1. Introdução
No ano de 2012, o Tribunal Superior Eleitoral, exercendo a função regulamentar, aprovou a Resolução nº 23.376, que dispõe sobre a arrecadação e os gastos de recursos por partidos políticos, candidatos e comitês financeiros e, ainda, sobre a prestação de contas nas eleições de 2012.
Nela consta inovação que está causando grande repercussão no meio jurídico brasileiro: um dispositivo prevendo que a decisão que desaprovar as contas do candidato implicará no impedimento de obter a certidão de quitação eleitoral.
Tanto a imprensa como os juristas vêm afirmando que esse dispositivo veda que os candidatos que tiveram suas contas desaprovadas nas campanhas de 2010 (ou mesmo anteriores) sejam candidatos em 2012, com fundamento no §2º do artigo 52 da citada resolução.
Em verdade, não acreditamos nessa conclusão.
Embora os argumentos apresentados aqui sejam bem simples, acreditamos ser suficientes para embasar a conclusão acima posta, bastando para isso volver os olhos à legislação eleitoral e interpretá-la sistematicamente, posicionando corretamente o dispositivo citado no contexto em que está inserido, atentando ainda para a forma gramatical com que foi escrito.
2. O campo de abordagem deste artigo
Este artigo não pretende afirmar que o §2º do artigo 52 da Resolução TSE nº 23.376 é inconstitucional ou ilegal porque fere:
a) o §7º do artigo 11 da Lei nº 9504, de 30/09/1997, acrescentado pela Lei nº 12.034, de 29/09/2009, que ao definir o conceito de quitação eleitoral estabeleceu que a simples apresentação das contas pelo candidato lhe assegura a quitação, não sendo necessária a sua aprovação pelo órgão eleitoral.
b) o princípio da anualidade da legislação que rege o processo eleitoral, previsto no artigo 16 da Constituição, considerando que tal resolução, na visão de muitos, criou uma nova causa de inelegibilidade, influenciando diretamente no processo eleitoral. Como somente foi editada em março deste ano, a menos de 7 meses da eleição, a resolução não poderia valer para o ano de 2012.
c) a competência regulamentar pelo Tribunal Superior Eleitoral, que teria sido excedida.
Embora tais argumentos sejam juridicamente relevantes, não serão abordados aqui.
3. O dispositivo em análise
O que impediria a quitação eleitoral aos candidatos que tiveram suas contas da campanha de 2010 desaprovadas, conduzindo consequentemente à inelegibilidade, é o §2º do artigo 52 da Resolução nº 23.376 do TSE, de seguinte redação:
“Art. 52. A decisão que julgar as contas dos candidatos eleitos será publicada até 8 dias antes da diplomação (Lei nº 9.504/97, art. 30, § 1º).
§1º Na hipótese de gastos irregulares de recursos do Fundo Partidário ou da ausência de sua comprovação, a decisão que julgar as contas determinará a devolução do valor correspondente ao Tesouro Nacional no prazo de 5 dias após o seu trânsito em julgado.
§2º Sem prejuízo do disposto no § 1º, a decisão que desaprovar as contas de candidato implicará o impedimento de obter a certidão de quitação eleitoral.”
4. A impossibilidade da Resolução TSE nº 23.376 impedir que os candidatos que tiveram suas contas eleitorais desaprovadas possam ser candidatos em 2012: a aplicabilidade e os efeitos da resolução estão adstritos aos atos realizados nas eleições de 2012.
Com efeito, este artigo destina-se apenas a explicar por que a Resolução TSE nº 23.376 não impede que os candidatos que tiveram suas contas de campanha desaprovadas em 2010 sejam candidatos em 2012.
A citada resolução dispõe sobre a arrecadação e os gastos de recursos por partidos políticos, candidatos e comitês financeiros e, ainda, sobre a prestação de contas nas eleições de 2012.
O §2º do artigo 52 tem a seguinte redação:
“§2º Sem prejuízo do disposto no § 1º, a decisão que desaprovar as contas de candidato implicará o impedimento de obter a certidão de quitação eleitoral.”
