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A possibilidade de indenização pela perda de uma chance no direito brasileiro.

Uma perspectiva histórica e comparada para a superação do dano hipotético e o estabelecimento da reparação universal

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18/05/2012 às 07:02
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Capítulo 3

Do “Show do Milhão” À reparação integral dos danos

O Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) veiculou entre 1999 e 2003 um programa de perguntas e respostas intitulado “Show do Milhão”, apresentado pelo empresário Sílvio Santos. Nele o objetivo dos participantes era acertar, dentre quatro alternativas possíveis, qual a opção correta para a indagação formulada pelo apresentador (sobre os mais variados temas, como história, geografia, política, etc.), acumulando assim valores em dinheiro a cada resposta correta[235], até alcançar o prêmio máximo de um milhão de reais em barras de ouro (daí o título do espetáculo). E, caso o concorrente não se julgasse apto a responder ao questionamento realizado, poderia optar por parar e manter o dinheiro já conquistado ou arriscar-se a responder mesmo sem ter certeza e correr o risco de terminar recebendo apenas um valor simbólico como prêmio. Logicamente o grande clímax do programa era justamente a última pergunta (a “Pergunta do Milhão”), que, diga-se de passagem, no Brasil (já que programas semelhantes são também veiculados em outros países), apenas uma única pessoa conseguiu acertar em todo o tempo de exibição do jogo[236].

Entendido o funcionamento do programa, é imperioso analisar a situação de fato de Ana Lúcia Matos (autora de toda contenda jurídica que foi o caso Show do Milhão), que no dia 15 de Junho de 2000, foi sorteada como participante. Ela, baiana, dona de casa e dotada de uma notória sapiência, conseguiu chegar até a última pergunta do programa (após acertar corretamente as 25 perguntas anteriores  e acumulando até então meio milhão de reais).

A pergunta feita a ela naquela noite e exibida em todo o território nacional foi formulada nos seguintes termos:

A Constituição reconhece direitos aos índios de quanto do território brasileiro?

Resposta

1 - 22%

2 - 02%

3 - 04%

4 - 10% (resposta correta, segundo a produção do programa)[237]

Acontece que a Constituição da República Federativa Brasileira de 1988 não estabelece porcentagem de terra aos índios, pois tudo o que se limita a fazer é reconhecer a estes “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”[238]. Desse modo era impossível responder corretamente a pergunta nos moldes em que foi formulada[239], pois numa leitura apressada (o que é o caso dos participantes do programa, já que estes têm um tempo exíguo para apresentar sua resposta) não se consegue nem mesmo entender o seu real sentido, uma vez que as expressões território (com toda a sua conotação política e jurídica[240]) e área não são necessariamente sinônimas. 

A participante optou assim, em conformidade com as regras do jogo, por não responder a pergunta formulada e, por não ter se conformado com o resultado (por óbvio, uma vez que foi privada da oportunidade de receber um milhão de reais), moveu ação de reparação, perante a 1ª Vara Especializada de Defesa do Consumidor de Salvador, contra BF Utilidades Domésticas LTDA, empresa pertencente ao grupo econômico Silvio Santos, alegando em sua petição inicial que havia deixado de responder a última pergunta, porque esta havia sido elaborada de má-fé pelos coordenadores do programa para ser “irrespondível”.

Seu pedido se resumiu, em síntese, ao ressarcimento das perdas e dos danos sofridos, quais sejam: o valor correspondente ao prêmio máximo, que não fora recebido, além de danos morais pela frustração do sonho acalentado por longo tempo.

O juiz de primeiro grau, reconhecendo que a pergunta não tinha resposta, julgou procedentes os pedidos da ação, determinando o pagamento do valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), com acréscimo de juros legais, contados do ato lesivo[241].

Na sequência a ré interpôs recurso ao Tribunal de Justiça da Bahia visando a reforma da decisão, não obtendo êxito, uma vez que a sentença foi confirmada, sob a relatoria da Desembargadora Ruth Pondé Luz, pelos desembargadores da Boa Terra[242], nos seguintes termos:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. PLEITO DE REFORMA DA SENTENÇA SOB ARGUMENTO DE COMPORTAR RESPOSTA A ÚLTIMA PERGUNTA FORMULADA À APELADA NO PROGRAMA DE TELEVISÃO DO SBT - "SHOW DO MILHÃO".ARGÜIÇÃO DE POSSIBILIDADE VERSUS PROBABILIDADE DO ACERTO DA QUESTÃO. ALEGAÇÃO DE IMPOSSIBILIDADE DE CONDENAÇÃO DA APELANTE NO PAGAMENTO DO VALOR COMPLEMENTAR AO PRÊMIO (R$ 500.000,00), À TÍTULO DE LUCROS CESSANTES, COM BASE NO "CRITÉRIO DA PROBABILIDADE" DO ACERTO.

ARGÜIÇÃO DE CARÊNCIA DE PRÊMIO PORQUE NÃO VERIFICADA A CONDIÇÃO SUSPENSIVA COM ARRIMO NO ART. 118, DO CÓDIGO CIVIL⁄1916. MATÉRIA NÃO VENTILADA NO PRIMEIRO GRAU. NÃO CONHECIMENTO.

CONSTATADA A IMPROPRIEDADE DA PERGUNTA EM RAZÃO DE APONTAR COMO FONTE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INEXISTÊNCIA DE CONSIGNAÇÃO NA CARTA MAGNA DE PERCENTUAL RELATIVO A DIREITO DOS ÍNDIOS SOBRE O TERRITÓRIO BRASILEIRO.

