3. Da ordem cronológica, do sequestro, do repasse e do pagamento
Já foi visto como ocorre o procedimento prático da requisição, que é o definidor da ordem cronológica.
A ordem cronológica é o ponto de apoio sobre o qual se mantém todo o mecanismo do precatório estabelecido na Constituição Federal. Esta ordem é imutável, inalterável, indiscutível. Não há uma única hipótese prevista em lei que autorize a alteração da ordem cronológica, uma vez estabelecida. É vedado ao ente público manuseá-la, por qualquer meio, subreptício ou não, de modo a efetivar pagamentos sem a sua estrita observância. O próprio presidente do Tribunal, se o fizer, pode sofrer as cominações respectivas (art. 100, §7º, da CF/88). É possível reduzir o número de precatórios listados, excluindo-os da ordem, seja para a adequação do pagamento a outro rito (o da RPV), seja para favorecer o exequente preferencial, como será visto no próximo item, mas é radicalmente inadmissível alterar a mesma, cuja essência reside na cronologia. Quem está em posição posterior na ordem jamais ficará à frente de seu antecessor. A ordem cronológica para pagamento dos precatórios é um dos grandes marcos cristalizadores da moralidade administrativa no âmbito da Fazenda Pública, e clara expressão da ordem democrática brasileira.[5]
No exercício do cargo de Secretário Judiciário de Tribunal do Trabalho, em assessoria ao Presidente do Tribunal, procuramos ser enérgicos na manutenção da higidez dessa ordem. É comum que nos cheguem pedidos de homologação de acordos celebrados pelos entes públicos em sede de precatório. Sobre os acordos, falaremos mais no próximo item. Apenas para adiantar-nos, não raro tais acordos visam a favorecer exequentes que se encontram em posição bem posterior na ordem cronológica do município (tal prática é mais comum no âmbito municipal, em face da cultura de gentilezas eleitoreiras consagrada nos municípios brasileiros, desde a República Velha). Ora, admitir tal mecanismo seria compactuar com a burla à ordem cronológica, vez que o ente público estaria, na verdade, efetivando pagamento a quem não fosse o da vez. A homologação de tal acordo consagraria a prática (já quase centenária) de agrados e favores a angariar eleitorado; motivação, no mais das vezes, presente por trás dessa pretensão de conciliar espontaneamente com exequentes escolhidos a dedo na ordem. Tal pretensão é mais política e pessoal, e menos comprometida com o saneamento dos cofres públicos. No âmbito do TRT22, os acordos só são homologados se estiverem observando a estrita ordem cronológica.
Caso interessante em que se analisou recentemente a possibilidade de alteração da ordem cronológica foi o de dois precatórios plúrimos, originados do mesmo processo. Neste caso, por nós analisado, recordamos bem, uma parte dos exequentes havia pleiteado o pagamento por RPV, haja vista que seus créditos, à época, obedeciam o limite constitucional de quarenta salários-mínimos (a unidade federada devedora era o Estado do Piauí), conforme art. 87 do ADCT. Ocorre que o Estado do Piauí possuía lei definidora de pequeno valor: a Lei 5.250/2002, que o fixava no patamar máximo de 5 (cinco) salários mínimos. Como o Tribunal Regional considerava tal lei inconstitucional, o pleito dos requerentes havia sido deferido, ficando seus créditos na Vara de origem, para serem pagos por RPV. A outra parte dos exequentes teve seus créditos inscritos em precatório. Pouco depois, o Juízo da execução decidiu sobrestar o trâmite de todas as RPVs superiores ao patamar da lei estadual, até que o Supremo Tribunal Federal decidisse a questão.
Em junho de 2004, o STF entendeu pela constitucionalidade das leis locais que estabelecessem como pequeno valor débitos em patamares muito menores do que aqueles dos quais se utilizou o legislador constituinte como referência. A ação direta, aliás, teve origem justamente a partir da lei estadual piauiense (ADI 2868/PI), que, no fim das contas, foi considerada válida[6]. Como consequencia, os exequentes que haviam pleiteado o rito da RPV, no caso concreto em comento, restaram prejudicados, ficando seu crédito inscrito mesmo na fila dos precatórios, mas, agora, em posição bem posterior na ordem do que aquela em que se encontravam os colegas cujo crédito restou requisitado como precatório desde o início.
