" o homem que não ocupa um ponto no tempo e no espaço seria o mais infeliz dos seres, se não se pudesse julgar seguro nem sequer quanto a sua vida passada. Por esta parte de sua existência, já não carregou todo o peso de seu destino? O passado pode deixar dissabores, mas põe termo a todas as incertezas. Na ordem do universo e da natureza, só o futuro é incerto e esta própria incerteza é suavizada pela esperança, a fiel companheira de nossa fraqueza. Seria agravar a triste condição da humanidade querer mudar, através do sistema de legislação o sistema da natureza, procurando, para o tempo que já se foi, fazer reviver as nossas dores, sem restituir as nossas esperanças"
Portalis
1 INTRODUÇÃO
A idéia a ser desenvolvida no presente trabalho é analisar criticamente a possibilidade , ou não, de uma emenda constitucional convalidar lei inconstitucional.
O tema possui grandes reflexos práticos, podendo-se citar , exempli gratia, a vexatio quaestio ocorrida na interpretação da lei de nº 9718/98(1) que, no momento de sua entrada em vigor em nossa ordem jurídica, possuía disposições que violavam frontalmente o artigo 195 I da Constituição Federal, mas que a posteriori, com a alteração do parâmetro de controle no bojo da emenda constitucional de nº20, alcançou-se a compatibilidade entre a lei e a norma constitucional.
A fixação de um posicionamento sobre a matéria é fundamental haja vista a probabilidade de que tal situação de instabilidade do regime da supremacia constitucional torne-se comum. A atual configuração constitucional brasileira de Constituição nominal(2) deve evoluir a fim de se alcançar o desiderato da Constituição normativa e não sucumbir a interpretações que levem a admissão de estarmos vivendo sob o pálio de uma Constituição semântica.
2 O TEMPO E O DIREITO.
O estudo do Direito pressupõe a contínua interação dialética entre o mundo do ser e o mundo do dever-ser. No mundo do ser, o tempo é uma realidade inexorável, nada pode evitar o seu transcurso. O mundo do dever-ser(3), com suas afirmações retóricas, muitas vezes pretende modificar o passado, geralmente justificando tal excepcionalidade com um discurso de preservação do interesse do ser humano.
O conflito de leis no tempo possuí dependendo do ramo de nossa ordem jurídica soluções diferenciadas. Por exemplo o direito penal adota a retroatividade da lei mais benigna até mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória devendo, nessa hipótese, o juiz da execução penal( art 66 da LEP e súmula 611 do STF) aplicar a abolitio criminis ou a novatio legis in mellius, enquanto no processo penal adota-se a aplicação imediata da lei.
No presente estudo, o conflito no tempo abrange a sucessão de normas constitucionais( paradigmáticas) e seus efeitos na validade e eficácia da legislação infra-constitucional .
3 A IRRETROATIVIDADE DAS EMENDAS CONSTITUCIONAIS
A priori é interessante contextualizar o presente problema a partir da precisa lição de Celso Antônio Bandeira de Mello(4) apontando, em tese, a possibilidade de exisitir quatro soluções para o problema:
b) a regra acoimada de originariamente inconstitucional, ainda que efetivamente o fosse, se compatível com a emenda, fica retroativamente validada, porque passou a estar de acordo com a Constituição e não se pode considerar inconstitucional aquilo que no presente, se encontra afinado com ela;"a) uma regra que não foi, no passado, oficialmente reconhecida- e pelos meios próprios- como inconstitucional, é existente e válida desde o início, pois sua invalidade dependeria de haver sido constituída no pretérito; logo, se antes os termos da emenda nada se lhe pode censurar, seria um sem sentido pretender recusar-lhe, no presente, uma validade que nunca deixou de ter;
c) a regra originariamente inconstitucional, se compatível com a emenda, dela receberá um fundamento de validade a posteriori, entretanto só oferecerá esteio para seus efeitos a partir da própria Emenda...
d) a regra originariamente inconstitucional continua a padecer de inconstitucionalidade ...."
