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A expedição de recomendação (“avulsa”) pelo Ministério Público sem vinculação a qualquer procedimento

23/04/2012 às 16:03

Resumo:


  • Recomendação é um mecanismo extrajudicial formal e sem caráter normativo, utilizado pelo Ministério Público para sugerir a prática ou não de certos atos em prol da melhoria dos serviços públicos e do respeito aos interesses, direitos e bens defendidos pela instituição.

  • A recomendação tem natureza jurídica de um ato enunciativo de efeito concreto, sendo um instrumento que, embora não vinculante, possui grande força moral e implicações práticas, como o dever de dar divulgação e resposta fundamentada ao membro do Ministério Público.

  • O Ministério Público pode expedir recomendações sem a necessidade de instaurar um inquérito civil ou procedimento preparatório, desde que devidamente fundamentadas, atendendo ao dever constitucional de motivar suas decisões, atos e providências.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A recomendação pode ser expedida pelo Ministério Público como um ato isolado ou apenas dentro de um procedimento formalmente instaurado através de portaria?

Sumário: 1- Introdução. 2- Delineamentos conceituais. 2.1- Natureza jurídica. 3- Recomendação e controle de constitucionalidade. 4- Medida judicial contra recomendação. 5- A expedição de ato recomendatório desvinculado de qualquer procedimento. 6- A resolução n. 23, de 17.09.2007, do Conselho Nacional do Ministério Público e outros atos normativos. 7- Conclusão.


1- Introdução

Todo ato emanado do poder público carrega em si o estigma da seriedade, da ponderação e do equilíbrio. Presume-se que as ações sejam engendradas de acordo com o ordenamento jurídico e não como fruto de emoção passageira ou outros sentimentos pessoais inomináveis.

A partir de uma leitura dogmática e tendenciosa desse aspecto procedimental, criou-se no Ministério Público, de forma embrionária e empírica (pois não há um substrato teórico sério), a exigência de que recomendações e outros atos institucionais somente sejam expedidos dentro de um procedimento próprio.

Essa exigência, que claramente não encontra respaldo legal nem jurisprudencial (como demonstraremos neste estudo), tem burocratizado a instituição em muitos aspectos, retirando-lhe agilidade, eficiência e efetividade. E esse burocratismo, inimigo jurado da liberdade funcional e de toda iniciativa corajosa (Michels, s/d, p. 105), gera, inconscientemente, uma dependência em relação às autoridades superiores correcionais, sufocando a personalidade dos agentes ministeriais (que, por conveniência, passam a agir mecanicamente). Passa o promotor, então, a atuar não para alcançar elogios, mas para evitar reprimendas, o que, de certo modo, desvirtua todo o sistema motivacional do serviço público, além de malferir o princípio constitucional da independência funcional.

Não pode o membro do Ministério Público atuar ou agir sob o medo pânico de reprimendas correcionais (seja de órgãos internos ou do CNMP), o que vulnera sua independência (essência identificadora da instituição), mas sob um fundo cristalino de convicção pessoal e jurídica de que seus atos e providências correspondem aos ditames jurídicos superiores. Sob essa perspectiva, mas acima de tudo em prol da atuação uniforme dos órgãos de execução do Ministério Público, empreendemos a presente análise jurídica. 


2- Delineamentos conceituais

A recomendação é um mecanismo extrajudicial formal e sem caráter normativo, através do qual o Ministério Público declina razões fático-jurídicas sobre determinado caso concreto, advertindo ou sugerindo ao destinatário a prática ou não de certos atos em prol da melhoria dos serviços públicos e de relevância pública ou do respeito aos interesses, direitos e bens cuja defesa compete à instituição.

As recomendações, em sentido estrito, embora não tenham caráter vinculante, isto é, a autoridade destinatária não está juridicamente obrigada a seguir as propostas a ela encaminhadas, na verdade têm grande força moral, e até mesmo implicações práticas (Mazzilli, 1999, p. 337). Com efeito, embora as recomendações não vinculem a autoridade destinatária à prática dos atos recomendados, passa esta a ter o dever de: a) dar divulgação às recomendações; b) dar resposta escrita ao membro do Ministério Público, devendo fundamentar sua decisão (art. 27, §único, IV, da Lei n. 8.625/1993 – vide Mazzilli, 1999, p. 337).

