7. Violência inútil
Como é perceptível, o capítulo é intitulado sugestivamente e sua conceituação está angulada aos estudos de Hannah Arendt. Analisemos o fragmento que segue:
[...] Nem pensou em dotar cada vagão com um recipiente que servisse como latrina, e este esquecimento se revelou gravíssimo: provocou uma aflição muito pior do que a sede e o frio. Em meu vagão havia muitos anciãos, homens e mulheres: entre outros estavam todos os internos do asilo israelita de Veneza. Para todos, mas especialmente para estes, evacuar em público era angustioso ou impossível: um trauma para o qual nossa civilização não nos prepara, uma ferida profunda infligida à dignidade humana, um atentado obsceno e cheio de presságios; mas também o sinal de uma malignidade deliberada e gratuita. [...]
(Ibidem, p. 96)
Nesse fragmento está devidamente ilustrada outra atitude totalitária que já fora argumentado anteriormente: a perda da dignidade. Temos aqui a exposição dos indivíduos ao ridículo, a invasão de privacidade, a animalização dos seres humanos ao equipará-los a animais irracionais e isso sem nenhuma motivação, apenas por mera vontade, por tripudiação voluntária e inútil.
Nesse contexto, o autor comenta que fora confeccionado pelos próprios passageiros do vagão – se podemos assim considerá-los – um biombo improvisado para não expô-los tanto ao ridículo que prefigura a não aceitação de serem irracionais como podemos notificar no trecho seguinte: “[...] ainda não somos animais, não o seremos enquanto buscarmos resistir. [...]” (Ibidem). A violação da liberdade ocasiona o direito à resistência, fato esse que é expresso por Locke, sendo possível também o diálogo com Touraine, uma vez que da insatisfação estimulada pela perda da liberdade e da sucessiva animalização, nasce o direito à resistência que se torna pró-ativo, ou seja, leva a uma ação, ainda que seja defensiva aprioristicamente.
Na sequência, a partir da leitura do capítulo, é elucidada outra situação que retrata a ideia de banalização do mal exposta por Hannah Arendt:
[...] Eugen Kogon [8] reporta que em Buchenwald deviam comparecer à chamada vespertina inclusive os moribundos e os mortos; estendidos pelo chão, ao invés de permanecer em pé, também deviam ser dispostos em filas de cinco, para facilitar a contagem. [...] (Ibidem, p. 99)
Os mortos devem comparecer à chamada... Parece piegas – desculpe-nos o comentário – e além de comparecerem eram dispostos em filas para facilitar a contagem – como se estivessem fazendo um controle de estoque num depósito qualquer. O fato que permite maior estupefação é a lealdade dos agentes dos Lager (os SS) que de dedicavam ao serviço como que a uma religião, sem contestar e/ ou ponderar quaisquer atitudes como se pode observar:
[...] os SS [9] dos Lager eram antes brutos obtusos do que demônios sutis. Tinham sido educados para a violência: a violência corria em suas veias, era normal, óbvia. Transbordava de seus rostos, de seus gestos, de sua linguagem. Humilhar, fazer o “inimigo” sofrer era seu ofício de cada dia; não raciocinavam sobre isso, não tinham segundas intenções: a intenção era aquela. [...] (Ibidem, p. 105)
Essa questão é asquerosa, repudiante aos olhos de Hannah Arendt que a considera muito pior do que o totalitarismo em si. Não há como justificar o alinhamento dos agentes às atrocidades do regime, de acordo com a visão da autora. Outra questão que é exposta pouco mais adiante ainda no mesmo capítulo é a questão do trabalho que se coaduna com uma das ideias de Alain Touraine: “[...] À diferença da atribulação puramente persecutória, tal como a que acabo de descrever, o trabalho às vezes podia tornar-se uma defesa. [...]” (Ibidem). Trata-se de atitude defensiva por parte dos subordinados, afinal alguma evasão tem de haver. Nesse caso, essa atitude defensiva – como uma válvula de escape – é o que resta para ser feito, já que todos os direitos haviam sido privados.
8. O intelectual em Auschwitz
Mais uma vez, neste capítulo (sexto) nos deparamos com Alain Touraine quando este levanta questões concernentes à atitude (defensiva ou pró-ativa) conforme elucidado no fragmento:
[...] Ele, um culto humanista e crítico alemão, se esforça por virar um escritor francês (jamais o conseguirá) e adere na Bélgica a um movimento da Resistência cujas esperanças políticas efetivas são muito escassas; sua moral, pela qual pagará um preço muito alto em termos materiais e espirituais, já está transformada: pelo menos simbolicamente, consiste em “dar o troco”. (Ibidem, p. 111)
Trata-se, também, como vimos no capítulo anterior, de atitude defensiva por parte do grupo subordinado pelo regime hitleriano que pode passar para uma atitude pró-ativa quando da sua execução. Ao menos, caso seja impossível a execução, o simples fato de se pensar em dar o troco, planejar, questionar, mostrar insatisfação já significa evolução e não aceitação das imposições até então acatadas.