Verificamos a profundidade do tema pela possibilidade de argumentos ontologicamente contrários serem suscitados, cabendo nesse contexto lembrar o escólio de Chaim Perelman quando relata a inexistência de verdades absolutas e irrefutáveis no Direito, contentando-se a lógica jurídica apenas com um caráter de adesão ao argumento(5).
Deveras, as Constituições não são eternas, é possível a sua emenda desde que observados os requisitos formais bem como as limitações materiais, circunstânciais e temporais existentes.
Frise-se como premissa básica que as emendas constitucionais tem por finalidade o aperfeiçoamento das normas constitucionais, logo não devem determinar a mitigação dos efeitos da supremacia da norma constitucional pretérita em desacordo com o sistema constitucional vigente.
Por outro lado a doutrina constitucional aponta ser a Constituição um sistema aberto de normas e princípios. A alteração constitucional deve, portanto, obedecer essa lógica sistemática sob pena de significar um retrocesso e uma ruptura do sistema.
Além disso, é cediço que a inconstitucionalidade formal é apurada com a norma constitucional em vigor no momento da produção legislativa. A discussão é sobre o referencial para a inconstitucionalidade material e se esta, por tratar-se de obra do poder constituinte derivado, deve ser apurada também no momento da entrada em vigor da lei .
Destaca-se a diferença da emenda constitucional para a obra do poder constituinte originário ilimitado(6), tanto que quando da análise da compatibilidade de qualquer lei anterior a Constituição com a nova Carta Magna se discute o fenômeno da recepção de lei e não inconstitucionalidade, enquanto que no plano constitucional o Brasil não adotou o fenômeno da desconstitucionalização, sendo a Constituição pretérita revogada totalmente.
A emenda constitucional não pode alterar ex tunc os efeitos da norma constitucional pretérita, porque ela não é inovadora na ordem jurídica, mas sim um instrumento legislativo feito na conformidade dessa ordem jurídica, devendo respeitar as cláusulas pétreas(7).
A retroatividade da emenda consubstanciaria o paradoxo de que no pretérito a lei inconstitucional teve eficácia maior do que a então norma constitucional vigente, o que é um rematado absurdo.
Consideremos a situação em que um determinado contribuinte aciona o Poder judiciário respaldado na Constituição alegando incidentalmente a inconstitucionalidade de determinada lei. O juiz de 1º instância julga procedente o pedido. Entre a interposição do recurso e o julgamento deste pelo Tribunal opera-se a emenda constitucional. Qual seria,então, a decisão adequada para o presente caso? É evidente existir ultratividade da norma constitucional revogada.
Mesmo que o contribuinte não tenha movimento o judiciário deve-se reconhecer a supremacia constitucional. A evolução do Direito impeliu os Estados a adotarem um texto positivo contendo precipuamente a organização e limitação do poder, além de garantir os Direitos Humanos. Quid Iuris, se no momento de materialização das normas constitucionais utiliza-se subterfúgios para afastar a correta aplicação do Direito.
Não pretendemos analisar considerações meta-jurídicas a respeito das fraudes e abusos que poderiam surgir ao se admitir a possibilidade de emenda constitucional convalidar lei inconstitucional, todavia convém ressaltar o risco que seria esta prática para a estabilidade do sistema democrático e da força normativa da Constituição.
Em última análise diríamos que a inconstitucionalidade da lei implica na sua retirada da ordem jurídica sem aptidão para produzir efeitos mesmo após a emenda. Na verdade, o efeito da emenda é a modificação da Constituição(8). Se a antiga norma é inconstitucional nenhum efeito pode dela ser retirado. Se for conveniente que seja efetuada uma novel lei(9), mas que não se tente violar a segurança jurídica de cada cidadão.
4 CONCLUSÃO
A função precípua da Constituição, além do seu caráter dirigente, é servir de ordem jurídica fundamental, garantindo os direitos humanos e servindo de limitação ao(s) Estado(s).
As Constituições não são estanques. Existem processos formais e informais(especialmente mutações constitucionais) de mudanças a fim de adaptar o texto da norma às aspirações da comunidade. O processo de interpretação da norma Constitucional tem um caráter vital na conformação do direito vigente em virtude da posição altaneira deste tipo de norma.