No âmbito do Ministério Público da União é possível expedir recomendações, visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como ao respeito, aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis (art. 6º., inc. XX, da LC n. 75/93).

2.1- Natureza jurídica

A recomendação é um ato unilateral praticado diretamente pelo Ministério Público, no exercício de suas funções institucionais, contendo razões de convencimento sobre determinado fato e uma exortação ao destinatário, sem caráter normativo. Tais características indicam que a recomendação tem a natureza jurídica de um ato enunciativo de efeito concreto[1].


3- Recomendação e controle de constitucionalidade

O Ministério Público, dado que não há óbices constitucionais ou legais, pode expedir recomendação ao poder legislativo para exercer o autocontrole da constitucionalidade de norma editada.

Não há limites constitucionais e infraconstitucionais ao exercício do poder de recomendação para a tutela dos direitos assegurados constitucionalmente, sendo perfeitamente compatível e até razoável o seu exercício perante o Poder Legislativo, a fim de que seja provocado o autocontrole da constitucionalidade perante o próprio Poder responsável pela elaboração da norma inconstitucional (Almeida, 2008).


4- Medida judicial contra recomendação

O caráter não-vinculante da recomendação faz com que o destinatário não tenha interesse processual para atacar judicialmente o instrumento. Caso haja discordância quanto ao seu conteúdo, cabe ao destinatário simplesmente desconsiderá-la[2]. Todavia, por outro lado, como assinalado em decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª. Região, da recomendação (ou de seu não cumprimento), apesar de não ter caráter impositivo, podem advir consequências para o seu destinatário, como o ajuizamento de ação para responsabilização das autoridades competentes[3].

A 1ª. Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª. Região entendeu que “recomendação expedida pelo Ministério Público, com fundamento no art. 6º., XX, da Lei Complementar 75/93, é ato enunciativo de efeito concreto, com poder coercitivo sobre seus destinatários, passível, portanto, de ser impugnada por mandado de segurança”[4].

No mesmo sentido foi o entendimento do Tribunal de Justiça do Maranhão:

“Caracterizado o justo receio de tornar-se eficaz Recomendação, expedida pelo Ministério Público, de força vinculadora, em face de suas funções ínsitas no art. 127 da CF, consumando exonerações por nomeações legais (art. 37, II da CF), é cabível impetração de segurança na forma preventiva”[5].


5- A expedição de ato recomendatório desvinculado de qualquer procedimento

A recomendação pode ser expedida como um ato isolado ou apenas dentro de um procedimento formalmente instaurado através de portaria? De acordo com o art. 15 da Resolução n. 23, de 17.09.2007, do CNMP, “o Ministério Público, nos autos do inquérito civil ou do procedimento preparatório, poderá expedir recomendações devidamente fundamentadas, visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como aos demais interesses, direitos e bens cuja defesa lhe caiba promover”.

Em princípio, é-se levado a crer, pela literalidade da resolução, que apenas no bojo de um inquérito civil ou de um procedimento administrativo é possível expedir uma recomendação. Mas as leis de regência do Ministério Público da União e dos Estados não autorizam essa interpretação.

Na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público está disposto que:

“No exercício das atribuições a que se refere este artigo, cabe ao Ministério Público, entre outras providências: promover audiências públicas e emitir relatórios, anual ou especiais, e recomendações dirigidas aos órgãos e entidades mencionadas no caput deste artigo, requisitando ao destinatário sua divulgação adequada e imediata, assim como resposta por escrito” (art. 27, §único, IV).

Na Lei Orgânica do Ministério Público da União, por sua vez, vem previsto que:

“Compete ao Ministério Público da União: expedir recomendações, visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como ao respeito, aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis” (art. 6º., inc. XX).

Em nenhum momento, as leis fazem menção a qualquer condicionante para a expedição de recomendações (salvo a fundamentação intrínseca do ato recomendatório). E se não o fazem, não pode um ato normativo infralegal impor limitações ao mecanismo. Todavia, a própria leitura atenta do art. 15 da Resolução n. 23, do CNMP (“...nos autos do inquérito civil ou do procedimento preparatório, poderá expedir recomendações...”), registra a faculdade do membro do Ministério Público de expedir recomendações nos autos de inquérito civil ou procedimento preparatório. Não há nem a obrigatoriedade da recomendação nem a obrigatoriedade de exaração apenas nos referidos autos. Com isso, não vemos impedimento que a recomendação seja expedida como ato isolado ou avulso, desde que devidamente fundamentada.

