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Da impossibilidade de exportação de sangue do cordão umbilical para bancos de sangue estrangeiros

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O princípio da supremacia do interesse público sobre o particular deve ser aplicado, pois o direito individual de processamento, criopreservação e armazenamento de sangue do cordão umbilical está resguardado, vez que há no Brasil a prestação desse serviço com o uso de alta tecnologia.

O presente estudo tem por objeto a análise acerca da possibilidade ou não da exportação de sangue de cordão umbilical para bancos de sangue estrangeiros, sob prisma da Lei nº 10.205, de 21/03/2001, que regulamenta o § 4º do art. 199 da Constituição Federal, relativo à coleta, processamento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue, seus componentes e derivados, estabelece o ordenamento institucional indispensável à execução adequada dessas atividades, e dá outras providências.

Inicialmente, cumpre observar os artigos 7º, 8º e 9º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (Decreto – Lei nº 4657,de 04 de setembro de 1942), que traz normas de aplicabilidade das leis em geral:

Art. 7º A lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família.

§ 1º Realizando-se o casamento no Brasil, será aplicada a lei brasileira quanto aos impedimentos dirimentes e às formalidades da celebração.

§ 2º O casamento de estrangeiros poderá celebrar-se perante autoridades diplomáticas ou consulares do país de ambos os nubentes. (Redação dada pela Lei nº 3.238, de 1957)

§ 3º Tendo os nubentes domicílio diverso, regerá os casos de invalidade do matrimônio a lei do primeiro domicílio conjugal.

§ 4º O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, a do primeiro domicílio conjugal.

§ 5º - O estrangeiro casado, que se naturalizar brasileiro, pode, mediante expressa anuência de seu cônjuge, requerer ao juiz, no ato de entrega do decreto de naturalização, se apostile ao mesmo a adoção do regime de comunhão parcial de bens,respeitados os direitos de terceiros e dada esta adoção ao competente registro. (Redação dada pela Lei nº 6.515, de 1977)

§ 6º O divórcio realizado no estrangeiro, se um ou ambos os cônjuges forem brasileiros, só será reconhecido no Brasil depois de 1 (um) ano da data da sentença, salvo se houver sido antecedida de separação judicial por igual prazo, caso em que a homologação produzirá efeito imediato, obedecidas as condições estabelecidas para a eficácia das sentenças estrangeiras no país. O Superior Tribunal de Justiça, na forma de seu regimento interno, poderá reexaminar, a requerimento do interessado, decisões já proferidas em pedidos de homologação de sentenças estrangeiras de divórcio de brasileiros, a fim de que passem a produzir todos os efeitos legais. (Redação dada pela Lei nº 12.036, de 2009).

§ 7º Salvo o caso de abandono, o domicílio do chefe da família estende-se ao outro cônjuge e aos filhos não emancipados, e o do tutor ou curador aos incapazes sob sua guarda.

§ 8º Quando a pessoa não tiver domicílio, considerar-se-á domiciliada no lugar de sua residência ou naquele em que se encontre.

Art. 8º Para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados.

§ 1º Aplicar-se-á a lei do país em que for domiciliado o proprietário, quanto aos bens moveis que ele trouxer ou se destinarem a transporte para outros lugares.

§ 2º O penhor regula-se pela lei do domicílio que tiver a pessoa, em cuja posse se encontre a coisa apenhada.

Art. 9º Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.

§ 1º Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato.

§ 2° A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente.

Da análise dos supracitados artigos, nota-se que o Brasil adotou o princípio da territorialidade moderada para o regime de bens e obrigações, atendendo aos interesses internos deste Estado, obrigando-se exclusivamente dentro de seu território, salvo as hipóteses dos § § 1º e 2º do art. 8º retro mencionado. Quantoàs leis pessoais, ou seja, as que tratam de direitos da pessoa, como família e capacidade, regem-se pela extraterritorialidade. Tal situação jurídica em que ao estrangeiro é aplicada a lei de seu país de origem denomina-se estatuto pessoal, hipótese prevista no art. 7º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

Nota-se também nos de dias de hoje, um enorme intercâmbio entre pessoas físicas e jurídicas de diferentes Estados, tendo o Poder Público o dever de respeito aos postulados que emergem da ordem constitucional brasileira. Ademais, conforme o já citado princípio da territorialidade e considerando-se o fato de que o §4º do art. 199 da Constituição Federale sua regulamentação pela Lei nº 10. 205/01 são normas de ordem pública, a sua aplicação deve se dar segundo o ordenamento jurídico brasileiro, sem possibilidade de aplicação de legislações alienígenas que tratam do sangue e tecidos humanos. Vejamos o art. 199, § 4º da Carta Magna:

Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

§ 4º - A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.

