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Considerações sobre a norma hipotética fundamental

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1. Introdução

Direito positivo e Ciência do Direito não se confundem. Possuem diferenças marcantes, com particularidades próprias quanto aos corpos de linguagem, discursos lingüísticos, organização lógica e funções semânticas e pragmáticas.

O direito positivo possui uma linguagem prescritiva, em que estabelece as normas jurídicas válidas no Estado de Direito, isto é, utilizando de uma lógica deôntica para afirmar se determinada norma é válida ou não em um ordenamento jurídico estabelecido. Preocupa-se com intersubjetividade das relações entre os seres humanos, com o intuito de formar um encadeamento de asserções baseadas no comportamento exterior e objetivo da conduta humana.

Em contrapartida, a Ciência do Direito tem como objetivo primordial fazer uma análise profunda do encadeamento de asserções formadas pelo direito positivo. Utilizando-se métodos interpretativos, investigatórios e de observação para obter uma descrição minuciosa de como as normas jurídicas se desenvolvem diante do comportamento intersubjetivo das relações humanas, apenas com o intuito de descrevê-las, sem pretensões de interferir. Portanto, o cientista do direito ao propagar a conclusão de sua análise sobre a realidade jurídica, o faz através de lógica apofântica e linguagem eminentemente descritiva.

Ao lermos os textos do direito positivo desenvolvemos perante o nosso intelecto noções, que uma vez reunidas, induzem ao surgimento de conceitos e posicionamentos revelados através de proposições. Constitui então, a norma jurídica a opinião desencadeada a partir dessa leitura.

Desse modo, podemos afirmar que com apenas um texto poder-se-ão desenvolver inúmeras acepções, diante das possibilidades de juízos que um determinado indivíduo terá do exposto pelo legislador.

Partido dessa premissa, o jurista devera tomar como base os termos imprescindíveis à formação do juízo lógico, como também, analisar os princípios decorrentes de todo o sistema, a fim de atingir a interpretação normativa. Logo, a norma jurídica surgirá do empenho do jurista em compreender os conceitos e posicionamentos adquiridos sob o alicerce dos princípios gerais inerentes ao ordenamento jurídico.

Dessa forma, ao estabelecermos a diferença existente entre esses conceitos poderemos melhor compreender qual o intuito da elaboração do postulado da Norma fundamental por Hans Kelsen a fim de justificar, direta ou indiretamente, a hierarquia estabelecida pela pluralidade de normas que compõem todo um sistema.

A teoria kelseniana surgiu como uma crítica das concepções dominantes sobre os empecilhos do direito público e da Teoria Geral do Estado, e também como uma independência da ciência jurídica que, a partir da Teoria Pura do Direito, deveria ser vista como uma ciência autônoma, desvinculada da ciência natural e de outras intenções como a política, a sociologia, a economia, a religião, a moral, e que teria como objeto o estudo da norma jurídica e a sua conseqüente descrição.


2. A Grundnorm defendida por Kelsen

Diante de uma visão formal-jurídica, cada Estado é um sistema, com interdependência e unicidade. Logo, a norma fundamental hipotética de um determinado sistema não excede um outro.

O ilustre mestre de Viena estabeleceu a proposição básica de uma norma fundamental com o intuito de responder a todos os seus questionamentos quanto ao fundamento de validade da pluralidade das normas que regulam a conduta dos homens num determinado sistema, mas que não tenha sido editada por nenhum ato de autoridade; como também, o que estabeleceria a hierarquia existente entre essas normas. Tratando-se de uma norma suposta, não imposta.

Assim, "o fato de alguém ordenar seja o que for não é fundamento para considerar o respectivo comando como válido, quer dizer, para ver a respectiva norma como vinculante em relação aos seus destinatários. Apenas uma autoridade competente pode estabelecer normas válidas e uma tal competência somente se pode apoiar sobre uma norma que confira poder para fixar normas. A esta norma se encontram sujeitos tanto a autoridade dotada de poder legislativo como os indivíduos que devem obediência às normas por ela fixadas."(1)

Contudo, ao se buscar o fundamento de validade de uma norma, há a necessidade de se estabelecer qual a mais elevada. Para isso, "ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão. Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental (Grundnorm)."(2)

Assim, segundo a lógica jurídica:

