Li a matéria publicada no “L’Osservatore Romano”, jornal do Vaticano, do dia 28/04/2012, pág. 2, intitulada “o direito segundo Bento XVI – a razão é de todos”, da lavra do Cardeal Francesco Coccopalmerio, presidente do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, onde o cardeal discorre sobre o discurso do Papa Bento XVI, pronunciado no Bundestag (parlamento alemão) em 22/09/2011. No discurso o Santo Padre enfrenta de modo exclusivo a relação do direito e sociedade. Traçarei abaixo os pontos da fala do Papa que mais me chamaram a atenção e que nos convida também a uma reflexão.
Para o Papa o direito relaciona-se umbilicalmente com a dignidade da pessoa humana, de maneira que o direito é ontologicamente a justiça e o bem, neste sentido o direito não se esgota na lei, reafirmação do Papa que nos faz lembrar o famoso julgamento de Nuremberg, pós segunda guerra mundial, quando os oficiais nazistas alegavam em sua defesa que “cumpriam a lei, cumpriam ordens”, e o tribunal plasmou a máxima de que o direito é maior do que a lei.
O Papa trabalhou com rigor a questão das relações correntes entre lei e direito, e destacou alguns binômios esclarecedores, por exemplo, lei x verdade, justo x lei, coisa justa x direito vigente, verdadeiramente justo x justiça na legislação. O Santo Padre fez questão didática de assinalar que existem duas realidades, “por um lado, há o que é justo, a verdade e, por conseguinte, há o direito; por outro, há a lei. Essas duas realidades são distintas entre si, mesmo se essencialmente relacionadas – esclarece o cardeal Coccopalmiero.
Nas lições do Papa, são duas realidades distintas porque o direito vem antes, enquanto a lei vem depois. Neste diapasão é o justo, ou seja, o direito que se “torna” lei. Noutro dizer, o direito é realidade ontológica preexistente ao legislador, enquanto a lei é realidade intencional, porque criada pelo legislador. Aqui neste particular o Papa se alinha as mais robustas correntes do jus naturalismo, ou direito natural.
O Papa é firme ao frisar que a lei depende do direito, no sentido de que deve conter o direito e deve expressá-lo em suas várias circunstâncias e necessidades, não podendo assim contrariar o direito existente. Aqui também me parece que o Papa está a repudiar com força a idéia da autonomia do direito em relação à realidade mesma, evitando assim os exageros do jus positivismo (direito é a lei).
O Papa também questionou a idéia de que a vontade da maioria deva sempre prevalecer como critério suficiente no fazimento da lei, haja vista, segundo ele, que nas questões fundamentais do direito, onde está em jogo a dignidade da pessoa humana, o princípio majoritário não é suficiente para contemplar o direito preexistente, fato que é comprovado no Brasil, pela atuação do Supremo Tribunal Federal em defesa das minorias: mulheres, índios, homossexuais etc.
Fixada a idéia de que o direito ontológico é uma realidade prévia ao legislador, surge a questão central do discurso do Santo Padre: como é possível conhecer o direito ontológico? Por exemplo, no caso típico dos embriões, eles têm o direito de receber respeito e abstenção de lesões porque são vidas humanas ou podem ser suprimidos? Como pode o legislador conhecer o direito ontológico para dar resposta a esta indagação. Podem as religiões em geral oferecer uma resposta do que seja o direito ontológico? O Papa responde positivamente, ou seja, as religiões podem oferecer uma resposta do que seja o direito ontológico, no caso citado, o reconhecimento de que o embrião é vida humana.
Todavia, o Papa pontua com fino saber que no caso de uma religião declarar a ontologia do direito, é, só pode ser, a fé de um sujeito, ou melhor, a adesão por fé de um sujeito ou grupos de sujeitos, à autoridade da religião que confirma a ontologia. Entretanto, a fé necessariamente não pertence a cada sujeito da comunidade civil, muito menos ao legislador como um todo, portanto, o direito ontológico deve dialogar intensamente com a liberdade de consciência e liberdade religiosa, só assim teremos respostas aceitáveis.
É aqui que o Santo Padre Bento XVI aposta todas as suas fichas na razão humana, para dizer na voz interposta do Cardeal Coccopalmerio que: “A este ponto é decisivo ressaltar que a razão representa o instrumento cognoscitivo adequado não só porque – como é óbvio – capaz de indagar a natureza e deste modo conhecer a ontologia, mas também porque ao contrário da adesão por fé, que é só de alguns, A RAZÃO É DE TODOS”.