Recentemente, estes, do precatório mais antigo, chegaram à vez de pagamento, pleiteando aqueloutros, prejudicados com o sobrestamento no pagamento de seus créditos, fossem também pagos, na mesma oportunidade. Infelizmente, não houve como deferir o pleito, exatamente por configurar quebra de ordem. Fosse o precatório o mesmo desde o início, talvez até fosse possível o deferimento, posto já ter sido o empenho correspondente à totalidade do crédito incluído no orçamento do devedor, à época própria, pelo menos em tese. Assim sendo, pagar-se-ia a todos conjuntamente, excluindo-se o precatório posterior, sem prejuízo da previsão orçamentária do ente público. Não era este, porém, o caso. Em verdade, faltou uma visão mais delicada da matéria, por parte do Supremo, que poderia ter modulado os efeitos da decisão. Criticável também a postura do Juízo a quo, de sobrestar, à época, pleito legítimo e já deferido pelo presidente do Tribunal.
Pois bem.
Passado o prazo para pagamento do débito requisitado, tanto no precatório quanto na RPV, com rigorosa observância à ordem cronológica, o ente público deverá, imediatamente, providenciar a quitação do valor requisitado. Infelizmente, a minoria o faz e, em não o fazendo, o Juízo está autorizado a proceder ao sequestro. E aqui, adentramos a um assunto que já foi mais delicado.
Os tribunais sempre tiveram medo de efetivar procedimento de sequestro em sede de precatório. Não se estranhava o sequestro feito pelo Juízo da execução em sede de RPV, mas, até pouco tempo, falar em sequestro no âmbito do precatório era quase um crime. Olvidava-se de que o rito de um é, em essência, igual ao do outro, salvo, como já comentamos, quanto ao Juízo competente, valor do débito e prazo de pagamento.
No âmbito da RPV, dispõe expressamente o §2º do art. 17 da Lei 10.259/2001, verbis: “desatendida a requisição judicial, o Juiz determinará o sequestro do numerário suficiente ao cumprimento da decisão”. O procedimento de sequestro, portanto, era regularmente efetivado pelas Varas, sem quaisquer obstáculos de entendimento.
Já no rito precatorial, a jurisprudência sempre foi branda com os entes públicos, a não permitir ou a dificultar o procedimento de sequestro. A jurisprudência pacífica do STF, sedimentada desde a década de 70, era a de que somente se haveria de sequestrar contas públicas quando houvesse preterição da ordem cronológica. Ora, e quando não houvesse? O ente público nada pagaria, se quisesse, ficando por isso mesmo?
O STF prendia-se por demais ao CPC, que é uma lei ainda da mesma década de 70. Seu art. 731 é que afirma que, “se o credor for preterido no seu direito de preferência, o presidente do tribunal, que expediu a ordem, poderá, depois de ouvido o chefe do Ministério Público, ordenar o sequestro da quantia necessária (...)”. A preterição, contudo, não deveria ser a única hipótese autorizativa do sequestro, sob pena de se esvaziar a própria razão de ser do instituto do precatório. Como já dito, requisitar não é solicitar. Aliás, sequer essa burocracia de pedir parecer ao Ministério Público tem mais razão de ser, posto que o Parquet não é órgão defensor da Fazenda Pública, desde a Constituição de 1988. Há, inclusive, súmula do STJ nesse sentido, desde 1997[7].
O problema piorou quando, em setembro de 2000, sobreveio a EC n. 30, que praticamente repetiu a letra do art. 731 do CPC, na nova redação do §2º do art. 100, autorizando o sequestro apenas em caso de quebra de ordem, revitalizando essa jurisprudência do STF. Como a IN n. 11/1997 do TST já estava quebrando essa resistência, permitindo genericamente o sequestro, o advento da EC 30 confrontou com o entendimento que a Justiça do Trabalho vinha tendo sobre a matéria, provocando o ajuizamento de outra ação direta no STF: a ADI 1662/SP, onde se questionavam dispositivos da referida instrução normativa.
Depois da procedência da ação, nenhum tribunal federal mais ousou em efetivar sequestro quando da constatação do mero inadimplemento da obrigação de pagar o precatório, como haveria de ser[8]. Foi um regozijo para os entes públicos. O instituto caiu de vez na galhofa. O Judiciário requisitava, fazendo de conta de que dispunha de meios coercitivos para forçar o pagamento, e a Fazenda Pública fingia-se de desentendida, como se realmente fosse pagar alguma coisa (a velha postura do “João-sem-braço”).
