5. As multas fiscais e o princípio da capacidade contributiva.
Spisso(24) muito bem compila o princípio da capacidade contributiva nestes termos:
"vemos cómo el principio da capacidad contributiva no se subsume sino que complementa al de no confiscatoriedad, ya que el tributo podrá no absorber una parte substancial de las rentas, no obstante lo cual, si incide sobre los ingresos mínimos que aseguren al indivíduo su substistencia, corresponderá decalificarlo por inexistencia de capacidad económica."
Dessa forma, o princípio da capacidade contributiva impede que a tributação incida sobre os valores mínimos que o contribuinte tem para se manter.
A base fundamental do princípio da capacidade contributiva está bem explicitado por Luciano Amaro(25) no sentido de que "a capacidade contributiva inspira-se na ordem natural das coisas: onde não houver riqueza é inútil instituir imposto, do mesmo modo que em terra seca não adianta abrir poço à busca de água."
Com efeito, o princípio da capacidade tributária visa a que a tributação incida sobre a riqueza existente, evitando-se que as exações recaiam naqueles que não tem possibilidade de contribuir para as despesas do Estado. A justiça das leis tributárias depende da observância deste princípio. Tanto é assim que Roque Antônio Carraza(26) afirma que "há íntima ligação da capacidade contributiva com o princípio da igualdade e como mecanismo da Justiça Fiscal."
Sendo assim, o legislador deve, na edição de leis tributárias observar os limites da retirada da riqueza do contribuinte, sob pena de incorrer em tributação injusta.
Defendemos que o princípio da capacidade contributiva se aplica às leis que prevêem multas fiscais. Para chegarmos a esta conclusão estabelecemos a seguinte situação fática: um contribuinte que trabalhou durante 35 anos comprou um lote em local ermo, fez sua casa e, com o crescimento da cidade teve seu imóvel valorizado. Por outro turno, ele se aposentou e passou a receber um salário-mínimo a título de aposentadoria. Recebendo a guia do IPTU se depara com o valor de 5 salários-mínimos. Está neste caso configurada ofensa ao princípio da capacidade contributiva?
O município fez o lançamento correto, mas o contribuinte não tem recursos para pagar. Essa questão tem implicações sociais relevantes e, a princípio, entendemos que, se comprovada a situação de miserabilidade, o sujeito passivo poderá se valer da violação do princípio da capacidade contributiva para ver reduzido o imposto.
Com certeza, a posição que defendemos pode ser considerada protecionista e não se pode esquecer que resta a opção da venda do bem para pagamento do imposto devido. No entanto, a juízo da autoridade judicial pode ser alterado o valor lançado para se adequar a cobrança à capacidade do contribuinte. Por outro lado, jamais o administrador pode se valer disso para reduzir um tributo, pois sua atividade é vinculada à lei e impessoal, devendo, contudo, as penalidades pecuniárias serem graduadas dentro de limites que evitem a aludida violação, que, diga-se de passagem, é mais comum do que se pensa.
6. As multas fiscais e o princípio da legalidade tributária.
O princípio da legalidade tributária é o mais importante vetor relativo
à tributação. Suas origens remontam à Magna Carta de 1215, em que, por exigência dos Barões, passou-se a requerer a prévia aprovação dos tributos, consubstanciando o princípio no taxation without representation. Dessa forma, pelo menos em tese, somente pagamos os tributos que consentimos. Sendo assim, o princípio da legalidade tem como base o princípio do consentimento(27).
Hugo de Brito Machado(28) ensina que "a lei sendo a manifestação legítima da vontade do povo, por seus representantes nos parlamentos, entende-se que o ser instituído em lei significa ser o tributo consentido. O Povo consente que o Estado invada seu patrimônio para dele retirar os meios indispensáveis à satisfação das necessidades coletivas."
Devemos ainda observar que o princípio da legalidade tem como finalidade assegurar a segurança jurídica nas relações com o Estado, mediante o estabelecimento prévio das condutas a serem observadas de modo que tanto governantes como governados saibam previamente seus deveres e direitos(29).
A finalidade do princípio da legalidade é apresentado de forma definitiva por Hugo de Brito Machado(30) no sentido de que "o princípio da legalidade presta-se para garantir a segurança nas relações do particular (contribuinte) com o Estado (fisco), as quais devem ser inteiramente disciplinadas, em lei, que obriga tanto o sujeito como o sujeito ativo da relação obrigacional tributária."