EVIDENCIADA A MÁ FÉ DA APELANTE. CONDENAÇÃO EM REPARAÇÃO DE DANOS COM BASE NO INADIMPLEMENTO DA OBRIGAÇÃO[243]. IMPROVIMENTO DO RECURSO.[244]

Permanecendo insatisfeita, a ré recorreu ao Superior Tribunal de Justiça, mediante a interposição do Recurso Especial 788.459/BA, que foi julgado pela Quarta Turma. 

No recurso alegava-se que não se poderia condenar a empresa ao pagamento do prêmio máximo, pois a participante conscientemente havia optado por não responder a pergunta. E caso o tivesse feito, jamais se poderia saber se, apesar das habilidades demonstradas até aquele ponto do programa, teria acertado a resposta (na hipótese de a pergunta final ser outra, com uma resposta possível). 

Na pior das hipóteses, argumentou-se no recurso, ela deveria ser indenizada pelo percentual de acerto que tinha, ou seja, uma chance em quatro, o que dá 25%. Assim, a indenização deveria ser reduzida para R$ 125.000,00[245]

E esse foi, de fato, o entendimento seguido pela turma, com a condenação da ré ao pagamento de R$125.000,00 (cento e vinte cinco mil reais), como se extrai do voto do relator Ministro Fernando Gonçalves, cuja ementa se transcreve na seqüência:

RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO. IMPROPRIEDADE DE PERGUNTA FORMULADA EM PROGRAMA DE TELEVISÃO. PERDA DA OPORTUNIDADE.

1. O questionamento, em programa de perguntas e respostas, pela televisão, sem viabilidade lógica, uma vez que a Constituição Federal não indica percentual relativo às terras reservadas aos índios, acarreta, como decidido pelas instâncias ordinárias, a impossibilidade da prestação por culpa do devedor, impondo o dever de ressarcir o participante pelo que razoavelmente haja deixado de lucrar, pela perda da oportunidade.

2. Recurso conhecido e, em parte, provido.[246]

Há que se dizer, ainda, que em seu voto o Ministro consignou que “resta, em conseqüência, evidente a perda de oportunidade pela recorrida” e que “a quantia sugerida pela recorrente (R$125.000,00 cento e vinte cinco mil reais) – equivalente a um quarto do valor em comento, por ser uma “probabilidade matemática” de acerto de uma questão de múltipla escolha com quatro itens” refletia as reais possibilidades de êxito da participante.[247]

Assim, pela primeira vez no Brasil, um Tribunal Superior se posicionou de maneira positiva sobre a possibilidade de indenização pela perda de uma chance (ou “oportunidade”, como asseverou o voto), abrindo as portas do Judiciário para uma maior discussão e aprofundamento sobre o tema. Cumpre ressaltar que apesar de este ter sido o único caso, até o presente momento, a chegar ao Superior Tribunal de Justiça desde o final da década de 80 os Tribunais de Justiça e mesmo os Juízes de Primeiro Grau já tiveram a oportunidade de julgar algumas centenas de casos que envolviam, de uma forma ou de outra, perda de chances[248].

Como salientado anteriormente, esta não foi à primeira decisão a tratar especificamente do assunto em pauta, mas sim a pioneira a ser apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça. Os fundamentos nela traçados certamente servirão para balizar a forma como o Poder Judiciário julgará, futuramente, casos análogos, por isso é de curial importância analisá-los de maneira aprofundada neste trabalho, seja por ser um forte argumento de autoridade a ser invocado nos casos concretos vindouros, seja pela valiosa lição de renomados civilistas que compõem a fundamentação do acórdão[249],.

Nesse diapasão, Lopes, citado no acórdão, aduz que

Tem-se entendido pela admissibilidade do ressarcimento em tais casos, quando a possibilidade de obter lucro ou evitar prejuízo era muito fundada, isto é, quando mais do que possibilidade havia uma probabilidade suficiente, é de se admitir que o responsável indenize essa frustração. Tal indenização, porém, se refere à própria chance, que o juiz apreciará in concreto, e não ao lucro ou perda que dela era objeto, uma vez que o que falhou foi a chance, cuja natureza é sempre problemática na sua realização[250].

Dessa citação denota-se a preocupação do julgador em destacar os fundamentos da reparação civil no Brasil, especialmente no que a tange a perda de uma chance. Importa-se para o ordenamento jurídico brasileiro, ainda que não dito expressamente, a lição das doutrinas italiana e francesa, para as quais a chance é vista como uma perda em si, tendo um valor próprio, aliado a necessidade de ela ser “muito fundada”. Vem o magistrado já impondo necessárias restrições, fugindo do sinuoso limbo das reparações percentuais, em que qualquer chance, por mais ínfima que fosse, deveria ser reparada em razão da proporção da possibilidade de vir a ocorrer. Esse panorama, tão bem traçado por King Jr[251], deve ser evitado a todo custo pelos juízes, pois se trata de um aviltamento, uma distorção, das razões pelas quais a teoria foi criada.

Apesar do esmero em seguir os conselhos do Mestre de Yale, é preciso ressaltar que o voto do Ministro possui algumas lacunas conceituais, uma vez que apesar de deixar bastante claro que as reparações pela perda de uma chance são possíveis no direito brasileiro sem a necessidade de ser expressamente prevista em lege ferenda, não aborda de maneira clara de que forma estas se darão: se como dano emergente (como prega a doutrina estrangeira), dano moral, lucro cessante ou como nova forma de dano, ainda inominada[252].