Pouco mais adiante, nos defrontamos novamente com Thomas Hobbes no contexto em que Primo Levi é posto numa construção onde devia cavar uma trincheira sem nunca ter utilizado uma pá. Tenta explicar ao mestre de obras, mas não obtém êxito em fazê-lo, chegando a conjecturar: “[...] outros ainda (entre eles, eu) intuíram confusamente que não havia saída e que a melhor solução seria aprender a manejar a pá e a picareta. [...]” (Ibidem, p. 114). Percebe-se claramente que o indivíduo aceita a dominação para ter sua vida poupada. Ainda que por via férrea, o contrato social – analisado por Hobbes – é novamente efetivado.
Segundo Primo Levi, não só o trabalho, mas a vida nos Lager era muito sacrificante: “[...] À parte o trabalho, também a vida no alojamento era mais penosa para o homem culto. Era uma vida hobbesiana, uma guerra contínua de todos contra todos [...]” (Ibidem, p. 115). Aqui o próprio autor descreve o cenário na visão hobbesiana: uma anarquia – falta de governo – onde todos lutam contra todos.
Em Auschwitz como em todos os outros campos de concentração, o desrespeito e a aniquilação da dignidade e moral humanas eram atitudes ordinárias – no sentido de comuns – executadas a todo instante. Como se fosse um lembrete a cada segundo: vocês são não humanos. Nesse ínterim, o autor (PL) descreve uma ocasião que, através da contemplação do cenário, pode-se apreender o conceito de banalização do mal apresentado por Hannah Arendt:
[...] nu e espremido entre os companheiros nus, com minha ficha pessoal nas mãos, esperava desfilar diante da “comissão” que, com uma passada de olhos, decidiria se eu iria logo para a câmara de gás ou se, ao contrário, ainda estava bastante forte para trabalhar. [...] (Ibidem, p. 124)
Os indivíduos são vistos como mercadorias (coisificação) que servem ou não servem. Em caso positivo, ainda podem ser aproveitadas, caso contrário, devem ser jogadas fora (ou destruídas, se preferir). Os critérios de escolha se resumem em uma mísera olhada que decidirá se presta ou não para continuar vivendo – diria existindo. Nesse caso, a morte era algo costumeiro, não causava espanto ou dor. Era como sentir uma brisa suave, afinal de contas, era menos uma coisa sem muita utilidade e que só ocupa espaço e faz barulho que deixa de existir: “[...] a Morte em Auschwitz era trivial, burocrática e cotidiana. Não se comentava, não tinha o “conforto do pranto”.” (Ibidem, p. 126).
9. Estereótipos
Mais uma vez é retomada por Primo Levi a discussão em torno da liberdade. Dessa discussão podemos estabelecer um diálogo entre Hobbes e Tocqueville no fragmento que segue:
[...] Por que vocês não fugiram? Por que não se rebelaram? Por que não escaparam da captura “antes”?
[...] O primeiro comentário a essas perguntas, bem como sua primeira interpretação, são otimistas. Há países nos quais a liberdade jamais foi conhecida, de vez que a necessidade que naturalmente o homem dela possui vem depois de outras necessidades bem mais urgentes: de resistir ao frio, à fome, às doenças, aos parasitas, às agressões animais e humanas. [...] (Ibidem, p. 128)
A luta pela sobrevivência – em toda sua abrangência – é uma necessidade apriorística e fundamental aos seres vivos – principalmente entre indivíduos que se relacionam num ecossistema – consideração essa defendida por Thomas Hobbes. Essa necessidade (sobrevivência) é muito mais urgente do que a liberdade, pois de que adianta ser livre e, em frações de segundos, ser privado da vida? Antes de qualquer coisa é necessário garantir a vida – que pode ser feito tacitamente abrindo-se mão da liberdade – ou parte dela – para que se possa, então, efetivar o que se pretende: garantia da vida. Essa fala se coaduna a Tocqueville no sentido em que a liberdade é posta em segundo plano. Primeiramente, deve-se pretender a igualdade, igualdade de direitos, depois pensar a liberdade.
Não obstante, e ainda fazendo referência a temática da liberdade, a guisa de ilustração, nos defrontamos com Locke:
[...] Porém, nos países em que as necessidades elementares estão satisfeitas, os jovens de hoje sentem a liberdade como um bem ao qual não se deve renunciar em caso algum: dela não se pode prescindir, é um direito natural e óbvio, e além do mais gratuito, como a saúde ou o ar que se respira. Os tempos e os lugares nos quais esse direito congênito é negado são percebidos como distantes, alheios, estranhos. [...] (Ibidem, p. 128-129).