Este quadro de inapetência só veio a melhorar recentemente, com o advento da EC 62/2009, que ampliou as possibilidades de sequestro para, além da quebra de ordem, a não-alocação orçamentária da verba. Hoje, pode-se efetivar o sequestro pelo só vencimento do precatório (como haveria de sê-lo, desde sempre), ao argumento de que, se o ente público não paga porque não tem dinheiro para fazê-lo, subentende-se que não tem porque não o reservou em orçamento. Isto, numa primeira análise.
Em suma: vencido o requisitório, procede-se ao sequestro do valor necessário e suficiente para quitá-lo, como pacificamente aceito no rito da RPV, que já nasceu em derivação ao precatório. Isto, em teoria. Na prática, a questão não é (nem pode ser) rigorosa assim.
A autoridade competente não pode nem deve sequestrar por sequestrar. O endividamento interno da Fazenda Pública é um problema histórico. Há de se saber lidar com ele. Sequestrar integralmente o valor substancial de um determinado precatório vencido, ou todo o valor somado de um conjunto de pequenos precatórios vencidos, ou mesmo todo um conjunto de RPVs vencidas, de uma única vez, poderá trazer sérios problemas aos munícipes ou à população de todo um Estado-membro. A fórmula vencimento-sequestro não pode ser utilizada cegamente em todo caso; seria o ideal, mas contra fatos não há argumentos. Se o ente público realmente não puder pagar o débito, o Judiciário poderá levá-lo à bancarrota com o procedimento do sequestro.
Talvez fosse este o fato que o STF procurou evitar, impondo limites à feitura do procedimento. Nesta senda, porém, esvaziou-se o instituto do precatório. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Basta bom senso, delicadeza, sensibilidade por parte da autoridade judiciária, no dado caso concreto.
Não se pode impedir o sequestro, sob pena de retirar do Judiciário a única arma que tem para forçar ao pagamento (seria o CNDT uma nova arma nesse sentido? Vide tópico 10). Também não se pode tomá-lo ao pé-da-letra, sob pena de “quebrar” o ente público. Neste ponto do estudo, é possível dizer: esqueçamos a questão relativa a se houve ou não, por parte do ente público, prévia inclusão do valor requisitado em orçamento; isto na maioria das vezes é apenas formalidade; um município pobre de qualquer lugar do país que sobreviva apenas do repasse de verbas federais mal tem orçamento para se manter, quanto mais para incluir qualquer despesa que lhe fuja à realidade. E, em uma boa parte desses municípios, observamos que aqueles que detêm longa e insuportável lista de precatórios vencidos devem este fardo a seus ex-gestores, que, durante anos de irresponsabilidade político-administrativa, apadrinharam currais eleitorais nos cargos da prefeitura, vindo este pessoal, mais tarde, a procurar o Judiciário para ajuizar reclamação trabalhista contra o próprio município, de quem receberam dinheiro por vários anos, sem que para isso houvessem tido aprovação em concurso, ou, quiçá, prestado, de fato, o serviço.
Em todo caso, evitemos entrar no mérito sobre se estes reclamantes realmente trabalharam, com dedicação, ou se compareciam apenas ao fim do mês para receber o contracheque. Sequer o Juízo da cognição poderia entrar neste mérito, pois o empregado esteve ali, à disposição do empregador. O relevante são as consequências que gestores aventureiros e despreparados deixam para a edilidade, ao irem embora.
O Judiciário, em sede de precatório, não tem (nem pode ter, é verdade) os olhos voltados para estes fatores. Sua obrigação é forçar o ente público a pagar a dívida. Porém, pode o Judiciário cumprir com sua função, de modo a possibilitar que o devedor possa superar essa fase difícil de suas finanças. E isto é, sim, possível, mormente quando este mesmo ente público hoje se encontra governado por gestores conscientes e responsáveis.
