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Os direitos fundamentais e a constitucionalização do Direito do Trabalho

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De forma gradual, mas progressiva, a doutrina e a jurisprudência passaram a tratar da incidência dos direitos fundamentais nas relações jurídicas estabelecidas entre trabalhadores e empregadores, a fim de proteger os direitos individuais de ambas as classes.

Sumário: 1 Introdução. 2 Definição dos direitos fundamentais. 2.1 Eficácia dos direitos fundamentais. 2.1.1 Eficácia vertical. 2.1.2 Eficácia horizontal. 2.2 Incidência dos direitos fundamentais nas relações de Direito do Trabalho. 2.3 Eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais nas relações trabalhistas. 3 Conclusão. Bibliografia.


1. Introdução

Nos dias de hoje, a questão relativa aos direitos e liberdades públicas dos cidadãos, e, sobretudo, dos cidadãos-trabalhadores, mostra-se dotada de grande relevância. Isso decorre, por um lado, em face das diversas modificações nos sistemas de produção, o que passou a exigir uma alteração na postura dos empregadores no sistema de administração das empresas, e, por outro lado, com aquilo que se costumou a denominar como constitucionalização do Direito do Trabalho, que visa atribuir uma maior efetividade na proteção dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Não se pode negar que essas questões, de forma quase que inevitável, poderão gerar a colisão entre direitos dos trabalhadores e dos empregadores.

Em face disso, mostra-se necessária, portanto, a verificação da incidência dos direitos fundamentais no âmbito das relações jurídicas estabelecidas entre trabalhadores e empregadores. Num primeiro momento, a resposta pode parecer simples, mas não pode ser abordada de forma tão superficial, tendo em vista que se faz imprescindível a análise dos fundamentos jurídicos que se devem utilizar para eventual adoção deste procedimento, especialmente diante das características das normas vigentes no Direito do Trabalho. Essa é a finalidade do presente estudo.

E, com o objetivo de verificar a forma pela qual poderá ocorrer a incidência dos direitos fundamentais nas relações de Direito do Trabalho – eficácia horizontal dos direitos fundamentais –, necessariamente deverão ser superadas algumas etapas que logicamente se apresentam, com o estabelecimento de algumas premissas metodológicas ao estudo, sobretudo, realizando uma abordagem mais ampla acerca do que se costuma denominar como direitos fundamentais, bem como uma análise de toda a sua sistemática.

De igual sorte, faz-se uma abordagem da eficácia dos direitos fundamentais no âmbito das várias relações jurídicas, tanto nas relações jurídico-públicas como naquelas estabelecidas entre os sujeitos particulares. Analisa-se aquilo que se passou a denominar como eficácia vertical, bem como a vinculação positiva dos poderes públicos aos direitos e liberdades públicas dos cidadãos. Por outro lado, procede-se à verificação da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou a sua aplicação no contexto das relações entre sujeitos privados.

Depois de verificada as questões relativas à incidência dos direitos fundamentais em ambas as espécies de relações jurídicas – públicas e privadas –, no terceiro capítulo do presente estudo, passa-se a abordar a maneira pela qual poderá ocorrer a aplicação dos direitos fundamentais nas relações trabalhistas, e, ainda, a forma como isso se dará. Concentram-se os esforços na finalidade de analisar se as liberdades públicas dos cidadãos – as quais são mantidas pelo trabalhador durante a prestação de serviços – são aplicáveis de forma direta e imediata ou, se para tanto, requerem a intervenção dos poderes públicos, nomeadamente do legislador.

É relevante mencionar que, em determinadas ocasiões, em face da dinâmica que envolve as relações trabalhistas, inevitavelmente os direitos individuais dos trabalhadores entrarão em conflito com outros direitos, bens e valores constitucionalmente protegidos, tanto em benefício de outros trabalhadores, da coletividade, do Estado, como aqueles assegurados aos empregadores.