"As normas que estatuem como criar outras normas, isto é, as normas-de-normas, ou proposições-de-proposições, não são regras sintáticas fora do sistema. Estão no interior dele. Não são metassistemáticas. Apesar de constituírem um nível de metalinguagem (uma linguagem que de diz como fazer para criar novas estruturas de linguagem) inserem-se dentro do sistema. Em rigor, uma norma N é metaproposição face à norma N’, esta norma N’, face à N" é, por sua vez, metaproposição. Assim, a posição que uma norma ocupa na escala do sistema é relativa. Pode ser, a um tempo, uma sobrenorma e uma norma-objeto. Essa relatividade está expressa nos conceitos de criação e de aplicação: criar uma norma N" é aplicar a norma N’; criar a norma N’ é aplicar a norma N° . A norma N° , que funciona como a última no regresso ascendente, é a norma fundamental, que não provém de outra norma, que é norma de construção sem ser aplicação. O outro limite extremo encontra-se no ato final de execução da conseqüência jurídica, que não dá margem a nenhuma outra norma. O dever-ser alcançou, então, o último grau de concrescência, com a determinação individualizada do pressuposto e da conseqüência."(3)

Segundo a teoria kelseniana, a natureza do fundamento de validade distingue-se por dois distintos sistemas de normas: estático e dinâmico.

"O sistema de normas do tipo estático afirma que a conduta dos indivíduos por elas determinada, é considerada como devida (devendo ser) por força do seu conteúdo: porque a sua validade pode ser reconduzida a uma norma a cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral."(4) Contudo, para Kelsen a norma fundamental pode fornecer o fundamento de validade das normas por ela baseadas, mas não o seu conteúdo de validade, tratando-se de um sistema dinâmico.

No tipo dinâmico, "a norma fundamental limita-se a delegar numa autoridade legisladora, quer dizer, a fixar uma regra em conformidade com a qual devem ser criadas as normas deste sistema. A norma que constitui o ponto de partida da questão não vale por força do seu conteúdo, ela não pode ser deduzida da norma pressuposta através de uma operação lógica. Esse conteúdo apenas pode ser determinado através de atos pelos quais a autoridade a quem a norma fundamental confere competência e as outras autoridades que, por sua vez, recebem daquela a sua competência, estabelecem as normas positivas deste sistema."(5)

Dessa forma, a teoria da pirâmide jurídica idealizada por Kelsen, consubstanciada em seu sistema normativo dinâmico, "não pretende construir uma fotografia da realidade e da gênese das normas que compõem uma ordem, mas sim ser um método para ordenar logicamente os comandos jurídico-positivos convetendo-os em um todo sistemático e unitário, dando-lhes, assim, a razão lógica de sua validade formal."(6)

Temos a seguinte lição de Norberto Bobbio:

" (...) dado o poder constituinte como poder último, devemos pressupor, portanto, uma norma que atribua ao poder constituinte a faculdade de produzir normas jurídicas: essa norma é a norma fundamental. A norma fundamental, enquanto, por um lado, atribui aos órgãos constitucionais poder de fixar normas válidas, impõe a todos aqueles aos quais se referem as normas constitucionais o dever de obedecê-las. É uma norma ao mesmo tempo atributiva e imperativa, segundo se considere do ponto de vista do poder ao qual dá origem ou da obrigação que dele nasce. Essa norma única não pode ser senão aquela que impõe obedecer ao poder originário do qual deriva a Constituição, que dá origem às leis ordinárias, que, por sua vez, dão origem aos regulamentos, decisões judiciais, etc. Se não postulássemos uma norma fundamental, não acharíamos o ubi consistam, ou seja, o ponto de apoio do sistema. E essa norma última não pode ser senão aquela de onde deriva o poder primeiro."(7)

Então, "a norma fundamental, como condição da possibilidade do conhecimento dogmático do Direito (sua função gnoseológica) é, sintaticamente, proposição situada fora do sistema de Direito positivo. Quando Kelsen diz, repetidamente, que não é norma posta (estatuída por uma autoridade ou pelo costume), mas pressuposta, podemos traduzir isso em termos de Lógica moderna: a norma fundamental é uma proposição de metalinguagem; não está ao lado das outras proposições do Direito positivo, não proveio de nenhuma fonte técnica; carece de conteúdo concreto e, relativamente à matéria das normas positivas, é forma condicionante delas (forma cognoscente, hipótese epistemológica)."(8)