Quadra salientar que a certidão de quitação eleitoral é condição essencial para o eleitor ser candidato: não a possuindo, não pode votar e ser votado.
Pois bem.
De se notar que a Resolução TSE nº 23.376 disciplina, dentre outros aspectos, a prestação de contas nas eleições de 2012, bem como os efeitos jurídicos da decisão que decida sobre a prestação de contas.
Conforme é cediço na própria resolução, tais regras se aplicam somente para as eleições de 2012, visto que os fatos contábeis e financeiros que vão integrar as contas de 2012 ainda não ocorreram, pois serão criados, modificados ou extintos ao longo da campanha, de modo que, após sua conclusão, estes fatos serão discriminados na prestação de contas que será apresentada e julgada pela Justiça Eleitoral.
Se esta decidir pela reprovação, as contas de 2012, e somente elas, sofrerão o novo efeito criado pela Resolução TSE nº 23.376, no artigo 52, §2º: o impedimento do candidato em obter a certidão de quitação eleitoral, deixando-o inelegível para as eleições que se realizarem a partir de então.
Pensamos, portanto, que tal resolução foi criada para regulamentar a prestação de contas do ano de 2012, e não em períodos anteriores, lançando seus efeitos para o futuro, para fatos que dizem respeito às eleições vindouras, como se pode verificar no próprio tempo verbal utilizado nas expressões contidas no dispositivo: a decisão que desaprovar “implicará” (futuro) em impedimento à quitação eleitoral.
O impedimento para obter a certidão de quitação eleitoral, que é o efeito jurídico previsto nesta hipótese, terá como sua causa a desaprovação das contas eleitorais de 2012, e somente a deste ano, porque a Resolução nº 23.376 só tem o condão de estabelecer consequências jurídicas para as contas da campanha de 2012, fim para o qual foi instituída, e não na dos anos anteriores, que foram processadas e julgadas segundo as normas então em vigor, cujos efeitos também foram lá previstos.
Uma dúvida precisa ser esclarecida, sob pena de causar ainda mais discussões: como a Resolução TSE nº 23.376 inovou ao criar um novo efeito para as contas desaprovadas, deveria também assinalar por quanto tempo ele perdura, ou seja, por quanto tempo o candidato vai ficar sem obter a certidão de quitação eleitoral em razão da desaprovação de suas contas na campanha de 2012, e como poderá fazer para regularizar essa pendência, já que, em se tratando de penalidade, não há penas de caráter perpétuo no país, devendo por tal motivo indicar o prazo de sua duração ou os meios para que o candidato possa regularizar sua situação perante a Justiça Eleitoral e novamente obter a quitação, voltando a exercer os direitos inerentes à cidadania.
Outrossim, se a intenção dos magistrados que compõem a mais alta corte eleitoral do país foi impedir que os candidatos com contas desaprovadas na campanha de 2010 fossem candidatos em 2012, parece que ela não se concretizou.
Desconhecemos, é verdade, o teor dos debates ou justificativas que precederam a aprovação da Resolução TSE nº 23.376.
Mas pensamos, por outro lado, ser desnecessária a análise dessas circunstâncias, visto que o texto da resolução que foi aprovado e ingressou no mundo jurídico não abarca nenhum dispositivo que impeça ao candidato com contas desaprovadas em 2010 a ser candidato em 2012, o que inadvertidamente vem-se tentando extrair do já comentado §2º do artigo 52, que somente dispõe sobre os efeitos jurídicos das contas a serem desaprovadas em 2012. E só delas.
Se intenção do TSE era de atingir fatos pretéritos, deveria ter incluído no texto comando expresso neste sentido, utilizando os tempos verbais mais adequados como “os candidatos que tiveram (passado) contas de quaisquer campanha desaprovadas pela Justiça Eleitoral estão (presente) impedidos de obter a quitação eleitoral”, ou “a decisão que desaprovou (passado) as contas de candidato implica (presente) o impedimento de obter a certidão de quitação eleitoral”. Solucionar-se-ia, assim, tormentosa questão que vem gerando insegurança jurídica em razão do seu conteúdo vastamente interpretativo e das declarações desencontradas da imprensa e juristas.