As leis devem se adequar às prescrições constitucionais e não o contrário sob pena de quebra da organicidade e lógica do sistema jurídico.
Admitir a retroatividade de emenda constitucional visando convalidar lei inconstitucional é violar princípios basilares do direito constitucional( supremacia da norma constitucional, limitação do poder derivado, etc..), além de aumentar a insegurança e desconfiança do povo no Direito. Assim sendo, deve ser extirpada da nossa ordem jurídica essa interpretação, pois, lembrando a lição secular de Carlos Maximiliano(10) : " Deve o Direito ser interpretado inteligentemente e não de modo a que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter conclusões inconsistentes ou impossíveis"
NOTAS
1. Que alterou a regulamentação do COFINS, sobre o tema vide parecer de Sacha Calmon Navarro Coelho publicado na Revista Dialética de Direito Tributário número 55.
2. Tomando por empréstimo a antológica classificação ontológica das Constituições de Loewstain.
3. A influência do mundo do ser no dever-se é representada pelo aforisma tempus regit actum
4. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Leis originariamente inconstitucionais compatíveis com emenda constitucional superveniente in Revista de Direito Administrativo, n215, jan/mar 1999 fgv, p 87
5. Devemos evitar uma lógica apenas formal, a adoção da lógica material em situações limites como a presente é de fundamente importância para a evolução do Direito.
6.Sobre o caráter ilimitado do Poder Constituinte originário existem , todavia, vozes discordantes como a já clássica obra normas constitucionais inconstitucionais, conferência formulada por Otto Bachoff e na doutrina lusitana a obra do professor Jorge Miranda.
Jorge Miranda aponta limites materiais ao poder constituinte originário de três tipos: limites transcendentes, imanentes e em certos casos heterônimos. " Limites transcendentes são os que, antepondo-se ou impondo-se à vontade do Estado( e, em poder constituinte democrático, à vontade do povo) e demarcando a sua esfera de intervenção, provêm de imperativos de direito natural, de valores éticos superiores, de uma consciência jurídica coletiva, exemplo: direitos fundamentais. Limites imanentes decorrem da noção e do sentido do poder constituinte formal enquanto poder situado, que se identifica por certa origem e finalidade e se manifesta em certas circunstâncias são os limites ligados à configuração do Estado à luz do poder constituinte material ou à própria identidade do Estado de que cada Constituição representa apenas um momento da marcha da história. Limites heterônomos são os provenientes da conjugação com outros ordenamentos jurídicos e se referem a regras ou a certos atos de direito internacional, donde, especificamente resultem obrigações para certo Estado, e reportam-se ainda a regra de direito interno, quando o Estado seja composto ou complexo e complexo tenha de ser, por conseguinte, o seu ordenamento jurídico".
Minoritário, mas importantes os posicionamentos de Bachoff e Jorge Miranda, sendo interessante frisar que para Bachoff a violação do Poder Constituinte Originário ao seus limites importará em inconstitucionalidade da norma constitucional originária, enquanto para Jorge Miranda o que existirá nesta hipótese é a invalidade ou ilegitimidade da Constituição ou até injustiça da lei inconstitucional, o que não seria era uma inconstitucionalidade, pois seria incongruente invocar a própria Constituição para justificar a desobediência ou insurreição contra as suas normas.
7. Tal afirmação corrente na doutrina foi jurisprudencialmente consagrada no julgamento no julgamento do Adin de n 939-DF.( julgamento inserto na Revista de Direito Administrativo de n 198.
8. Destaca-se que antes de ser decretada a inconstitucionalidade da emenda deve-se, na medida do possível, utilizar a interpretação constitucional conforme, método importado do direito tedesco que vem sendo aplicado pela nossa Corte Suprema.
9. Infelizmente não haverá muita dificuldade já que houve quorum para alterar a Constituição possivelmente aprovar-se-á com facilidade lei complementar ou ordinária regulando a matéria.
10. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, 2 ed, livraria do globo, 1933, p 183