No exercício de suas funções, o Ministério Público pode instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes e, para instruí-los pode requisitar informações, exames periciais e documentos de autoridades federais, estaduais e municipais, bem como dos órgãos e entidades da administração direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 26, I, “b”, da Lei n. 8.625/1993).

O STJ interpretando a referida norma decidiu que para a expedição de tais requisições ou notificações a órgãos públicos (ou privados) não se exige prévia instauração de inquérito civil ou procedimento administrativo[6]. Ora, se para as requisições e notificações que apresentam um caráter coercitivo e vinculante não é necessário procedimento específico onde sejam expedidas, com mais razão tal interpretação aplica-se à recomendação, dada a sua natureza jurídica de ato meramente enunciativo.

É preciso registrar, entretanto, que a expedição avulsa de recomendação não desobriga o agente ministerial de fundamentar regularmente o ato enunciativo, pois o dever de motivar suas decisões, atos e providências decorre diretamente da Constituicão Federal (art. 93, inc. IX c/c o art. 129, §).


6- A resolução n. 23, de 17.09.2007, do Conselho Nacional do Ministério Público e outros atos normativos

O Conselho Nacional do Ministério Público visando uniformizar o procedimento do inquérito civil baixou a Resolução n. 23, de 17.09.2007 (reproduzida pela Resolução n. 548/07-CSMP/AM, de 19.12.2007), prevendo que “o inquérito civil não é condição de procedibilidade para o ajuizamento das ações a cargo do Ministério Público, nem para a realização das demais medidas de sua atribuição própria” (art. 1º, §único).

Quais são as demais medidas de atribuição própria do Ministério Público? Isto nos remete aos arts. 26 e 27 da Lei n. 8.625/1993 (LONMP), onde estão elencadas as referidas medidas: requisições, notificações, recomendações, audiências públicas, atos administrativos executórios, de caráter preparatório, inspeções e diligências investigatórias etc.

Interpretando o art. 1º, §único da Resolução CNMP n. 23/2007 à luz da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (arts. 26 e 27) chega-se à conclusão de que para a expedição de recomendações não é necessário ter em andamento um inquérito civil ou um procedimento administrativo próprio. Tais procedimentos não constituem “condição de procedibilidade” para o exercício ou a realização de outras medidas inseridas no raio de atribuições do Ministério Público.

Há no âmbito do Ministério Público do Amazonas, mais especificamente no Conselho Superior, o Assento n. 004/08, de 20.08.2008, com a seguinte redação:

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“As recomendações endereçadas ao chefe do Executivo estadual, assim como às outras autoridades relacionadas ao art. 4º, §4º, da Lei Complementar n. 011/93, devem ser remetidas por meio do Procurador-Geral de Justiça, à semelhança do procedimento estabelecido às notificações e às requisições, devendo as mesmas estar embasadas e amparadas, não somente na legislação, doutrina e jurisprudência pátrias, a fim de que possam satisfazer o desígnio ao qual se propõe, mas também em substratos fáticos, como um processo administrativo, um inquérito civil ou uma audiência pública”.

O Assento do órgão colegiado, em relação às requisições e às notificações, não inova. Ao exigir que essas medidas estejam amparadas na legislação, na doutrina, na jurisprudência e em substrato fático remete, simplesmente, ao dever de motivação do ato (dever insculpido no art. 93, IX c/c o art. 129, §4º, da CF). A motivação de um ato não é, como se sabe, a mera reprodução dos termos da lei ou de eventual jurisprudência ou doutrina dominante, mas a conexão entre a autorização legal (ou jurídica) com a realidade fática. Uma espécie de “adequação típica”. O ato recomendatório, como já dissemos (e o Assento reafirma), precisa vir, intrinsecamente motivado.