Ocorre, porém, que nem os direitos atribuídos aos trabalhadores nem os direitos estabelecidos aos empregadores se mostram como sendo absolutos, razão pela qual, em determinadas ocasiões, tais direitos comportarão alguma espécie de limitação ou restrição, em benefício de um outro bem ou valor também assegurado por normas constitucionais. Haverá, neste instante, a colisão entre direitos dos sujeitos envolvidos nas relações trabalhistas que, de uma forma ou de outra, deverão ser solucionados pelos órgãos jurisdicionais, como de fato acontece no cotidiano do Poder Judiciário incumbido de compor as lides trabalhistas.

Justamente em decorrência dos conflitos de direitos e interesses dos trabalhadores e empregadores, e, lembrando-se que a matéria pode ser abordada de forma bem mais profunda, visto que recheada de controvérsias em sede doutrinária e jurisprudencial, pode-se dizer que, de maneira sintética, é desta forma que se pretende analisar a incidência dos direitos fundamentais no seio das relações jurídicas estabelecidas entre trabalhadores e empregadores.


2. Definição dos direitos fundamentais

Não se trata de tarefa das mais fáceis traçar uma definição do que vêm a ser os denominados direitos fundamentais. Mas, com o intuito de cumprir fielmente o objetivo traçado para o presente estudo, mostra-se como sendo imprescindível a busca de um conceito no âmbito da doutrina jurídica.

Num primeiro momento, porém, há de se ressaltar que, de forma geral, costuma-se utilizar diversas denominações de forma sinônima, com o intuito de designar aquela categoria de direitos atribuídos às pessoas, apenas pela razão delas existirem. Dentre essas expressões, podem ser mencionadas algumas tais como: direitos humanos, direitos morais, direitos naturais, liberdades públicas, direitos das pessoas, direitos subjetivos públicos, entre outras diversas expressões utilizadas para nominar o conjunto dos direitos fundamentais.

Embora se mostre como questão de grande interesse para o estudo jurídico de maneira geral, ressalta-se que, no presente momento, os esforços serão concentrados sobre a distinção das expressões direitos humanos e direitos fundamentais, em face de serem estas dotadas de maior utilidade para os fins objetivados nesse estudo[1].

No mister de proceder a uma distinção, GregorioRobles afirma que a expressão direitos humanos ou direitos do homem, também denominados de forma clássica como direitos naturais, e, atualmente concebidos como direitos morais, na realidade não são verdadeiros direitos – protegidos por meio de ações processuais perante um juiz –, mas servem de critérios norteadores à boa convivência dos indivíduos, tendo em vista que “os direitos humanos, ou melhor dizendo, determinados direitos humanos, positivam-se, adquirindo a categoria de verdadeiros direitos protegidos processualmente e passam a ser direitos fundamentais, no âmbito de determinado ordenamento jurídico”[2]. Na concepção do ilustre jurista, pode-se concluir que os direitos fundamentais são uma espécie de positivação dos direitos humanos.

Por sua vez, Gomes Canotilho reconhece que “as expressões ‘direitos do homem’ e ‘direitos fundamentais’ são freqüentemente utilizadas como sinônimas”. Sustenta, porém, que “segundo a sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: ‘direitos do homem’ são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); ‘direitos fundamentais’ são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente”. Ressalta, ainda, que “os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídico-concreta”[3].

Segundo PérezLuño, existe uma propensão doutrinária no sentido de se utilizar a expressão direitos fundamentaispara designar aqueles direitos positivados no ordenamento jurídico interno, ao passo que designação direitos humanos seria mais comum para designar aqueles direitos naturais constantes das declarações e convenções internacionais, bem como àquelas essenciais exigências pertinentes à dignidade, liberdade e igualdade da pessoa que ainda não constam de um estatuto jurídico-positivo[4].