No mesmo sentido leciona Ives Gandra Martins[1]:

Nitidamente, o dispositivo objetivou evitar o comércio ilegal de órgãos e sangue, assim como a possível exploração de pessoas sem recursos, que as pudesse levar a disporem de seus órgãos mediante negociação.

O texto, todavia, é absolutista, pois, ao dizer que é vedado todo tipo de comercialização nitidamente proibiu até que os medicamentos feitos à base de sangue pudessem ser comercializados, o que vale dizer, o constituinte proibiu qualquer tipo de comercialização de medicamento que derivasse direta ou indiretamente de substâncias humanas, inclusive as auto vacinas.

Por seu turno, a Lei nº 10.205, de 21 de março de 2001, que dispõe sobre a coleta, processamento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue, seus componentes e derivados e estabelece a gestão da política nacional de sangue,componentes e derivados . In verbis:

Art. 16. A Política Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados, cuja execução estará a cargo do SINASAN, será dirigida, em nível nacional, por órgão específico do Ministério da Saúde, que atuará observando os seguintes postulados:

 I - coordenar as ações do SINASAN;

II - fixar e atualizar normas gerais relativas ao sangue, componentes e hemoderivados para a sua obtenção, controle, processamento e utilização, assim como aos insumos e equipamentos necessários à atividade hemoterápica;

III - propor, em integração com a vigilância sanitária, normas gerais para o funcionamento dos órgãos que integram o Sistema, obedecidas as Normas Técnicas;

IV - integrar-se com os órgãos de vigilância sanitária e epidemiológica elaboratórios oficiais, para assegurar a qualidade do sangue, componentes e hemoderivados e dos respectivos insumos básicos;

V - propor às esferas do poder público os instrumentos legais que se fizerem necessários ao funcionamento do SINASAN;

VI - organizar e manter atualizado cadastro nacional de órgãos que compõem o SINASAN;

VII - propor aos órgãos competentes da área de educação critérios para a formação de recursos humanos especializados necessários à realização de atividades hemoterápicas e à obtenção, controle, processamento, estocagem, distribuição, transfusão e descarte de sangue, componentes e hemoderivados, inclusive a implementação da disciplina de Hemoterapia nos cursos de graduação médica;

VIII - estabelecer critérios e conceder autorização para importação e exportação de sangue, componentes e hemoderivados, observado o disposto no § 1º do art. 14 e no parágrafo único do art. 22 desta Lei;

IX - estimular a pesquisa científica e tecnológica relacionada com sangue, seus componentes e hemoderivados, de reagentes e insumos para diagnóstico, assim como nas áreas de hemoterapia e hematologia;

X - fixar requisitos para a caracterização de competência dos órgãos que compõem o SINASAN, de acordo com seu ordenamento institucional estabelecido no art. 15 desta Lei;

XI - estabelecer critérios de articulação do SINASAN com órgãos e entidades nacionais e estrangeiras de cooperação técnico-científica;

XII - avaliar a necessidade nacional de sangue humano, seus componentes e hemoderivados de uso terapêutico, bem como produtos de uso laboratorial e propor investimentos para a sua obtenção e produção;

XIII - estabelecer mecanismos que garantam reserva de sangue, componentes e hemoderivados e sua mobilização em caso de calamidadepública;

XIV - incentivar e colaborar com a regulamentação da atividade industrial e sua operacionalização para produção de equipamentos e insumos indispensáveis à atividade hemoterápica, e inclusive com os Centros de Produção de Hemoderivados;

XV - estabelecer prioridades, analisar projetos e planos operativos dos órgãos que compõem a Rede Nacional de Serviços de Hemoterapia e acompanhar sua execução;

XVI - avaliar e acompanhar o desempenho técnico das atividades dos Sistemas Estaduais de Sangue, Componentes e Hemoderivados;

XVII - auxiliar na elaboração de verbetes da Farmacopéia Brasileira, relativos aos hemoterápicos e reagentes utilizados em Hemoterapia e Hematologia;

XVIII - propor normas gerais sobre higiene e segurança do trabalho nas atividades hemoterápicas, assim como sobre o descarte de produtos e rejeitos oriundos das atividades hemoterápicas.