Concluindo este item, pela redação dos dispositivos analisados, nem o espírito da lei nem o do legislador foram alcançados, caso a intenção deles fosse impedir que os candidatos com contas eleitorais rejeitadas em 2010 sejam candidatos em 2012, ante a falta de qualquer disposição expressa neste sentido, havendo para isso, salvo melhor juízo, a necessidade de uma reforma normativa que leve ao texto clareza em seu conteúdo.
5. A impossibilidade da Resolução TSE nº 23.376 impedir que os candidatos que tiveram suas contas eleitorais desaprovadas possam ser candidatos em 2012: a Resolução TSE nº 23.217, que regulamentou a prestação de contas nas campanhas eleitorais de 2010, não previu como efeito jurídico da desaprovação das contas o impedimento à quitação eleitoral.
Para as eleições de 2010 o TSE editou a Resolução nº 23.217, que dispunha sobre a arrecadação e os gastos de recursos por partidos políticos, candidatos e comitês financeiros e, ainda, sobre a prestação de contas nas eleições de 2010.
Possuía o dispositivo a seguinte redação:
“Art. 40. A decisão que julgar as contas dos candidatos eleitos será publicada até 8 dias antes da diplomação (Lei n° 9.504/97, art. 30, § 1º).
§1º Desaprovadas ou julgadas não prestadas as contas, a Justiça Eleitoral remeterá cópia de todo o processo ao Ministério Público Eleitoral para as medidas cabíveis.
§2º Na hipótese de gastos irregulares de recursos do Fundo Partidário ou da ausência de sua comprovação, a decisão que julgar as contas determinará a devolução ao Tesouro Nacional no prazo de 5 dias após a decisão definitiva que julgou a prestação de contas de campanha.”
Esta resolução disciplinava a prestação de contas nas eleições de 2010, assinalando como único efeito ao candidato que tivesse suas contas desaprovadas ou não prestadas o envio de cópia de todo o processo ao Ministério Público Eleitoral para as medidas cabíveis, ressaltando que este normalmente ingressava com representação eleitoral pedindo a condenação do candidato por abuso de poder econômico ou gasto ilícito de recursos de campanha, com o fito de torna-lo inelegível.
Assim, para aqueles que tiveram suas contas de campanha desaprovadas nas eleições de 2010, o único efeito contrário era – e ainda é – ficar sujeito às providências cabíveis a serem adotadas pelo Ministério Público Eleitoral, até porque o §7º do artigo 11 da Lei nº 9504, de 30/09/1997, acrescido pela Lei nº 12.034, de 29/09/2009, previu que a simples apresentação das contas pelo candidato é condição suficiente para obter a quitação eleitoral, não sendo necessária, portanto, a aprovação das respectivas contas pela Justiça Eleitoral.
Repisa-se aqui que não há na Resolução TSE nº 23.217, que disciplinou a prestação de contas nas eleições de 2010 e regulamentou os seus efeitos, a previsão de que a quitação eleitoral seria negada ao candidato que tivesse suas contas desaprovadas naquele ano – até porque, em se tratando de norma punitiva que restringe direitos relacionados ao exercício da cidadania, o mais correto seria a previsão expressa deste efeito em desfavor do candidato.
Caso contrário, não havendo a lei do tempo estabelecido tal impedimento, dá-se como inexistente, não escrito.
Finalizando este tópico, quadra salientar que as contas da campanha de 2010 foram processadas e julgadas segundo a lei do tempo: transitada em julgado esta decisão, seus efeitos não podem ser alterados porque recobertos pelo manto sagrado da coisa julgada, não podendo, assim, a uma nova disposição normativa incluir novos efeitos a uma decisão jurídica válida, perfeita e eficaz.