Mais importante que a teoria de que os tributos são consentidos é a garantia de que todos os elementos da tributação vão estar na lei. Com isso, estudando o alcance do princípio da legalidade tributária, observamos que este princípio, segundo Rodolfo R. Spisso(31), alcança os seguintes elementos da relação tributária, nestes termos:
"Sólo la ley puede:
a) definir el hecho imponible;
b) indicar el contribuinte y, en su caso, el responsable del pago del tributo;
c) determinar la base imponible;
d) fijar la alícuota o el monto del tributo;
e) estabelecer extinciones y reducciones;
f) tipificar las infracciones y estabelecer las respectivas penalidades." (grifamos)
Reginaldo Ferreira Lima(32) salienta que "a lei deverá conter os contornos precisos dos elementos descritores do fato e a decorrente conduta, representada sempre pela relação obrigacional do poder tributário com o contribuinte."
Carraza(33) não deixa dúvidas afirmando que "todos os elementos essenciais devem ser erigidos pela lei, para que se considerem cumpridas as exigências do princípio da legalidade."
Pela análise da doutrina verificamos que as penalidades pecuniárias somente podem ser previstas em lei. Com isso, as multas fiscais moratórias ou por infração não podem ser veiculadas por instrumentos normativos diferentes das leis. Sendo assim, não se pode impor penalidade por decretos ou por outras normas tributárias complementares.
Nos valemos novamente das lições de Sacha Calmon:
"Os deveres tributários (ou, se prefere, as obrigações tributárias) são deveres ex lege e são de duas espécies: a) pagar tributo; b) cumprir deveres instrumentais (emitir notas fiscais, prestar declarações, não transportar mercadorias desacobertadas de documentação fiscal, etc.) A tipicidade do ilícito tributário é encontrada por contraste: a) não pagar o tributo e b) não cumprir os deveres instrumentais expressos. Mas as sanções – quase sempre sanções pecuniárias – devem ser previstas em lei. No Direito brasileiro só a lei – em sentido formal e material – pode estatuir sanções fiscais, segundo preceito de lei complementar à Constituição. Vigora pleno o brocardo latino do nullum tributum nula poena sine lege. A proliferação das sanções fiscais através de decretos é extravagante."
Dessa forma, vigora totalmente o princípio da legalidade em matéria de imposição de sanções fiscais, levando que se de um lado é discutível a possibilidade de instituição de tributos via medida provisória(34), de outro, a exigência de multas fiscais moratórias via medida provisória é impossível, uma vez que somente se pode aplicar pena através de lei em sentido formal e material e ainda pelo que determina o art. 97 do CTN: "somente a lei pode estabelecer: V – a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações definidas."
Cabe destacar, ainda, a existência de alguns impostos que não observam o princípio da legalidade tributária na fixação de alíquotas. São eles: imposto de importação, imposto de exportação, imposto sobre produtos industrializados e imposto sobre operações financeiras. Contudo, mesmo para esses impostos a fixação de multas deve se dar por lei, em vista de que a exceção ao princípio da legalidade se dá única e expressamente para as alíquotas e não para penalidades pecuniárias.
Assim, entendemos que a possibilidade de alterações de alíquotas através de decreto é exceção prevista constitucionalmente e como norma excepcional deve ser interpretada restritivamente, não se permitindo a extensão para ensejar a exigência de multas fiscais pela via de decretos.
7. As multas fiscais e a irretroatividade da lei tributária: a redução das multas no tempo.
As normas que impõem multas fiscais merecem uma análise detida no que diz respeito ao princípio da irretroatividade da lei tributária.
Devemos anotar as considerações de Spisso(35) acerca da importância da irretroatividade da lei para a manutenção do Estado de direito:
"los principios de legalidad – integrado con los de certeza y seguridad jurídica -, de razoabilidad de las leyes, de equidad y de inviolabilidad de la propriedad confluyen en el establecimiento de un valladar inexpugnable a los intentos de retroactividad fiscal. Elle permite que la plenitud del Estado de derecho (...). Sólo así se pude hablar de la real vigencia de un Estado de derecho, en que los derechos individuales y liberdades públicas se hallan efectivamente garantizados."
Com efeito, o art. 150, III, a, da Constituição da República Federativa, reza: "É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cobrar tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado."