Assim, existe a competência do Ministério da Saúde, por intermédio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), conferida por lei para o estabelecimento de critérios para a importação e exportação do sangue,componentes e derivados. Essa incumbência decorre do poder normativo da ANVISA, contudo esta regulamentação não pode contrariar, infringir, nem tampouco extravasar os limites da lei.

Do estudo da referida lei nº 10.205/2001, extrai-se que o sangue do cordão umbilical está embutido no conceito de sangue. Senão vejamos:

Art. 2º. Para efeitos desta Lei, entende-se por sangue, componentes e hemoderivados os produtos e subprodutos originados do sangue humano venoso, placentário ou de cordão umbilical, indicados para diagnóstico, prevenção e tratamento de doenças, assim definidos.

Nesse diapasão, o art. 14 da lei nº 10.205/2001:

Art. 14. A Política Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes:

 I - universalização do atendimento à população;

II - utilização exclusiva da doação voluntária, não remunerada, do sangue, cabendo ao poder público estimulá-la como ato relevante de solidariedade humana e compromisso social;

III - proibição de remuneração ao doador pela doação de sangue;

IV - proibição da comercialização da coleta, processamento, estocagem, distribuição e transfusão do sangue, componentes e hemoderivados;

V - permissão de remuneração dos custos dos insumos, reagentes, materiais descartáveis e da mão-de-obra especializada, inclusive honorários médicos, na forma do regulamento desta Lei e das Normas Técnicas do Ministério da Saúde;

VI - proteção da saúde do doador e do receptor mediante informação ao candidato à doação sobre os procedimentos a que será submetido, os cuidados que deverá tomar e as possíveis reações adversas decorrentes da doação, bem como qualquer anomalia importante identificada quando dos testes laboratoriais, garantindo-lhe o sigilo dos resultados;

VII - obrigatoriedade de responsabilidade, supervisão e assistência médica na triagem de doadores, que avaliará seu estado de saúde, na coleta de sangue e durante o ato transfusional, assim como no pré e pós-transfusional imediatos;

VIII - direito a informação sobre a origem e procedência do sangue, componentes e hemoderivados, bem como sobre o serviço de hemoterapia responsável pela origem destes;

IX - participação de entidades civis brasileiras no processo de fiscalização, vigilância e controle das ações desenvolvidas no âmbito dos Sistemas Nacional e Estaduais de Sangue, Componentes e Hemoderivados;

X - obrigatoriedade para que todos os materiais ou substâncias que entrem em contato com o sangue coletado, com finalidade transfusional, bem como seus componentes e derivados, sejam estéreis, apirogênicos e descartáveis;

XI - segurança na estocagem e transporte do sangue, componentes e hemoderivados, na forma das Normas Técnicas editadas pelo SINASAN; e

XII - obrigatoriedade de testagem individualizada de cada amostra ou unidade de sangue coletado, sendo proibida a testagem de amostras ou unidades de sangue em conjunto, a menos que novos avanços tecnológicos a justifiquem, ficando a sua execução subordinada a portaria específica do Ministério da Saúde, proposta pelo SINASAN.

§ 1º É vedada a doação ou exportação de sangue, componentes e hemoderivados, exceto em casos de solidariedade internacional ou quando houver excedentes nas necessidades nacionais em produtos acabados, ou por indicação médica com finalidade de elucidação diagnóstica, ou ainda nos acordos autorizados pelo órgão gestor do SINASAN para processamento ou obtenção de derivados por meio de alta tecnologia, não acessível ou disponível no País.