Por conseguinte, a Grundnorm não pertence ao direito positivo, pois não foi estabelecida pelo órgão da comunidade jurídica. Não sendo prevista em nenhum código, por não estabelecer direitos e nem obrigações, como também, pelo fato de não basear-se nos alicerces de normas anteriores, nem possuir fundamentos de nenhuma norma superior. Trata-se portanto, de uma norma idealizada pelo teórico do direito com a prerrogativa indispensável para o conhecimento do direito, logo, ao estabelecê-la o pesquisador do direito não estará usufruindo da autoridade de legislar.

Segundo Kelsen, "a Grundnorm é jurídica, no sentido de ter funções jurídicas relevantes, tais como a de fundamentar a validade objetiva do significado subjetivo dos atos de vontade criadores da norma e a de fundamentar a unidade de uma pluralidade de normas. Dentro do sistema tem ela, portanto, uma dupla função constitutiva: a de dar unidade e a de dar validade a um sistema de normas."(9)

Ao tentar explicar a necessidade da busca por um ponto de partida que desencadeará na condição de validade do sistema normativo construído pelo cientista do direito, o Mestre de Viena sofre influência de Kant. Por considerar ser próprio da razão a ânsia de descobrir a condição suprema, que não tenha sido condicionada por nenhuma outra. Sendo assim, o jurista, intencionado ou não, se vê obrigado a eleger uma norma fundamental ao estudar o direito, a fim de justificar a validade da ordenação jurídica por ele analisada. Contudo, a Grundnorm não é elaborada de forma arbitrária, pois nasce de uma necessidade imanente da ciência jurídica de estipular em que resulta a observação dos fatos que estão sendo estudados.

"A decisão do estudioso do direito está condicionada por uma base de cunho nitidamente sociológico. Se ele tiver, por exemplo, como finalidade a construção de um sistema de normas jurídicas para reger um Estado republicano, terá de procurar uma hipótese científica que seja capaz de concebê-lo como jurídico, não podendo, evidentemente, enunciar tal hipótese da seguinte maneira: "Devemos obedecer ao monarca". Essa formulação careceria totalmente de sentido para fundar a validade do sistema jurídico de uma República."(10)

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Então, para a teoria kelseniana, o teórico do direito ao estabelecer a norma fundamental, afirma que a validade de uma norma decorre do que, historicamente, o constituinte originário determinou como sua manifestação de vontade; uma vez que, é a partir da primeira Constituição(a principal) que vão decorrer os fundamentos de validade das normas que compõem o ordenamento jurídico. Constitui-se numa norma jurídico-positivada pelo primeiro constituinte, não possuindo fundamento de validade em nenhuma norma anterior, sendo o seu caráter normativo extraído da norma básica, a norma fundamental.

A norma hipotética fundamental, apenas, poderá ser alterada em decorrência de uma revolução ou golpe de Estado, pois a norma básica que fundamenta a validade da ordem jurídica vigente é alterada pela mudança brusca dos conceitos e regimes antes estabelecidos. Competindo ao jurista, ao se estabelecer a nova ordem jurídica reportar-se a norma fundamental que ficou oculta, a fim de perpetuar o que foi estabelecido para a atual primeira Constituição histórica. Isso não significa que a revolução ou o golpe de Estado irão figurar a Grundnorm, mas sim, o seu antecedente.


3. Conclusão

O mestre de Viena em sua obra A Teoria Pura do Direito estabeleceu que o fundamento de validade do ordenamento jurídico-positivo deve se basear em fatos axiológicos, sociológicos, políticos, econômicos dentre outros, sendo exclusivamente formalista, a fim de assegurar a neutralidade científica de seus postulados.

Apesar de sua intenção em dissociar as categorias do direito como sollen (dever ser) e o direito natural (ser), Kelsen não conseguiu mantê-las. O sistema jurídico estabelecido em um determinado ordenamento não é formulado apenas pelo isolamento de normas e uma Grundnorm, mas por uma série de fatos decorrentes do comportamento efetivo das pessoas que integram a ordem que se busca construir.