Estas foram às possibilidades já apontadas pela doutrina nacional (e ventiladas no acórdão) e agora merecem um maior destaque, para se entender suas diferenças, semelhanças e especialmente os motivos pelos quais este ou aquele modo deveria ser adotado de maneira uniforme (já que, por uma questão de segurança jurídica, em algum momento deverá ser escolhido, pelos magistrados, uma das formas mencionadas).

3.1. A CHANCE COMO PARTE INTEGRANTE DOS LUCROS CESSANTES

Partindo da lição de Briz, citado no texto de uma Sentença proferida pelo STJ[253], pode-se delinear a tênue, mas existente, diferença entre a perda de uma chance e os lucros cessantes e ela se resume a semântica de duas palavras: possibilidade versus probabilidade.

Consta no Dicionário Michaelis que probabilidade se assemelha a verossimilhança, ou seja, a possibilidade mais acentuada da realização de um acontecimento entre inúmeros possíveis, baseada, subjetivamente, na opinião do observador e, objetivamente, na relação entre o número de casos favoráveis e o total das realizações. [possuindo a qualidade então] de ser provável[254].

Provável é tudo aquilo que pode ser objeto de prova, tentando se transcender o estado da dúvida, no entendimento de Malatesta, citado por Deda[255]. Assim, para se obter uma reparação de lucros cessantes, "é necessária a prova da probabilidade objetiva da percepção de lucros, de forma concreta e não de simples possibilidade de sua realização”[256]. A jurisprudência nacional já pacificou há muito tal entendimento acerca dos lucros cessantes indenizáveis: lucro indenizado = lucro provado.

Por outro lado, a chance se encontra mais na seara da possibilidade, que segundo o Dicionário Michaelis é tudo aquilo “que não contradiz as leis da natureza”[257]. Partindo-se da definição puramente gramatical se denota o vão existente entre os termos, uma vez que o provável é algo muito mais concreto do que o possível.

Invoca-se novamente a doutrina de Calamandrei, trazida por Watanabe, para esclarecer que “possível é o que pode ser verdadeiro, verossímil é o que tem aparência de ser verdadeiro e provável é o que se pode provar como verdadeiro”[258] e que tais termos possuem uma escala crescente de aproximação a certeza (ou como coloca o autor, a verdade).

Em termos menos lingüísticos e mais jurídicos, pode-se pensar no exemplo do dia chuvoso em Bela Vista do Toldo (Santa Catarina), quando um proeminente empresário do ramo náutico apanha o único táxi da cidade para levá-lo até o município vizinho, onde está acontecendo uma tomada de preços para a compra de uma embarcação. No trajeto, desgraçadamente, o veículo é acachapado por uma vaca que corria desabalada por um cruzamento, resultando em sérios danos no capô do carro, na paralisação das atividades do taxista por cinco dias e na impossibilidade de o empresário concorrer no certame.

O Código Civil Brasileiro de 2002 possui dispositivo perfeitamente amoldável ao caso concreto, prevendo que “o dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior”[259]. Não presentes os casos de excludentes da responsabilidade, uma vez que o carro trafegava em velocidade compatível pela rodovia e o bovino apenas escapou de seu cercado devido a falta de manutenção deste, o nexo de causalidade está firmado. O fazendeiro dono do animal é um senhor de 52 anos de idade, possibilitando o estabelecimento do nexo de imputação.

Os danos, por sua vez, se desdobram em três diferentes vertentes: danos emergentes em relação ao conserto da lataria do carro no montante de R$2.000,00 (dois mil reais); lucros cessantes pelos cinco dias não trabalhados do taxista no importe de R$900,00 (novecentos reais); perda de uma chance (ainda inominada para fins de discussão neste tópico) no valor de R$80.000,00 (oitenta mil reais).

Os valores obtidos acerca da reparação foram calculados da seguinte forma: os R$2.000,00 (dois mil reais) do amassado do capô com o valor médio de três orçamentos apresentados pelo taxista (fato documentalmente provado). Novecentos reais a títulos de lucros cessantes se originaram da probabilidade (ou da possibilidade mais acentuada) de renda que teria o taxista se dispusesse de seu carro para trabalhar nos dias subseqüentes ao acidente, pois, segundo depósitos bancários semanais que ele realizava, seu rendimento médio diário era de aproximadamente R$180,00 (cento e oitenta reais).

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Já a expressiva cifra de R$80.000,00[260] (oitenta mil reais), adveio da possibilidade (ou seja, da chance, do fato que não contraria as leis da natureza e a própria lógica humana) séria e real que o empresário possuía de vencer a tomada de preço realizada na outra cidade, levando-se em conta que sua documentação para a licitação estava em ordem e sua oferta encontrava-se compatível com as apresentadas pelos outros 9 concorrentes que puderam comparecer[261].

Percebe-se que os julgados que homogeneízam as reparações de lucros cessantes e perda de chance em um mesmo “bloco” inclinam-se ao entendimento que a chance era tão plausível que chega mesmo a escapar da seara da possibilidade para adentrar na da probabilidade.

Bocchiola, citado por Marques, discordando veementemente dessa linha de raciocínio, entende que

de um ponto de vista teórico, as duas fattispecies são bastante individualizáveis em suas respectivas características. De fato, se deve determinar como lucro cessante somente o caso em que se verifica a perda de uma possibilidade favorável, que pertenceria a um determinado sujeito com uma probabilidade que representa a certeza; nas hipóteses de perda de uma chance, por outro lado, o acontecimento do resultado útil é por definição indemonstrável[262].

Partilha (e complementa) desse entendimento o Desembargador mineiro Fernando Caldeira Brant (ao enfrentar a questão da perda da chance de se realizar um contrato de seguro), ao lecionar que

Demais, o próprio procedimento probatório para que seja satisfeita a pretensão num dos eventos é distinto do outro. Nos lucros cessantes o suposto prejudicado não deverá fazer prova do lucro em si considerado, mas sim dos elementos necessários à sua verificação. Em contrapartida tratando-se da perda de uma chance o resultado nutrido pela parte lesada não é passível de demonstração, permanecendo, portanto, sempre no campo do desconhecido.

Por isso a perda de uma chance jamais poderá ser indenizada como se tratasse de lucros cessantes[263], ou seja, a grosso modo, aquilo que a parte deixou de ganhar com a realização do evento tal qual nutrido por suas expectativas[264].

Não foi outro o entendimento da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça no caso do Show do Milhão, pois

não há como concluir, mesmo na esfera da probabilidade, que o normal andamento dos fatos conduziria ao acerto da questão. Falta, assim, pressuposto essencial à condenação da recorrente no pagamento da integralidade do valor que ganharia a recorrida caso obtivesse êxito na pergunta final, qual seja, a certeza - ou a probabilidade objetiva - do acréscimo patrimonial apto a qualificar o lucro cessante.[265]

Pelos acórdãos e pareceres supra colacionados tudo leva a crer que não deverá ser este o caminho a ser seguido pelos magistrados quando da indenização pela perda de uma chance, pois se ressaltam muito mais as incompatibilidades teóricas deste instituto com a perda de uma chance do que em quaisquer dos outros casos.

3.2. A CHANCE COMO SUBESPÉCIE DE DANOS EXPATRIMONIAIS

Silva, um dos maiores estudiosos da teoria da perda de uma chance no País, contrariando os preceitos firmados no acórdão do Recurso Especial 788.459/BA, pareceu encontrar nos acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul uma certa tendência a homogeneização que não segue nenhuma das vertentes analisadas pelo Superior Tribunal de Justiça.

Para o autor, talvez

pela dificuldade de quantificar certos danos patrimoniais representados pela perda de uma chance, [...] a jurisprudência brasileira esteja criando uma corrente que tende a considerá-los como uma subespécie de danos extrapatrimoniais, posto que estes estão sujeitos a um subjetivismo mais acentuado na sua quantificação. [...] [Isso ocorre] Principalmente em casos de responsabilidade civil de advogados, ou seja, quando a vantagem esperada pelo cliente se constitui em benefício primordialmente patrimonial, a jurisprudência opta por indenizar o dano moral decorrente da “frustração da expectativa de ver reexaminada a decisão que julgou improcedente [por exemplo] o mandado de segurança impetrado contra a Universidade[266].

Seguindo-se essa linha de pensamento poder-se-ia concluir que os magistrados ao vislumbrarem uma violação de um bem extrapatrimonial automaticamente associariam essa violação ao instituto do dano moral. Todavia, esse não parece ser o melhor caminho, uma vez que 

os dois institutos derivam de fontes distintas. Enquanto o dano moral decorre da violação a um bem integrante da personalidade, na perda da chance, o dano é em decorrência da violação a interesse sério e com grandes probabilidades de gerar um ganho futuro, seja patrimonial ou extrapatrimonial[267].

Nessa esteira, apesar de mais coerente do que as reparações concedidas a título de lucros cessantes e da "mobilização" dos magistrados gaúchos, muitas vozes ainda se levantam contra essa vertente.

3.3. A CHANCE COMO TERCEIRO GÊNERO DE INDENIZAÇÃO

Esse debate acerca de como caracterizar a reparação advinda da perda de uma chance ganhou notória visibilidade com uma pequena nota publicada no site do Superior Tribunal de Justiça, em Novembro de 2010, intitulada “Perda da chance: uma forma de indenizar uma provável vantagem frustrada”[268]. Por melhor que fossem as intenções do artigo em explicar o que é a perda de uma chance e como ela tem evoluído no pensamento jurídico brasileiro, acabou contribuindo ainda mais para as incertezas já existentes  e alçando “o juiz aposentado do Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo Sílvio de Salvo Venosa”[269] ao posto de ponta-de-lança dos defensores da perda de uma chance como terceiro gênero de indenização.

 Da notícia publicada reproduz-se que

[segundo Venosa] há forte corrente doutrinária que coloca a perda da chance como um terceiro gênero de indenização, ao lado dos lucros cessantes e dos danos emergentes, pois o fenômeno não se amolda nem a um nem a outro segmento.

Venosa, por sua vez, sedimenta sua afirmação na doutrina do argentino Carlos A. Ghersi, que em seu próprio país é duramente criticado por outros pensadores. Por todos traz-se a lição de Vivas, para quem

Ghersi afirmou, a nosso juízo de forma errônea, que partindo da idéia de dano patrimonial, em oposição ao dano extrapatrimonial, é necessário fazer três distinções: dano emergente, lucro cessante e chance[270].

Assim, para Guersi, os três institutos se caracterizariam da seguinte forma: o dano emergente afetando um patrimônio já anteriormente consolidado pelo lesado; o lucro cessante lesaria um patrimônio ainda não definitivamente consolidado, mas que seria “inquestionável e valioso”; já a chance teria apenas uma remota possibilidade de incorporação ao patrimônio da pessoa molestada pelo evento danoso, não podendo ser aprioristicamente valorado[271].

Como se percebe, tal distinção muito pouco difere da proposta por Bocchiola no ponto 3.1 deste capítulo, ou mesmo pelos demais doutrinadores brasileiros ao meditarem sobre a perda de uma chance[272]. Assim sendo a corrente adepta da chance como terceiro e novo gênero de indenização não contribui em nada na tão almejada unidade conceitual da ciência jurídica, pois apenas vem para restatuir o óbvio: a chance, prima facie, não se molda de maneira plena a nenhuma outra categoria de danos rigidamente estabelecida pelos doutrinadores ao longo dos anos, pelo que, perfeitamente, pode ser mais uma possibilidade a ser inserida dentre as já consagradas Busca-se, desse modo, manter a precisão terminológica e conceitual. [Pois] O caos conspira contra o rigor cientifico que serve de base à estruturação do conhecimento. Nas ciências jurídicas imprescindível  se torna uma estruturação sistemática sem imprecisão de conceitos. Não podemos olvidar que estamos então no campo da dialética[273]/[274].

Nesse confronto de entendimentos para se chegar a novos patamares, seguindo a lógica dialética de Platão e não de Schopenhauer[275], todos os pensadores precisam se basear nas mesmas definições básicas, do contrário, como bem afirmou Mazzomo, estaremos diante do mais puro caos. Desse modo é mais vantajoso para a aceitação e pacificação terminológica em relação a perda de uma chance adaptá-la a outros conceitos já consolidados e aceitos pelos pensadores brasileiros (como bem faz Savi na sequência) do que tentar criar uma nova vertente de dano[276] pois

para o presente estudo, a premissa é que a chance é um prejuízo distinto do resultado esperado, constituindo por si só um dano certo e portanto, específico e hábil a representar um prejuízo, mas que não se caracteriza como uma terceira espécie de dano, perante o dano material e moral, pois dependente do resultado final[277].

3.4. A CHANCE COMO DANO EMERGENTE

Todos os processos de aceitamento da teoria da perda de uma chance nos ordenamentos jurídicos estrangeiros passaram, em algum momento, em maior ou menor medida, pela tentativa de desabstração da chance. Ou seja, pela transformação de uma chance etérea e puramente hipotética em algo concreto e mensurável no presente.  Assim foi na Itália de Calamandrei[278], no jarro de feijão de King Jr[279] e também com diversos autores tupiniquins como Alvim, citado por Silva[280], como ficou amplamente demonstrado no capítulo 2 deste trabalho.

A fim de inovar no que já foi explicitado traz-se agora o entendimento de Savi, que poderia muito bem ter sido utilizado pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça para pavimentar de uma vez por todas o caminho da natureza jurídica das chances no País. Para ele a chance deve ser inserida no conceito de dano emergente, pois assim eliminar-se-ia

o problema da certeza do dano, tendo em vista que, ao contrário de se pretender indenizar o prejuízo decorrente da perda do resultado útil esperado (a vitória na ação judicial, por exemplo), indeniza-se a perda da chance de obter o resultado útil esperado (a possibilidade de ver o recurso examinado por outro órgão de jurisdição capaz de reformar a decisão prejudicial). Ou seja, não estamos diante de uma hipótese de lucros cessantes em razão da impedida futura vitória, mas de um dano emergente em razão da atual possibilidade de vitória que restou frustrada. Assim, não se concede a indenização pela vantagem perdida, mas sim pela perda da possibilidade de conseguir esta vantagem. Isto é, faz-se uma distinção entre o resultado perdido e a chance de consegui-lo. Ao assim proceder, a indenização da perda de uma chance não se afasta da regra de certeza do dano, tendo em vista que a possibilidade perdida, em si considerada, era efetivamente existente: perdida a chance, o dano é, portanto, certo[281].

Sendo certo o dano, certo, também, será a indenização[282], sem as necessidades de maiores digressões processuais (partindo, logicamente, da premissa de estarem presentes todos os outros pressupostos da reparação cível, já exaustivamente analisados no decorrer do primeiro capítulo).

A guisa de conclusão das diferentes maneiras que se poderia reparar um dano advindo de uma chance que se perdeu, podem-se trazer a lume as palavras de Schreiber, para quem

o certo é que, hoje, juristas italianos e brasileiros, alemães e franceses, americanos e ingleses, juristas, enfim, de ordenamentos típicos e atípicos defrontam-se com o mesmo problema fundamental: o de identificar critérios e métodos aptos a promover, sobretudo em matéria de dano não patrimonial, a seleção dos interesses merecedores de tutela[283],sendo as chances apenas mais um exemplo destes, qualquer que seja seu nomen juris. Pois um cidadão ao bater as portas da Justiça não tem interesse em saber se a reparação de seu filho que prestava concurso quando a janela da sala de aula estilhaçou-se e o impossibilitou de terminar a prova[284] se dará na forma de um dano patrimonial ou extra-patrimonial, emergente ou cessante, nomeado ou inominado[285], até porque, na verdade, pouco importa a terminologia utilizada, e sim a reparação do dano efetivamente sofrido. O que lhe interessa é o retorno, o mais rápido e fielmente possível, ao estado em que sua vida se encontrava antes do evento danoso. Se apenas isto for possível, o Judiciário e todo o secular instituto da responsabilidade civil terão cumprido sua função social.

3.5. A CHANCE NOS TRIBUNAIS ESTADUAIS

Analisado de maneira extensiva a forma como o Superior Tribunal de Justiça lidou com o primeiro caso emblemático acerca da teoria da perda de uma chance, necessário se faz verificar de que modo essa decisão se propagou (ou não) pelos tribunais de segunda instância. Teve ela um impacto de vulto? Será que os diversos desembargadores brasileiros seguiram as premissas fixadas pelo tribunal ad quem, acatando a aplicação da teoria em todo o território nacional, ou muito pelo contrário, estariam eles rechaçando a sua aplicação, sem preocupação em uma eventual uniformização de jurisprudência?

Com o desiderato de responder a essas perguntas, mas sem qualquer pretensão de estabelecer uma verdade, e mapear o desenvolvimento da teoria nos diversos estados brasileiros durante os dias 19 a 26 de março de 2011 foi realizada uma pesquisa nos sites de todos os 27 Tribunais de Justiça do Brasil, na parte de “Consulta Jurisprudencial”. Os termos de pesquisa empregados foram as palavras “perda” e “chance”, a partir do ano de 2005[286], de modo que aparecessem no mesmo documento.

Dos resultados obtidos, as primeiras quarenta ocorrências encontradas foram devidamente checadas, com a leitura da íntegra das ementas para averiguar se de fato correspondiam a um julgado que versasse sobre a teoria da perda de uma chance. Buscou-se com esses dados encontrar o número de acórdãos favoráveis e contrários a aplicação desta teoria (ou seja, decisões em que a teoria da perda de uma chance era utilizada como fundamentação do livre convencimento do magistrado), bem como em quantos acórdãos se fazia, em qualquer aspecto, menção a ela (mas essa não era utilizada como “causa” de decidir).

Dividiu-se dessa forma o território brasileiro em cinco macro-regiões (Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste e Norte) mais o Superior Tribunal de Justiça (pois após o caso Show do Milhão mais uma dezena de casos chegaram a corte), para facilitar a elaboração do seguinte quadro:

Regiões

Estados

Menções a Teoria

Decisões Favoráveis

Decisões Contrarias

Sul

Rio Grande do Sul

3

40

0

Santa Catarina

2

8

0

Paraná

5

33

0

Sudeste

São Paulo

0

40

0

Rio de Janeiro

0

40

0

Minas Gerais

0

26

0

Espírito Santo

1

1

0

Centro-Oeste

Mato Grosso

1

2

0

Mato Grosso do Sul

0

27

0

Goiás

0

1

0

Distrito Federal

2

26

1

Nordeste

Maranhão

0

1

0

Piauí

0

0

0

Bahia

0

0

0

Ceara

0

0

0

Rio Grande do Norte

0

4

0

Paraíba

0

0

0

Pernambuco

0

3

0

Alagoas

0

0

0

Sergipe

3

8

0

Norte

Rondônia

1

6

0

Acre

0

0

0

Tocantins

0

0

0

Para

0

2

0

Amapá

0

1

0

Amazonas

0

0

0

Roraima

0

0

0

 

STJ

0

10

0

Brasil

 

18

259

1

Quadro nº 05 – A chance nos Tribunais de Justiça brasileiros

Fonte: pesquisa realizada no site de cada um dos tribunais de justiça que compõe a federação brasileira.

3.5.1. Conclusões a partir da pesquisa realizada

Analisando-se a tabela obtida, pode-se concluir que dos 27 estados da federação 18 deles (66,6%) já tiveram a oportunidade de julgar casos envolvendo a teoria da perda de uma chance, sendo esta mais amplamente aceita no Rio Grande do Sul, estado reconhecido, em outras oportunidades, pelo seu pioneirismo (lembrando-se que foi lá que François Chabas proferiu sua célebre palestra sobre o tema), onde existem quase 500 casos envolvendo, em maior ou menor grau, sua discussão.

Pode-se concluir, também, que dos estados que já puderam produzir julgados sobre o tema, todos se mostram favoráveis a sua aplicação no direito brasileiro. Tal dado coloca o Brasil em uma situação inusitada, pois na doutrina e mesmo jurisprudência estrangeira, como amplamente demonstrado nesse estudo, existem muitas vozes contrárias a sua aplicação no plano prático.

É importante salientar que, a princípio, não se pode afirmar que 100% dos estados que já se pronunciaram sobre a aplicabilidade de teoria da perda de uma chance o fizeram de maneira favorável, pois há uma única decisão, no Distrito Federal (entidade sempre sui generis no direito pátrio), que parece ser contrária à sua aplicação. Trata-se de decisão prolatada no “Recurso Inominado” nº 20070710103898 (uma decisão do Juizado Especial Cível local, portanto), pela Juiza Carmen Bittencourt.

Do inteiro teor do acórdão se pode extrair que:

1. A responsabilidade do advogado no exercício da profissão é subjetiva, sendo necessário, para gerar o dever de reparação, perquirir se houve culpa no exercício da profissão, conforme determina o art. 14, § 4º da Lei 8.906/96.

2. Pretensão fulcrada na "perda de uma chance" de êxito em uma demanda trabalhista, onde não se poderia responsabilizar o advogado por um resultado que não ocorreu e portanto por uma dano hipotético não verificado ou demonstrado e sem concreção.3. Danos materiais que não restaram comprovados por não ser possível afirmar que o pedido trabalhista pretendido pelo autor seria julgado procedente.[287]

Desse modo, não se pode precisar se a magistrada apenas rechaçou a aplicação da teoria no caso concreto, porque o advogado não havia nem mesmo ingressado com a ação e por isso o dano proveniente da perda da chance seria por demais hipotético para ser objeto de indenização (em que pese a semelhança existente entre a não propositura de uma ação, com grandes chances de procedência, e a não interposição de um recurso que poderia reverter um julgado desfavorável[288]); ou se a eminente magistrada realmente entende que toda ação lastreada na perda de uma chance, mesmo em tese, esbarraria no problema do dano hipotético[289].

Independentemente dos motivos que a levaram a tomar tal posicionamento este se mostrou rapidamente isolado, pois outro acórdão, proferido pouco mais de um mês após o julgado em comento, já se mostrou favorável à aplicação da teoria. Como se denotará do trecho transcrito na sequência, os casos possuíam contornos gerais muito assemelhados, sendo a diferença de maior vulto o fato de o primeiro tratar-se de petição inicial não proposta e o segundo do esgotamento do prazo para apresentar contestação:

A responsabilidade civil do advogado para com a sua clientela é contratual e de meio, pois não há como garantir o sucesso da demanda. Sendo assim, o advogado só responderá pelos prejuízos do insucesso, quando este ocorrer exclusivamente por causa da sua inabilidade profissional. In casu, o defeito do serviço restou lastreado no erro grosseiro do advogado de não ofertar contestação ao pedido de indenização formulado em desfavor do constituinte do mandato que lhe fora outorgado, o que subtraiu deste a chance de se ver desobrigado do pagamento indenizatório ou, eventualmente, de obter a redução do quantum devido.[290]

Como já aduzido anteriormente, e em que pese o entendimento da magistrada brasiliense, não parecem ser casos tão díspares a ponto de receberem tratamentos tão diferentes. Esse foi inclusive, é preciso esclarecer, o modo como ficou pacificada a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal: se inclinaram os desembargadores da capital federal a acatar a perda de uma chance nos casos de desídia profissional do advogado.

Superado esse impasse não restam maiores dúvidas de que a tabela disposta no ponto 3.5.1 deste capítulo traz uma aceitação unânime da teoria da perda de uma chance (ou de uma oportunidade, como prefere se utilizam os magistrados na maioria das decisões pesquisadas) pelo Poder Judiciário brasileiro.

O Superior Tribunal de Justiça, após o julgado do “Caso Show do Milhão”, teve inclusive a oportunidade de se pronunciar mais uma dezena de vezes sobre a teoria e em todas elas encampou de maneira plena a sua aplicação nos casos de casos de responsabilidade civil, seja no campo do direito civil ou administrativo[291] (corroborando, dessa forma, os dados encontrados na doutrina alienígena e esposados no capítulo 2 deste trabalho monográfico).

Percebe-se, da análise feita desses julgados, que as decisões que não acolhem a pretensão da ação de reparação lastreada pela perda de uma chance nunca negam validade e pertinência à teoria[292], muito pelo contrário, apenas a exaltam. O que parece inexorável acontecer, entretanto, é que muitos dos casos trazidos pela via do recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça esbarrem na súmula de número 7 da corte que prevê que a “pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”[293].  Isso se dá, pois dificilmente um recurso especial reiterando o pedido de análise da teoria da perda de uma chance não implicará num necessário (e impossível na literalidade da súmula) revolvimento fático-probatório[294].

Além dessas, algumas outras pretensões buscam dar uma elasticidade a teoria para abarcar casos evidentemente etéreos, no que são prontamente desestimulados pela jurisprudência, que tenta balizar a aplicação da teoria apenas aos casos de chances realmente verossímeis, ou “sérias, plausíveis e reais”, como prevê um verdadeiro mantra propagado nos acórdãos encontrados[295].

Tema que parece ainda não ter sido devidamente desbravado pelos magistrados brasileiros é o porquê de a chance dever ser indenizada no Brasil. Muitas das decisões acabam por inserir em suas fundamentações vagas noções de Justiça ou mesmo de equidade para conferir as reparações. São argumentos sempre válidos e que devem sim ser perseguidos por todos os membros do Judiciário, todavia, há um bem mais forte que poderia tranquilamente ser empregado em todas as decisões: a chance deve ser reparada por uma questão de recomposição da dignidade da pessoa humana, preceito fundador da República Federativa do Brasil e imposição legal de todos os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o país é signatário, a exemplo da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (popularmente conhecida como Pacto de São José da Costa Rica) ou da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, da ONU. 

E assim, é exatamente este princípio que se passa a analisar com maior profundidade, haja vista a sua tímida utilização pelos julgadores nos casos envolvendo perdas de chances – uma vez que ele é amplamente utilizado em outros casos concretos, como, e.g, nos que envolvem pedido de medicamentos para hipossuficientes portadores de moléstias graves, e no mais das vezes, raras.

3.6. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO MARCO DA ACEITAÇÃO DO PRINCÍPIO DA REPARAÇÃO INTEGRAL DOS DANOS

A conjuntura atual das discussões acerca da perda de uma chance relembra em muito o Discurso da Desigualdade[296] de Jean-Jaques Rousseau, onde o filósofo genovês demonstra as implicações de uma atitude aparentemente muito simples: cercar uma área. Transmudando-se a metáfora para o debate ora suscitado no Judiciário brasileiro, pode-se vislumbrar a problemática questão que enfrentam os magistrados a cada nova pedido de reparação por chances: onde deve-se traçar a linha. Erguer a cerca. Quais danos reparar, quais não? Quais lides baseiam-se em danos hipotéticos, quais em sérios e reais? Qual a gradação prática de algo possível, verossímil ou provável? Enfim, que contextos fáticos passarão para o lado indenizável da linha e quais serão fadados a apenas olhar, famintos, do outro lado da área cercada[297]?

Neste novo universo de interesses merecedores de tutela, danos até então impensáveis[298], como a própria chance, passaram a ser em maiores ou menores graus devidamente apreciados e reparados. Tudo isso em atendimento ao princípio basilar e orientador da República Federativa Brasileira que é a dignidade da pessoa humana[299].

Para Tepedino parece evidente que

a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do pár. 2o. do art. 5o, no sentido da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento[300].

E, inserida nessa cláusula geral de tutela está, de maneira clara como o “reverso da medalha”[301], a reparação integral dos danos. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 chama assim para si a responsabilidade de não deixar nenhum de seus cidadãos do lado de fora da linha anteriormente desenhada, pois colocou no mais alto patamar normativo do ordenamento pátrio este “verdadeiro princípio de justiça que deverá sempre nortear a atividade do intérprete quando da necessidade de se aferir o que deve ser objeto de reparação na responsabilidade civil”[302].

Esse processo de constitucionalização do direito civil (e não só dele, mas de todos os demais ramos do direito nesse Brasil pós-moderno e especialmente pós 1988) e maximização principiológica,

gerou no sistema particular da responsabilidade civil, a sistemática extensão da tutela da pessoa da vítima, em detrimento do objetivo anterior de punição do responsável. Tal extensão, neste âmbito, desdobrou-se em dois efeitos principais: de um lado, no expressivo aumento das hipóteses de dano ressarcível [como a chance]; de outro, na perda de importância da função moralizadora, outrora tida como um dos aspectos nucleares do instituto[303].

Para além desse macro-princípio, hodiernamente a responsabilidade civil brasileira pauta-se ainda pelos princípios da dignidade social e da justiça distributiva[304], de tal sorte que se pode mesmo afirmar que houve uma verdadeira inversão das polaridades que antigamente regiam o instituto: sai de cena a necessária punição do causador do dano (talvez ainda um resquício dos tempos da Santa Inquisição), para se focar na reparação do lesado. Semelhante ao processo ocorrido no Direito Penal moderno, na concepção que para se alcançar a paz social não basta apenas punir o criminoso, é também necessário dar condições a vítima de restabelecer a sua vida. Essa nova perspectiva “correspondente à aspiração da sociedade atual no sentido de que a reparação proporcionada às pessoas seja a mais abrangente possível”.[305]

Com isso,

antigas verdades absolutas (como os conceitos de dano e de nexo de causalidade) sofrem verdadeiro abalo sísmico,  reconhecida a necessidade de flexibilização da dureza gélida do imperativo nexo causal direto e imediato (CC, art. 403) e do dualismo rígido entre o dano moral e o dano material.

Mitigando os contornos dos clássicos institutos da responsabilidade civil e reconhecendo a existência de novas categorias que emergem dessa publicização do Direito Civil, depara-se com a teoria da perda de uma chance, que consagra a indenizabilidade de determinados danos que, sob o rigorismo conceitual, não se enquadrariam como danos patrimoniais ou morais, porém violam a dignidade da vítima e perturbam a solidariedade social. Justifica-se, pois, a indenizabilidade como consectário natural das garantias constitucionais.[306]

Essa é uma necessária virada conceitual, para utilizar o termo de Morais da Rosa[307], que os operadores jurídicos brasileiros precisam realizar: deve-se constitucionalizar o direito civil e nunca civilizar o direito constitucional, aumentando o espectro dos princípios, fonte primeira do direito, nunca tornando-os inócuos. Desse modo, junto de Schmidt, pode-se fazer coro que

Um Estado, por mais rico e imponente que seja, se não tiver valores, regras e princípios insculpidos em sua certidão de nascimento, veladas no cotidiano de cada um de seus súditos e defendidas de todos os ataques por seus magistrados, será um Estado fadado ao insucesso, ao naufrágio. Cada golpe sofrido pelos direitos fundamentais, cada violação de Direitos Humanos nele perpetrada e não prontamente corrigida, cada lei inconstitucional que vige, é buraco nesse frágil casco. Cabe aos marinheiros-juristas desse imenso Estado-Navio, em eterna vigília, repararem todas as ranhuras, costurarem todas as velas, seja com uma nova tese de proteção ao ordenamento, seja tentando mudar pensamentos antigos,[308]seja dando a cada um o que é seu de direito: uma nova chance.

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Sobre o autor
Albano Francisco Schmidt

Advogado, Mestrando pela Northwestern University em Chicago

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHMIDT, Albano Francisco. A possibilidade de indenização pela perda de uma chance no direito brasileiro.: Uma perspectiva histórica e comparada para a superação do dano hipotético e o estabelecimento da reparação universal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3243, 18 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21793. Acesso em: 19 abr. 2024.

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