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Destarte, entende-se ser expressamente proibida a exportação de sangue, ressalvados os casos especificados de solidariedade internacional ou quando houver excedentes nas necessidades nacionais em produtos acabados, ou por indicação médica com finalidade de elucidação diagnóstica, ou ainda nos acordos autorizados pelo órgão gestor do SINASAN para processamento ou obtenção por meio de alta tecnologia, não acessível ou disponível no país.

Por isso, estando o sangue do cordão umbilical incluído na definição de sangue, a consequência lógica é a sua expressa vedação legal.

Poder-se-ia argumentar que a remessa desse tipo de sangue atenderia as ressalvas do § 1° do art. 14 da Lei 10.205/2001, quais sejam: indicação médica com finalidade de elucidação diagnóstica ou acordos autorizados pelo órgão gestor do SINASAN para processamento ou obtenção de derivados por meio de alta tecnologia, não acessível ou disponível no país.

Todavia, tais argumentos caem por terra, tendo em vista que existem no Brasil bancos de sangue que empregam tecnologia similar à oferecida pelos bancos de sangue estrangeiros. Desse modo, tais serviços existentes no Brasil preenchem a finalidade perseguida de processamento, criopreservação e armazenamento de sangue do cordão umbilical, não se podendo dizer que não há no país serviços de elucidação diagnóstica, bem como que tais serviços não são de alta tecnologia.

De seu turno, a RDC nº 153, de 14 de junho de 2004, define banco de sangue de cordão umbilical:

O.2.1 (...)

Entende-se por "Banco de Sangue de Cordão Umbilical e Placentário para uso alogêniconão-aparentado” (BSCUP), os serviços que coletam, testam, processam, armazenam e liberam células progenitoras hematopoéticas obtidas de sangue de cordão umbilical e placentário para uso alogênico não-aparentado.

Ora, é de conhecimento de todos, que nenhum direito tem conotação absoluta e deve ceder quando há outro direito maior em colidência. Daí a necessidade de aplicação do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular.

Portanto, tal princípio deve ser aplicado neste caso, pois o direito individual de processamento, criopreservação e armazenamento de sangue do cordão umbilical está resguardado, vez que há no Brasil estabelecimentos que prestam esse serviço com o uso de alta tecnologia. Dessa forma, deve-se procurar preservar o patrimônio genético do povo brasileiro, porque uma vez exportado esse sangue, não é possível haver nenhum tipo de fiscalização por parte do Brasil.

Salienta-se que a RDC nº 153/2004, que sucedeu a RDC nº 190/2003, inclui no bojo de sua regulamentação técnica para os procedimentos hemoterápicos, o regramento para o funcionamento dos bancos de sangue de cordão umbilical e placentário.

Nesse ponto, cumpre destacar que o princípio da legalidade como princípio da Administração Pública leva ao entendimento de que o administrador, além de estar sujeito aos mandamentos da lei, sendo-lhe exigido fazer o que a lei determina, sujeita-se também às exigências do bem comum. A lei deve ser atendida pelo administrador público não apenas na frieza do seu texto, mas também, atendendo ao seu espírito e aos interesses sociais a que se destina. Para dar legitimidade à sua atuação, a Administração Pública deve adicionar a legalidade à moralidade e finalidade administrativa.

Ante o exposto, conclui-se pela impossibilidade de exportação de sangue de cordão umbilical para os bancos de sangue estrangeiros, com fulcro em expressa vedação legal (art. 14, § 1º da lei nº 10.205/2001) e também na aplicação do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, tendo em vista a existência de serviços similares no Brasil, resguardando o direito individual de armazenamento desse sangue e a necessidade de preservação do patrimônio genético do povo brasileiro.


Nota

[1] MARTINS, Ives Gandra, in Comentários à Constituição do Brasil, 8º volume , 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 2000, p.183.

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Sobre a autora
Juliana de Assis Aires Gonçalves

Procuradora Federal, lotada na Procuradoria Federal do Estado de Goiás, em exercício na Agência Nacional de Telecomunicações.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Juliana Assis Aires. Da impossibilidade de exportação de sangue do cordão umbilical para bancos de sangue estrangeiros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3258, 2 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21920. Acesso em: 19 abr. 2024.

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