Em vista da aludida norma constitucional, a lei tributária não retroage, aplicando-se aos fatos geradores ocorrido após a vigência do comando jurídico. Vale lembrar que Kelsen(36) ensina:
"vigência designamos a existência específica de uma norma e ainda que a vigência da norma pertence à ordem do dever-ser, e não à ordem do ser, deve também distinguir-se a vigência da norma da sua eficácia, isto é, do fato real de ela ser efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta humana conforme à norma se verificar na ordem dos fatos."
Com isso, a lei tributária não pode ser aplicada retroativamente aos eventos ocorridos antes de sua publicação, residindo, neste aspecto, a questão da validade temporal da norma tributária.
Kelsen(37) explica que "relativamente ao domínio da validade temporal de uma norma positiva, devem distinguir-se o período de tempo posterior e o período de tempo anterior ao estabelecimento da norma. Em geral, as normas referem-se apenas a condutas futuras. No entanto, podem referir-se também a condutas passadas."
Nesse viés, as normas tributárias regulam condutas futuras, ou seja, aplicam-se a fatos geradores futuros, havendo, contudo, exceção à aludida regra geral, quando se tratar de norma relativa à imposição de penalidades. Vejamos as disposições do Código Tributário Nacional:
"Art. 105. A legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e pendentes, assim entendidos aqueles cuja ocorrência tenha tido início mas não esteja completa nos termos do art. 116.
Art. 106. A lei aplica-se ao ato ou fato pretérito: I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados; II – tratando-se de ato não definitivamente julgado: a) quando deixe de defini-lo com infração; b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não implicado em fato de pagamento de tributos; c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo de sua prática." (grifamos)
Em linhas gerais, então, a lei tributária tem aplicação retroativa nos casos de penalidades. Com isso, as normas jurídicas, leis que impõem redução nos percentuais de multas fiscais, se aplicam retroativamente. Ou seja, se lei nova reduz o valor da multa de 100% para 50%, deve ser cobrado do contribuinte o menor percentual.
A questão seria fácil se tivesse a mesma sistemática do direito penal, pois se a pena pela prática de um delito é reduzida de 5 anos para 2 anos, aqueles que já tiverem cumprido a pena nos termos da lei nova terão sua liberdade assegurada.
De outro lado, o CTN apresenta a expressão: "tratando-se de ato não definitivamente julgado". Sendo assim, a aplicação retroativa da lei tributária somente é possível antes do julgamento e constituição definitiva do crédito tributário.
As discussões ainda pairam acerca de se o julgamento final seria no âmbito administrativo ou judicial. A posição majoritária, inclusive com o respaldo do Supremo Tribunal Federal, é no sentido de que o trânsito em julgado é no âmbito judicial. A melhor interpretação, na nossa avaliação, é no sentido de que a lei nova se aplica ao crédito tributário que não tiver sido extinto. Ou seja, enquanto houver crédito constituído, inscrito ou não em Dívida Ativa, a lei nova, se reduzir multas fiscais, se aplica ao crédito tributário, independente do trânsito ser administrativo ou judicial.
As leis tributárias relativas à aplicação de multas apresentam ainda uma característica de majoração proporcional no tempo, ou seja, os percentuais das multas fiscais moratórias aumentam gradativamente com o tempo.
Luciano Amaro(38) diz que: "as multas fiscais compensatórias(39) contraprestacionam de modo mais acerbado que os juros, o atraso no recebimento da prestação tributária; geralmente graduadas em função do tempo de atraso."
As leis tributárias que apresentam a aludida progressividade de multas fiscais no tempo são inconstitucionais, uma vez que a Constituição somente admite a proporcionalidade no tempo do caso do IPTU. O art. 156, § 1o, da Constituição Federal reza: "o imposto previsto no inciso I (IPTU) poderá ser progressivo, nos termos, de lei municipal de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade".
O art. 182, § 4o, II, da CF/88 estabelece: "É facultado ao Poder Público Municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: imposto sobre propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo."
Sendo assim, não há base para o aumento progressivo de multas em decorrência do tempo maior ou menor de inadimplemento, salientando-se que os juros de mora se prestam a indenizar e crescem no tempo, não sendo cabível que haja exacerbação da penalidade no tempo, uma vez que tal função já é cumprida pelos referenciados juros de mora.
Por tudo isso, concluímos que a multa moratória fiscal deve ser aplicada em valor único, conforme a maior ou menor possibilidade de sonegação do tributo, e jamais aumentar proporcionalmente no tempo por falta de base constitucional ou dupla penalização pelo não pagamento em dia e o acréscimo com punição pelo tempo de atraso, registrando-se que para esse fim existem os juros moratórios.