Independentemente da divergência existente no âmbito da doutrina jurídica, importa mencionar que é justamente a expressão direitos fundamentaisaquela adotada pelas Constituições de Portugal, Brasil e Espanha, sendo que tais Estados se baseiam na dignidade da pessoa humana[5], fundamento da existência dessa categoria de direitos, razão pela qual, para fins do presente estudo, doravante, adotar-se-á a designação direitosfundamentais.

Há de se ressaltar, porém, que, embora tenha sido definida a denominação a ser utilizada, não se tem até esse instante uma definição sobre essa categoria de direitos, o que é imprescindível para o presente estudo. O que vem a ser, portanto, os direitos fundamentais?

Analisando os vários enfoques dos direitos fundamentais, José Carlos de Vieira Andrade afirma que “aquilo a que se chama ou a que é lícito chamar direitos fundamentais pode, afinal, ser considerado por várias perspectivas”. Sob uma perspectiva filosófica ou jusnaturalista, sustenta que “os direitos fundamentais podem ser vistos enquanto direitos naturais de todos os homens, independentemente dos tempos e dos lugares”. Numa perspectiva estadual ou constitucional, são considerados “os direitos mais importantes das pessoas, num determinado tempo e lugar, isto é, num Estado concreto ou numa comunidade de Estados”. Ressalta, ainda, que sob uma perspectiva universalista ou internacionalista, os direitos fundamentais “podem ser considerados direitos essenciais das pessoas num certo tempo, em todos os lugares ou, pelo menos, em grandes regiões do mundo”[6].

Embora o ilustre constitucionalista português proceda a sua análise a partir de vários enfoques, facilmente se percebe a convergência existente em sua concepção, no sentido de serem os direitos fundamentais aqueles atribuídos a todos os homens, ou direitos mais importantes das pessoas, ou, ainda, direitos essenciais das pessoas.O Homem, o Ser humano, a pessoa é a figura ou foco central. A formulação, porém, apenas diverge, entre si, basicamente no que tange ao lugar e tempo de vigência de tais direitos, conforme cada uma das perspectivas, mas, a essência não se altera.

Segundo LuigiFerrajoli, numa definição puramente formal ou teórica, seria possível considerar como direitos fundamentais “aqueles direitos subjetivos que correspondam universalmente a ‘todos’ os seres humanos enquanto dotados do ‘status’ de pessoas, de cidadãos ou sujeitos com capacidade de agir”, sendo que, nesse caso, deve-se entender por direitos subjetivos toda aquela expectativa positiva – faculdade de agir – ou negativa – suscetibilidade de sofrer lesão – atribuída a um sujeito por meio de uma norma jurídica[7]. O ilustre autor vincula a idéia de direitos fundamentais com os direitos subjetivos.

Numa concepção ampla, CésarHines sustenta que “os direitos fundamentais em um Estado constitucional e democrático de Direito formam parte do conjunto de valores e princípios que regulam a atividade do poder público, estabelecendo uma inclinação especial para sua satisfação, tanto como uma proteção apreensível por cada indivíduo quanto como fins gerais aderidos à concepção mesma do Estado que se fortaleceria na medida em que os faça efetivos”[8].

Sob uma dimensãosubjetiva, há de se mencionar que os direitos fundamentais determinam o estatuto jurídico dos cidadãos, seja em suas relações com o Estado ou com os particulares. Embora originariamente tenham sido concebidos como forma de defesa dos cidadãos frente ao Estado, esses direitos tendem a tutelar a liberdade, autonomia e segurança das pessoas perante os demais membros do corpo social. No princípio, imaginava-se que não havia razão para ser aplicados os direitos fundamentais nas relações entre os privados, justamente em face da existência de uma igualdade formal entre tais pessoas. Ocorre, porém, que, em que pese haja uma igualdade formal, as relações jurídicas na sociedade comportam situações em que não existe uma igualdade material, razão pela qual a partir do Estado Social de Direito, houve uma mudança dessa concepção, aplicando-se os direitos fundamentais a todos os setores do ordenamento jurídico[9].