Quando o Assento diz que as recomendações devem estar amparadas “também em substratos fáticos, como um processo administrativo, um inquérito civil ou uma audiência pública”, está simplesmente arrolando exemplos de “substratos fáticos” que podem ser utilizados pelo agente ministerial para motivar o ato. Verifica-se que o Assento usa a conjunção alternativa ou disjuntiva “ou”, remarcando a ideia de que o rol é meramente exemplificativo e não taxativo (caso em que a conjunção seria aditiva “e”). E agiu bem, pois existem outros substratos fáticos que podem ser usados para motivar uma recomendação: atendimento ao público, declarações reduzidas a termo, certidões imbuídas de fé pública etc.  


7- Conclusão

Em nenhum marco legal ou jurídico, vislumbra-se a obrigatoriedade da recomendação ser expedida apenas no bojo de inquérito civil ou procedimento preparatório. Talvez a expedição no curso ou conclusão de tais procedimentos resulte, no caso concreto, mais eficiente, mas não vemos, a priori, qualquer impedimento em que a recomendação seja expedida como ato isolado, desde que devidamente fundamentada (o ato, intrisecamente, considerado). Fundamentação que reafirma o caráter de seriedade, de ponderação e de equilíbrio dos atos expedidos por agentes públicos e possibilita o controle judicial de legalidade, além de atender ao dever constitucional de motivar suas decisões, atos e providências (CF, art. 93, inc. IX c/c o art. 129, §4º.).

De igual modo, interpretando o art. 1º, §único da Resolução CNMP n. 23/2007 à luz da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (art. 26 e incisos) chega-se à conclusão de que para a expedição de recomendações não é necessário ter em andamento um inquérito civil ou um procedimento administrativo próprio, ou ainda uma audiência pública. Tais procedimentos não constituem “condição de procedibilidade” para o exercício ou a realização de outras medidas inseridas no raio de atribuições do Ministério Público.  


Referências bibliográficas:

ALMEIDA, Gregório Assagra de. “Recomendação pelo Ministério Público e o autocontrole da constitucionalidade”. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1958, 10 nov. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11950>. Acesso em: 4 ago. 2011.

MAZZILLI, Hugo Nigro. Manual do promotor de justiça. São Paulo:Saraiva, 2ª. ed., 1991.

MAZZILLI, Hugo Nigro. O inquérito civil. São Paulo:Saraiva, 1999.

MICHELS, Robert. Os partidos políticos. Tradução de Hamilton Trevisan. São Paulo:Senzala, s/d.


Notas

[1] TRF2, AMS 37026 2000.02.01.055648-1, Rel. Des. Federal Simone Schreiber, Julgamento: 30/09/2002, Órgão Julgador: Primeira Turma, DJU 05/12/2002, p. 77.

[2] TJSC, Apel. Cív. 2008.065247-0, Rel. Des. Cid Goulart, in: www.jusbrasil.com.br/.../apelacao-civel-ac-652470-sc-2008065247-0-tjsc.

[3] TRF 1, 2869 MG 2008.38.02.002869-9, Relator: Desembargador Federal Daniel Paes Ribeiro, Data de Julgamento: 13/05/2011, Sexta Turma, Data de Publicação: e-DJF1 p.92 de 30/05/2011.

[4] TRF2, AMS 37026 2000.02.01.055648-1, Rel. Des. Federal Simone Schreiber, Julgamento: 30/09/2002, Órgão Julgador: Primeira Turma, DJU 05/12/2002, p. 77.

[5] TJMA, 164752006 MA, Relator: Raymundo Liciano de Carvalho, Data de Julgamento: 16/08/2007, SAO MATEUS.

[6] REsp 873.565/MG, Rel. Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, julgado em 05.06.2007, DJ 28.06.2007, p. 880. Também este é o entendimento que se encontra em Mazzilli, 1991, pp. 121-122.

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Sobre o autor
João Gaspar Rodrigues

Promotor de Justiça. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Membro do Conselho Editorial da Revista Jurídica do Ministério Público do Amazonas. Autor dos livros: O Ministério Público e um novo modelo de Estado, Manaus:Valer, 1999; Tóxicos..., Campinas:Bookseller, 2001; O perfil moral e intelectual do juiz brasileiro, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2007; Segurança pública e comunidade: alternativas à crise, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2009; Ministério Público Resolutivo, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2012.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, João Gaspar. A expedição de recomendação (“avulsa”) pelo Ministério Público sem vinculação a qualquer procedimento . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3218, 23 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21597. Acesso em: 22 dez. 2024.

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