No âmbito do TRT22, utilizamos o bom senso para sopesar todas as peculiaridades em torno do caso concreto. Suponhamos que o fictício Município de Sibéria do Piauí “deva” ao Tribunal R$1.000.000,00 (um milhão de reais) em precatórios vincendos e que, passado o dia 31 de dezembro último, 20% (vinte por cento) deste débito tenha vencido. Ora, se providenciarmos um sequestro inteiriço de R$200.000,00 (duzentos mil reais), unicamente porque o débito está vencido, Sibéria do Piauí irá falir. Seus serviços paralisarão, seus habitantes não receberão salário, o comércio local estagnará por falta de circulação de moeda (e sabemos que, na maioria dos municípios do interior brasileiro, seus habitantes sobrevivem do pequeno serviço público ali existente). Qual a saída para, evitando esta situação, garantir o pagamento do requisitório? Uma coisa é certa: o precatório vencido não pode ficar sem quitação.
A saída encontrada no âmbito do TRT piauiense: sequestrar parceladamente. Se providenciarmos o sequestro mensal de parte do valor vencido, que possa o município pagar – digamos, 10% (dez por cento) deste valor, ou R$20.000,00 (vinte mil reais), no exemplo acima, restarão conciliados todos os fatores-problema antes comentados. Esse sequestro parcelado acaba tomando ares de pagamento espontâneo, cristalizando o que no TRT22 denominamos de repasse, inclusive possibilitando ao ente público que se programe financeiramente. Eventualmente, chega o final do exercício financeiro seguinte sem que os precatórios vencidos anteriormente tenham sido totalmente quitados, aos que se somarão os novos vencidos. Neste ponto, é hora de avaliar se não se poderia atualizar esse repasse. O importante é que todos os precatórios sejam pagos, de uma maneira que o município possa fazê-lo, tendo-se por cautela, sempre, o princípio da continuidade dos serviços públicos. Apenas em 2011, dezenas de municípios, na jurisdição do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região, quitaram suas dívidas dessa forma, ficando livres os cofres públicos de qualquer restrição, não tendo mais precatórios inscritos em ordem cronológica, ou tendo alguns poucos, ainda por vencer ao final dos anos que se seguirão.
Por sua vez, o pagamento é feito aos exequentes na medida em que o repasse é efetivado, seguindo-se a ordem cronológica. Para os exequentes de um mesmo precatório plúrimo, cabe ao Tribunal fixar critério cronológico, que pode ser a ordem alfabética, a idade, o valor a receber, etc. No TRT22, adotamos este último, de modo que os exequentes que tenham menor valor a receber sejam pagos primeiro. Isto possibilita um maior alcance social a curto prazo, pois o repasse favorece um maior número de trabalhadores a cada mês.
Assim, para exemplificar, suponhamos que o débito vencido de Sibéria do Piauí reporte-se a cinco precatórios, totalizando os R$200.000,00 (duzentos mil reais) da seguinte forma:
a) Precatório I - R$5.000,00;
b) Precatório II – R$30.000,00, abrangendo três exequentes: Allisson (R$9.000,00), Alan (R$11.000,00) e Aline (R$10.000,00);
c) Precatório III – R$22.000,00, abrangendo oito exequentes; todos com menos de R$3.000,00 a receber;
d) Precatório IV – R$43.000,00;
e) Precatório V – R$100.000,00, abrangendo dez exequentes.
Assim, o valor do repasse mensal, fixado pelo Tribunal em R$20.000,00, no primeiro mês, quitará o precatório I, e parte do precatório II. Neste, os exequentes serão postos em ordem, conforme o valor a que têm direito (do menor para o maior), recebendo Allisson, integralmente, sua parcela, ainda no primeiro mês. Os R$4.000,00 restantes permanecerão em conta.
No mês subsequente, o Tribunal terá à disposição R$24.000,00, correspondente à soma do repasse mensal com o que sobejou do mês anterior. Serão quitados os créditos de Aline e Alan, nesta ordem. Sobrarão R$3.000,00, portanto. Este dinheiro poderá servir para pagar, ainda neste segundo mês, ao primeiro exequente do precatório III. Repisa-se: o critério de nosso Tribunal para a fixação da ordem dentro de um mesmo requisitório é o da ordem crescente do crédito de cada um; poderia ser outro o critério. O que importa é que um critério deverá existir, independentemente de se adotar a orientação do CNJ de expedir, para cada exequente, um precatório.
O pagamento dos precatórios vencidos do Município de Sibéria do Piauí prosseguirá, nestes parâmetros, até que sejam inteiramente quitados. No exemplo dado, em menos de um ano, com algum inevitável aperto financeiro em suas contas, a edilidade terá quitado seu débito trabalhista, ficando livre de restrições em seus cofres.