Depois de se ter apresentado essa pluralidade de conceitos, verifica-se que, regra geral, os direitos fundamentais podem ser concebidos como atributos naturais atinentes ao homem, ligados essencialmente aos valores da dignidade, liberdade e igualdade, decorrentes da sua própria existência, com fundamento na dignidade da pessoa humana[10].Importa ressaltar, ainda, que esses direitos não são graciosamente atribuídos pelo Estado – que deve respeitá-los, promovê-los e garanti-los –, mas apenas têm o seu reconhecimento no ordenamento jurídico-positivo.

2.1. Eficácia dos direitos fundamentais

A eficácia dos direitos fundamentais, tal como ocorre com qualquer outra norma no âmbito constitucional, somente pode ser aferida em termos jurídicos, a partir da aptidão do seu conteúdo normativo para atingir a finalidade do seu objeto, consubstanciando-se este na garantia de um determinado campo de liberdade pessoal do indivíduo[11], sem interferências indevidas do Estado ou de sujeitos particulares.

Nesse contexto, pode-se dizer que o estudo da eficácia dos direitos fundamentais – eficácia vertical e eficácia horizontal – está intimamente ligada à verificação daqueles sujeitos que estão vinculados ou obrigados por essa categoria de direitos, bem como quais os argumentos utilizados para a respectiva vinculação destes entes. De igual sorte, mostra-se como questão primordial, caso de fato exista tal obrigação, analisar a forma de vinculação dos sujeitos aos direitos fundamentais. São estas, portanto, as questões essenciais que deverão ser abordadas no presente momento.

2.1.1 Eficácia vertical

Quando se menciona a eficácia vertical dos direitos fundamentais se está a referir quanto à vinculação dos poderes públicos a essa categoria de direitos. Ocorre, todavia, que não há muita controvérsia acerca da sua incidência nas relações de natureza jurídico-públicas, tendo em vista que, originariamente, segundo a concepção da doutrina liberal, os direitos fundamentais se mostram justamente como sendo meios de defesa do cidadão perante o Estado, identificando este como o maior ameaçador dos direitos e liberdades dos indivíduos.

Aliás, a obrigatoriedade da vinculação pode ser encontrada no corpo das Constituições de diversos países. Sintonizado com a abrangência do estudo que ora se desenvolve, pode-se mencionar que, em Portugal e na Espanha, existe expressa menção no âmbito das respectivas Constituições[12]. No Brasil, em que pese não exista disposição específica no sentido de vincular os entes públicos aos direitos fundamentais, há o expresso reconhecimento dos direitos constantes do Título II – Dos direitos e garantias fundamentais – e, além disso, sem qualquer exclusão de direitos e garantias constantes de documentos internacionais ratificados pelo Brasil[13].

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Não há, pois, controvérsias doutrinárias acerca da vinculação do Estado aos direitos fundamentais, ou, ainda, àquilo que costumeiramente passou a ser designado como eficácia vertical[14].

Há de se ressaltar, entretanto, que os direitos fundamentais vinculam os poderes públicos em toda a sua extensão, ou seja, em todo o alcance de sua delimitação. Tendo em vista que os direitos fundamentais são considerados como componentes essenciais da ordem constitucional, exige-se a sua não-eliminação na relação que se possa apresentar com outros bens ou direitos constitucionais, assim como não ser objeto de uma restrição superior àquela necessária em sua eficácia na vida da comunidade. Importa mencionar, ainda, que da vinculação dos poderes públicos aos direitos fundamentais se compreende que estes não podem ser limitados da forma que lhe aprouver, mas deve haver a menor restrição possível, com vistas a atingir o fim perseguido[15].