Como bem lembra Goffredo Telles Júnior, "a norma fundamental não deve ser considerada como uma categoria, no sentido kantiano, pelo simples motivo de que não é um a priori: depende de certas condições empíricas; só pode ser estabelecida a posteriori, ou seja, após a verificação do fato."(11)

Críticas existem a norma hipotética fundamental , pois a medida em que o teórico do direito elabora uma hipótese jurídico-científica, esta deve ser experimentada, a fim de constatar se o preceito foi aceito diante do comportamento dos homens presentes naquele sistema estudado. Afirmam que para o axioma da Grundnorm ser válido é necessária a comprovação de sua realidade.

Contudo, apesar de algumas críticas que são disseminadas diante da obra de Hans Kelsen, este teve a brilhante intenção de buscar resolver o problema existente entre os teóricos, sob em que se fundava a validade das normas que compunham um determinado sistema, através da formulação de uma norma básica em que deveria ser aceita pelo jurista stricto sensu como um postulado unificador de um sistema de normas. O que ele não conseguiu consolidar em sua tese foi a pureza da ciência jurídica, consubstanciando a validade do sistema normativo numa idéia a priori desvinculada de qualquer fato empírico, assegurando a validade da norma fundamental apenas numa suposição, sem levar em consideração os fatos decorrentes de uma devida experimentação.

Logo, diante das veementes críticas a esse fato o próprio Kelsen buscou justificar a formulação de sua norma fundamental na obra Teoria Geral das Normas ao concordar com o posicionamento de Vaihinger, in Die Philosophie des Als-Ob, 7. und 8. Aufl., Leipzig 1922: o fundamento de validade das normas instituintes de uma ordem jurídica ou moral positiva, é a interpretação do sentido subjetivo dos atos ponentes dessas normas como de seu sentido objetivo; isto significa, porém, como normas válidas, e dos respectivos atos como atos ponentes de norma. Este fim é atingível apenas pela via de uma ficção. Por conseguinte, é de se observar que a norma fundamental, no sentido da vaihingeriana Filosofia do Como-Se não é hipótese – como eu mesmo, acidentalmente, a qualifiquei -, e sim uma ficção que se distingue de uma hipótese pelo fato de que é acompanhada, porque a ela não corresponde a realidade."(12)


Notas

1. KELSEN. Hans. Teoria Pura do Direito; (tradução João Baptista Machado). 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, p. 216-217, 1998.

2. KELSEN. Hans. Teoria Pura do Direito. cit. p. 217.

3. VILANOVA. Lourival. As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 2 ed. São Paulo: Max Limonad, p. 165, 1997.

4. KELSEN. Hans. Teoria Pura do Direito. cit. p. 217.

5. KELSEN. Hans. Teoria Pura do Direito. cit. p. 219-220.

6. DINIZ, Maria Helena. A Ciência Jurídica. 4 ed. São Paulo: Saraiva. p. 124, 1996.

7. BOBBIO. Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6 ed. Brasília: Universidade de Brasília. p.58-59, 1995.

8. VILANOVA. Lourival. As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. cit. p.175-176.

9. Apud. DINIZ, Maria Helena. A Ciência Jurídica. ob.cit. p. 129.

10. DINIZ, Maria Helena. A Ciência Jurídica. ob.cit. p.130-131

11. Apud. DINIZ, Maria Helena. A Ciência Jurídica. ob.cit. p. 136.

12. KELSEN. Hans. Teoria Geral das Normas. (trad. José Florentino Duarte). Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, p. 329, 1986.


Bibliografia

BOBBIO. Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6 ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1995.

DINIZ, Maria Helena. A Ciência Jurídica. 4 ed. São Paulo: Saraiva., 1996.

KELSEN. Hans. Teoria Geral das Normas. (trad. José Florentino Duarte). Porto Alegre:Sérgio Antônio Fabris Editor, 1986.

KELSEN. Hans. Teoria Pura do Direito; (tradução João Baptista Machado). 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

VILANOVA. Lourival. As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 2 ed. São Paulo: Max Limonad, 1997.

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Sobre a autora
Susana Rocha França da Cunha Lima

advogada em Natal (RN), especializanda em Processo Civil pela UFRN

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Susana Rocha França Cunha. Considerações sobre a norma hipotética fundamental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2157. Acesso em: 22 dez. 2024.

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