6. A impossibilidade da Resolução TSE nº 23.376 impedir que os candidatos que tiveram suas contas eleitorais desaprovadas possam ser candidatos em 2012: a resolução que regulamenta a escolha e o registro de candidatos nas eleições de 2012 definiu para fins do registro que a quitação eleitoral é concedida mediante a mera apresentação, por parte do candidato, das contas da campanha eleitoral anterior, desnecessária sua aprovação.
Importante ressaltar que a Resolução TSE nº 23.373, que dispõe sobre a escolha e o registro de candidatos nas eleições de 2012, não impediu que os candidatos que tiveram suas contas de campanha desaprovadas fossem candidatos no pleito deste ano.
Assim ela dispõe:
“Art. 26. O formulário Requerimento de Registro de Candidatura (RRC) conterá as seguintes informações:
(...)
§3º A quitação eleitoral de que trata o § 1º deste artigo abrangerá exclusivamente a plenitude do gozo dos direitos políticos, o regular exercício do voto, o atendimento a convocações da Justiça Eleitoral para auxiliar os trabalhos relativos ao pleito, a inexistência de multas aplicadas, em caráter definitivo, pela Justiça Eleitoral e não remitidas, e a apresentação de contas de campanha eleitoral (Lei nº 9.504/97, art. 11, § 7º).
§ 4º Para fins de expedição da certidão de quitação eleitoral, serão considerados quites aqueles que (Lei nº 9.504/97, art. 11, § 8º, I e II):
I – condenados ao pagamento de multa, tenham, até a data da formalização do seu pedido de registro de candidatura, comprovado o pagamento ou o parcelamento da dívida regularmente cumprido;
II – pagarem a multa que lhes couber individualmente, excluindo-se qualquer modalidade de responsabilidade solidária, mesmo quando imposta concomitantemente com outros candidatos e em razão do mesmo fato.”
Ou seja: considerou suficiente para fins de quitação eleitoral para as eleições de 2012 a mera apresentação das contas da campanha anterior, e não a sua aprovação, seguindo assim o preceituado no §7º do artigo 11 da Lei nº 9504/94. De tal modo, se a nova norma legal pretendesse ampliar este conceito para barrar os candidatos com contas desaprovadas, deveria conter expressamente na parte final do dispositivo, após a expressão “apresentação”, outra palavra, indicando “aprovação” das contas.
Pensando assim, consoante interpretação errônea que se vem dando ao texto normativo, estar-se-ia criando um conceito de quitação eleitoral novo, diferente daquele previsto na Resolução nº 23.373, inviabilizando, ao arrepio da norma, o registro de inúmeros candidatos que tiveram suas contas de campanha apresentadas e não aprovadas, o que não encontra respaldo na legislação em estudo.
7. Conclusão
Em nome da segurança jurídica, não pode uma resolução de 2012 criar efeitos jurídicos para situações criadas, modificadas ou extintas no ano de 2010, sob a égide da lei no tempo, que não previu como efeito pela desaprovação das contas de campanha o impedimento à quitação eleitoral.
Do mesmo modo, o §2º do artigo 52 da Resolução nº 23.376 deve valer apenas para o futuro, pois o dispositivo encontra-se inserido na legislação que rege a prestação de contas das eleições de 2012, criando para as contas desse ano um novo efeito, o que pode ser constatado facilmente pela sua redação.
Finalmente, se houve a intenção da Justiça Eleitoral de impedir que os candidatos com contas desaprovadas em 2010 fossem candidatos em 2012, esta não se concretizou a contento, em vista da redação imprecisa do dispositivo em comento e de sua localização topográfica numa resolução que dispõe sobre prestação de contas de campanha e não de registro de candidaturas.
Por esse motivo, concluímos que a Resolução TSE nº 23.376 não pode impedir que os candidatos que tiveram suas contas eleitorais desaprovadas em pleitos anteriores possam ser candidatos em 2012.