena de quebra da organicidade e lógica do sistema jurídico.

Admitir a retroatividade de emenda constitucional visando convalidar lei inconstitucional é violar princípios basilares do direito constitucional( supremacia da norma constitucional, limitação do poder derivado, etc..), além de aumentar a insegurança e desconfiança do povo no Direito. Assim sendo, deve ser extirpada da nossa ordem jurídica essa interpretação, pois, lembrando a lição secular de Carlos Maximiliano(10) : " Deve o Direito ser interpretado inteligentemente e não de modo a que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter conclusões inconsistentes ou impossíveis"


NOTAS

1. Que alterou a regulamentação do COFINS, sobre o tema vide parecer de Sacha Calmon Navarro Coelho publicado na Revista Dialética de Direito Tributário número 55.

2. Tomando por empréstimo a antológica classificação ontológica das Constituições de Loewstain.

3. A influência do mundo do ser no dever-se é representada pelo aforisma tempus regit actum

4. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Leis originariamente inconstitucionais compatíveis com emenda constitucional superveniente in Revista de Direito Administrativo, n215, jan/mar 1999 fgv, p 87

5. Devemos evitar uma lógica apenas formal, a adoção da lógica material em situações limites como a presente é de fundamente importância para a evolução do Direito.

6.Sobre o caráter ilimitado do Poder Constituinte originário existem , todavia, vozes discordantes como a já clássica obra normas constitucionais inconstitucionais, conferência formulada por Otto Bachoff e na doutrina lusitana a obra do professor Jorge Miranda.

Jorge Miranda aponta limites materiais ao poder constituinte originário de três tipos: limites transcendentes, imanentes e em certos casos heterônimos. " Limites transcendentes são os que, antepondo-se ou impondo-se à vontade do Estado( e, em poder constituinte democrático, à vontade do povo) e demarcando a sua esfera de intervenção, provêm de imperativos de direito natural, de valores éticos superiores, de uma consciência jurídica coletiva, exemplo: direitos fundamentais. Limites imanentes decorrem da noção e do sentido do poder constituinte formal enquanto poder situado, que se identifica por certa origem e finalidade e se manifesta em certas circunstâncias são os limites ligados à configuração do Estado à luz do poder constituinte material ou à própria identidade do Estado de que cada Constituição representa apenas um momento da marcha da história. Limites heterônomos são os provenientes da conjugação com outros ordenamentos jurídicos e se referem a regras ou a certos atos de direito internacional, donde, especificamente resultem obrigações para certo Estado, e reportam-se ainda a regra de direito interno, quando o Estado seja composto ou complexo e complexo tenha de ser, por conseguinte, o seu ordenamento jurídico".

Minoritário, mas importantes os posicionamentos de Bachoff e Jorge Miranda, sendo interessante frisar que para Bachoff a violação do Poder Constituinte Originário ao seus limites importará em inconstitucionalidade da norma constitucional originária, enquanto para Jorge Miranda o que existirá nesta hipótese é a invalidade ou ilegitimidade da Constituição ou até injustiça da lei inconstitucional, o que não seria era uma inconstitucionalidade, pois seria incongruente invocar a própria Constituição para justificar a desobediência ou insurreição contra as suas normas.

7. Tal afirmação corrente na doutrina foi jurisprudencialmente consagrada no julgamento no julgamento do Adin de n 939-DF.( julgamento inserto na Revista de Direito Administrativo de n 198.

8. Destaca-se que antes de ser decretada a inconstitucionalidade da emenda deve-se, na medida do possível, utilizar a interpretação constitucional conforme, método importado do direito tedesco que vem sendo aplicado pela nossa Corte Suprema.

9. Infelizmente não haverá muita dificuldade já que houve quorum para alterar a Constituição possivelmente aprovar-se-á com facilidade lei complementar ou ordinária regulando a matéria.

10. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, 2 ed, livraria do globo, 1933, p 183

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Américo Bedê Freire Júnior

procurador da Fazenda Nacional no Maranhão, professor da Escola Superior do Ministério Público do Maranhão

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. Da impossibilidade de emenda constitucional convalidar lei inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2155. Acesso em: 26 dez. 2025.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos