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Direito Penal do inimigo: da negação do garantismo penal às teses legitimadoras

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23/05/2012 às 09:20
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4 GARANTISMO PENAL E APLICAÇÃO DA PENA

4.1 Garantismo penal

Se fosse permitido ao intérprete do Direito Penal um olhar apaixonado e parcial sobre o delito e seu autor não seria possível sequer cogitar de segurança jurídica e estabilidade normativa. A maneira com que cada um de nós enxerga os fenômenos é influenciada por diversos fatores e circunstâncias. Não há um pensamento uniforme; não deve haver. Entretanto, em matéria penal é preciso uma construção ainda mais sólida e firmes alicerces, pois em última análise o que está em jogo é a liberdade.

A teoria do garantismo penal tem como fim o estabelecimento de critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, assegurando a efetivação dos direitos e garantias fundamentais que, por sua vez, fixam o objeto e o limite do Direito Penal. O poder punitivo estatal é restringindo e a pessoa passa a receber garantias contra atos arbitrários. Salo de Carvalho acentua que o garantismo penal atua

[...] deslegitimando qualquer modelo de controle social maniqueísta que coloca a ‘defesa social’ acima dos direitos e garantias individuais. Percebido dessa forma, o modelo garantista permite a criação de um instrumental prático-teórico idôneo à tutela dos direitos contra a irracionalidade dos poderes, sejam públicos ou privados.[39]

Os direitos e garantias fundamentais são, portanto, instrumentos essenciais e hábeis a orientar a ação estatal e corrigir excessos e equívocos por parte do Estado sancionador. Há limites que não podem ser ultrapassados, mesmo que sob o fundamento de controle social e punição de criminosos. As regras garantistas consagradas na Constituição orientam o sistema penal, não podendo o intérprete olvidá-las.

A construção teórica dos pressupostos do garantismo penal encontra assento nos sólidos fundamentos propostos por Luigi Ferrajoli. Em sua obra Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal, o jurista italiano desperta reflexões sobre a necessidade de se afastar a incerteza e imprevisibilidade no momento da intervenção penal.

Ferrajoli assegura que a diferença substancial entre o Direito Penal Mínimo e o Direito Penal Máximo pode ser mais bem esclarecida quando assentada nos critérios de certeza e incerteza, mesmo reconhecendo o relativismo desses critérios. Assim,

A certeza perseguida pelo direito penal máximo está em que nenhum culpado fique impune, à custa da incerteza de que também algum inocente possa ser punido. A certeza perseguida pelo direito penal mínimo está, ao contrário, em que nenhum inocente seja punido à custa da incerteza de que também algum culpado possa ficar impune. Os dois tipos de certeza e os custos ligados às incertezas correlativas refletem interesses e opiniões políticas contrapostas: por um lado, a máxima tutela da certeza pública acerca das ofensas ocasionadas pelo delito e, por outro lado, a máxima tutela das liberdades individuais acerca das ofensas ocasionadas pelas penas arbitrárias.[40]

O sistema penal de tipo garantista, ainda que reconheça a impossibilidade de um critério absoluto de certeza, não tem por fim que todos os crimes sejam devidamente comprovados e punidos, mas que sejam punidos apenas aqueles em que a culpabilidade restou plenamente comprovada. A dinâmica garantista não tem por escopo uma pretensão de totalidade e assenta-se em juízos de certeza construído sob a ótica das liberdades individuais em contraposição ao arbítrio estatal.

O princípio in dúbio pro reo visa garantir que nenhum inocente venha a ser punido, resolvendo-se a incerteza, como leciona Ferrajoli, “por uma presunção legal de inocência em favor do acusado, precisamente porque a única certeza que se pretende do processo afeta os pressupostos das condenações e das penas e não das absolvições e da ausência de penas”[41].

Zaffaroni salienta que “referir-se a um direito penal garantista em um Estado de direito é uma redundância grosseira, porque nele não pode haver outro direito penal senão o de garantias, de modo que se supõe que todo penalista, nesse marco, é partidário das garantias, isto é, garantista”[42]. E arremata:

O direito penal de um Estado de direito, por conseguinte, não pode deixar de esforçar-se em manter e aperfeiçoar as garantias dos cidadãos como limites redutores das pulsões do Estado de polícia, sob pena de perder sua essência e seu conteúdo. Agindo de outro modo, passaria a liberar poder punitivo irresponsavelmente e contribuiria para aniquilar o Estado de direito, isto é, se erigiria em ramificação cancerosa do direito do Estado de direito.[43]

4.2 Aplicação da pena

4.2.1 Fundamentação e publicidade das decisões

Para que seja possível trilhar o mesmo caminho percorrido pelo juiz ao fixar a pena é preciso saber qual direção ele seguiu. Decisões que não possibilitam essa digressão ferem previsão constitucional, uma vez que os julgamentos do poder judiciário serão públicos e as decisões fundamentadas, consoante o disposto no art. 93, IX, da Constituição Federal.

Os motivos de fato e de direito que subsidiaram a decisão devem estar ao alcance de todos, principalmente, do condenado. O caráter público das decisões judiciais e as implicações delas decorrentes impõem a exteriorização das razões de decidir. Ney Fayet, citado por Carvalho e  Carvalho, leciona sobre a necessidade de fundamentação das decisões e expõe:

[...] é pela motivação que se aprecia se o juiz julgou com conhecimento de causa, se sua convicção é legítima e não arbitrária, tendo em vista que interessa à sociedade e, em particular, às partes saber se a decisão foi ou não acertada. E, somente com a exigência da motivação, da fundamentação, se permitiria à sociedade e às partes a fiscalização da atividade intelectual do magistrado no caso decidido.[44]

4.2.2 Circunstâncias judiciais

O art. 59 do Código Penal estabelece os critérios orientadores eleitos pelo legislador para que se possa determinar a pena-base. Tem-se, no caso, o processo de individualização da pena consagrado na Constituição Federal. Ao juiz, portanto, é imposto o dever de analisar cada uma das circunstâncias em relação a cada um dos réus, para, enfim, estabelecer a pena conforme necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.

Essas circunstâncias são denominadas judiciais, pois cabe ao juiz aumentar ou diminuir a pena em razão de cada circunstância observada no caso concreto. Há, como se vê, certa discricionariedade. Esta, entretanto, não é ilimitada e a própria lei estabelece os parâmetros do permitido e do proibido, uma vez que discricionariedade não pode ser confundida com arbitrariedade. Nucci assim conceitua a fixação da pena:

Trata-se de um processo judicial de discricionariedade juridicamente vinculada visando à suficiência para prevenção e reprovação da infração penal. O juiz, dentro dos limites estabelecidos pelo legislador (mínimo e máximo, abstratamente fixados para a pena), deve eleger o quantum ideal, valendo-se do seu livre convencimento (discricionariedade), embora com fundamentada exposição do seu raciocínio (juridicamente vinculada).[45]

Luiz Luisi, citado por Galvão, esclarece que:

É de entender-se que, na individualização judiciária da sanção penal, estamos frente a uma “discricionariedade juridicamente vinculada”. O Juiz está preso aos parâmetros que a lei estabelece. Dentro deles, o juiz pode fazer as suas opções, para chegar a uma aplicação justa da Lei Penal, atendendo as exigências da espécie concreta, isto é, as suas singularidades, as suas nuanças objetivas e principalmente a pessoa a que a sanção se destina. Todavia é forçoso reconhecer estar habitualmente presente nesta atividade do julgador um coeficiente criador, e mesmo irracional, em que, inclusive inconscientemente, se projetam a personalidade e as concepções da vida e do mundo do juiz.[46]

Não basta ao juiz apenas fazer referência ao art. 59, CP, pois o acusado tem o direito de saber qual a razão da punição e o porquê desta e não daquela pena. Citar de forma genérica as circunstâncias previstas no artigo não realiza seu desiderato. Sentenças dessa natureza, por vezes, acobertam razões de decidir que não se amoldam aos princípios e garantias fundamentais em matéria penal. Os Tribunais têm anulado repetidamente decisões que aplicam a pena acima do mínimo sem a adequada fundamentação. Zaffaroni e Pierangeli confirmam esse entendimento e asseveram:

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Uma sentença assim elaborada é nula, porque não permite a sua crítica, posto que, não sendo possível reconhecer a fundamentação que leva à imposição de uma determinada pena, não é suscetível de comprovação a sua adequação ou inadequação às normas legais. Pode-se ampliá-las, mediante a interpretação dessas normas e com a aplicação concreta que delas faça o juiz, mas para isso é necessário saber quais foram elas, e, as omissões, neste sentido, isso impedem, o que torna incompreensível a individualização da pena realizada.[47]

Assim, a experiência pessoal e a sensibilidade do julgador é que determinarão a forma de sua interpretação. Entretanto, como ensina Ferrajoli, lembrando por Carvalho e Carvalho, o juiz

não deve submeter à indagação a alma do imputado, nem deve emitir vereditos morais sobre sua pessoa, mas apenas investigar seus comportamentos proibidos. E um cidadão pode ser julgado, antes de ser castigado, apenas por aquilo que fez, e não, como no juízo moral, também por aquilo que é.[48]


5 O DIREITO PENAL DO INIMIGO NA PRÁTICA JUDICIÁRIA

A concepção de um Direito Penal que fundamenta a aplicação da pena não em razão do ato praticado, mas orientado pelo “ser” daquele que o pratica está vinculada às perspectivas de um Direito Penal do autor. Esse modelo de Direito Penal não é acolhido pelo Estado brasileiro, posto que os princípios liberais que orientam o Estado de Direito inviabilizam a adoção de postulados autoritários e violadores dos direitos e garantias fundamentais. Na doutrina tradicional o Direito Penal do fato é compreendido como um princípio liberal, excluindo de responsabilidade jurídico-penal os meros pensamentos e, dessa forma, afastando um Direito Penal orientado pelos posicionamentos internos do autor.

Zaffaroni e Pierangeli elucidam ainda mais o tema:

Ainda que não haja um critério unitário acerca do que seja o direito penal de autor, podemos dizer que, ao menos em sua manifestação extrema, é uma corrupção do direito penal, em que não se proíbe o ato em si, mas o ato como manifestação de uma “forma de ser” do autor, esta sim considerada verdadeiramente delitiva. O ato teria valor de sintoma de uma personalidade; o proibido e reprovável ou perigoso, seria a personalidade e não o ato. Dentro desta concepção não se condena tanto o furto, como o “ser ladrão.[49]

A ilegitimidade das premissas do Direito Penal do autor, pela sua própria contradição, afasta também a possibilidade de fundamentação do denominado Direito Penal do Inimigo. Não há possibilidade da negação do status de pessoa em nosso Direito e, portanto, no plano jurídico abstrato, é inconcebível a admissibilidade de seus postulados. Isso não quer dizer que concretamente não existam decisões que, ora explicitamente ora sub-repticiamente, conjuguem elementos de Direito Penal do autor e Direito Penal do Inimigo. A existência de tais decisões, é bom dizer, não as legitima como práticas jurídicas dentro do Estado de Direito. Chamon Júnior, no mesmo sentido, adverte:

Que esta prática de combate jurídico-penal exista, como exalta JAKOBS, de forma silenciosa e, porque não, acreditou eu, parasitária do Direito Penal legítimo, não pode decorrer conclusões a acreditar que se trata de uma prática normativa coerente com o Estado de Direito e que possa ser identificada como sendo prática jurídica. Antes, o que aqui se buscou colocar em relevo é o fato de que todas, e quaisquer, pretensões de coercibilidade somente se justificam na Modernidade quando sustentáveis em face de uma reconstrução do sentido normativo subjacente ao Direito moderno, quando capazes de se manterem de pé por razões normativas, e não somente por razões funcionais. E que este papel reconstrutivo, e não meramente “descritivo”, é o que há que ser assumido pelos cientistas e operadores do Direito, se se pretende levar adiante o projeto jurídico-moderno de reconhecimento de iguais direitos fundamentais a todos os concidadãos, na maior medida possível, de construção de uma Sociedade de livres e iguais.[50]

Um Direito Penal que busca rotular cidadãos como inimigos aponta aspirações autoritárias. Ferrajoli concebe que um processo penal que visa “golpear todos os culpados é fruto de uma ilusão totalitária” e arremata dizendo que “compreende-se , assim, como o princípio equitativo do favor rei – de que a máxima in dubio pro reo é um corolário – não só não contradiz, mas é até mesmo uma condição necessária para integrar o tipo de certeza racional perseguida pelo garantismo penal”[51].

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Sobre o autor
Joaquim Manoel Alves Cardoso

Advogado. Oficial da reserva da PMMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Joaquim Manoel Alves. Direito Penal do inimigo: da negação do garantismo penal às teses legitimadoras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3248, 23 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21832. Acesso em: 25 abr. 2024.

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