Nesse caso, estando as necessidades elementares satisfeitas, pode-se pensar em liberdade como um direito natural já não posto em segundo plano. Para Locke a liberdade está incluída no jusnaturalismo. Outra possível análise não muito difícil de ser estabelecida é entre Hannah Arendt e Maquiavel num mesmo fragmento.
Vejamos a citação que segue:
[...] Se fosse capturado vivo, era punido invariavelmente com a morte por enforcamento público, mas sua morte se fazia preceder de um cerimonial que variava caso a caso, sempre de ferocidade inaudita, no qual se desencadeava a crueldade fantasiosa dos SS. [...] (Ibidem, p. 132).
Segundo Maquiavel, era bom que fosse (de tempos em tempos) realizado um enforcamento público – não apenas um a ser enforcado, mas um bando – para que servisse de exemplo aos demais súditos e para que naquele momento o ódio da população fosse extravasado por ocasião do evento. No contexto apresentado por Primo Levi, trata-se de uma atitude maquiaveliana [10] – claro que levada ao extremo. O fragmento que nos propomos analisar, no que tange à Hannah Arendt trata-se de banalização do mal, visto que o ritual de enforcamento era inovado em cada execução.
A violência – em certa medida – para Maquiavel não era algo nocivo, mas sim corretivo, afinal, um governante não pode correr o risco de lhe tomarem o posto. Certas penalidades tinham de ser públicas para que todos presenciassem: “[...] Isso não era “violência inútil”. Era útil: servia muito bem para cortar pela raiz toda veleidade de fuga; [...]” (Ibidem, p. 133).
Novamente nos deparamos com Tocqueville na leitura do fragmento que fala sobre revoltas que se desencadearam ao longo do período hitleriano: “[...] houve insurreições; foram preparadas com inteligência e incrível coragem por minorias resolutas e fisicamente ainda intactas. [...]” (Ibidem, p.135). Além de desmentir o fato de que os prisioneiros dos Lager nunca tentaram se revoltar, o quadro em questão nos reporta a Tocqueville quando explicita que minorias se organizaram a fim de lutar por seus direitos (que é uma atitude pró-ativa (leva a ação)), permitindo-nos dialogar com Touraine nesse preâmbulo.
No fragmento que segue, é claramente visível o discurso de Tocqueville e de Stuart Mill: “[...] A história das rebeliões, isto é, das revoltas de baixo para cima, da “maioria oprimida” contra a “minoria poderosa”, é tão velha quanto a história da humanidade e igualmente variada e trágica. [...]” (Ibidem, p. 135). Stuart Mill defende a ideia de liberdade de reivindicação das massas trabalhadoras que muito bem se enquadram no conceito de maioria oprimida. A questão das rebeliões nos remete a Tocqueville, posto que essas tragam consigo a noção de organização, associativismo que é defendida pelo pensador.
10. Cartas de alemães
Nesse contexto, Primo Levi se comunica – através de cartas – com correspondentes seus que são leitores de outra obra sua qual seja Se questo è un uomo [11]. O autor, preliminarmente, comenta a produção de sua obra e a tradução feita de sua obra para o alemão por Fischer Bücherei. Num de seus comentários, o autor de Os afogados e os sobreviventes elucida algo que se coaduna com Alain Touraine:
[...] Traduzir Se questo è um uomo o entusiasmava: o livro lhe era afim, confirmava, reforçava por contraste seu amor pela liberdade e pela justiça; traduzi-lo era um modo de continuar sua luta temerária e solitária contra seu país desencaminhado. [...] (Ibidem, p. 147).
Trata-se de uma ação pró-ativa, ainda que temerária e solitária, mas não deixa de ser luta, i.e. elemento gerador de ação, não aceitação dos ditames do senso comum, retirada dos antolhos da mediocridade e contemplação do mundo e seu entorno, bem como apreensão da realidade e a sapiência de que ela pode ser mudada, basta iniciativa; basta estar apto a mover-se, doar-se, permitir-se, agir.
Mais uma vez fazemos menção a Hannah Arendt em sua análise sobre o totalitarismo que leva seus adeptos a agirem voluntariamente. Um sadismo exacerbado:
[...] Mas posso recordar-lhe que nada obrigava os industriais alemães a pregar escravos famintos senão o lucro; que ninguém obrigou a empresa Topf [12] (hoje florescente em Wiesbaden) a construir os enormes fornos crematórios múltiplos nos Lager; que talvez se ordenasse que matasse os judeus, mas a incorporação a essa tropa era voluntária. [...] (Ibidem, p. 154).
Torna-se evidente que os adeptos do totalitarismo desempenhavam suas funções com prazer diabólico. Não tinha a necessidade de serem praticadas certas atrocidades, mas em sendo, não eram banidos por isso. Esse fato é o que espanta e enoja – se nos cabe aqui essa designação – Hannah Arendt em seus trabalhos.