Percebe-se, portanto, que incumbe aos poderes públicos de forma geral – Executivo, Legislativo e Judiciário –, cada um a sua maneira, contribuírem para a proteção e promoção dos direitos fundamentais[16]. Há de se ressaltar que, em que pese haja a incumbência do Executivo no sentido de desenvolver políticas públicas a fim de promover os direitos e garantias dos cidadãos, e, ainda, embora os órgãos jurisdicionais possuam grande relevância na garantia dos direitos fundamentais, através do exercício da função jurisdicional[17], e, sendo essa uma das atividades que mais contribuem para a eficácia dos direitos, a doutrina costuma atribuir uma importância maior ao Poder Legislativo, mencionando-se, na grande maioria das vezes, a vinculação positiva do legislador aos direitos fundamentais.

Conforme salienta Prieto Sanchís, é inevitável a intervenção legislativa no campo das liberdades públicas dos cidadãos, tendo em vista que os direitos fundamentais normalmente aparecem no corpo das Constituições ou documentos internacionais como meras declarações de direitos, sendo que apenas oferecem ao legislador ordinário as diretrizes gerais para o seu regime jurídico, e, para a sua plena eficácia, mostra-se de vital relevância a sua concretização por meio de normas jurídicas[18].

Em síntese, nota-se que a discussão agora já não mais se circunscreve à adequada utilização dos direitos fundamentais pelos cidadãos, mas quanto à necessária intervenção do Estado na remoção de eventuais obstáculos que, de uma forma ou de outra, impeçam ao indivíduo o pleno exercício de seus direitos e liberdades. Resta assinalar, entretanto, que a interferência do Estado para propiciar o gozo de tais prerrogativas pelo cidadão, não ocorre de forma facultativa, mas se revela como uma obrigação imposta por meio de normas inseridas na constituição. O Estado, portanto, tem o dever constitucional de não apenas proteger, mas também promover o pleno e efetivo gozo dos direitos fundamentais.

2.1.2 Eficácia horizontal

Tendo em vista a natureza originária com que foram concebidos os direitos fundamentais – direitos de defesa do cidadão perante o Estado –, mostra-se sendo uma questão um pouco mais tormentosa aquela referente à sua aplicação no campo das relações jurídico-privadas, ou a vinculação dos particulares a essa categoria de direitos, o que se costumou denominar como eficácia horizontal dos direitos fundamentais, sendo que, no âmbito da doutrina jurídica alemã – onde a questão foi originariamente abordada –, tratou-se do tema utilizando a expressãoDrittwirkung der Grundrechte.

Há de se ressaltar que a expressão eficácia horizontal se utiliza para demonstrar que os direitos fundamentais produzem efeitos nas relações privadas, em clara oposição à eficácia vertical, na qual somente resultam oponíveis às ações praticadas pelos entes públicos, ao contraste entre subordinação e coordenação. Na linguagem jurídica alemã – ordenamento jurídico onde esta discussão alcançou o seu maior nível de desenvolvimento – utiliza-se a expressão Drittwirkungcom a finalidade de se referir aos efeitos dos direitos fundamentais perante terceiros. No âmbito jurídico anglo-saxão, em adição ao horizontal effect, introduziu-se a nomenclatura Privatisationofhumanrights[19].

Em seus ensinamentos, LuigiFerrajoli recorda que, depois da Segunda Guerra Mundial, passa-se a refletir acerca dos direitos fundamentais, onde se “descobre ou se redescobre” a sua dimensão objetiva como ponto inicial para uma melhor reflexão acerca da Drittwirkung. Diante disso, o ilustre autor italiano sustenta que se reconhece, portanto, “o valor da Constituição como conjunto de normas substanciais dirigidas a garantir a divisão dos poderes e os direitos fundamentais de todos, ou seja, exatamente os dois princípios que haviam sido negados pelo fascismo e que são a negação deste”[20].

Dessa forma, justamente com a finalidade de desenvolver essa teoria – Drittwirkung der Grundrechte –, em meados do século XX (1950), na Alemanha, HansCarl Nipperdey – Presidente do Tribunal Federal do Trabalho, no período compreendido entre 1954 até 1963 –, publicou o seu célebre ensaio sobre a igualdade salarial da mulher – GleicherLohn der FraufürgleicheLeistung –, abordando pela primeira vez a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, e, nesse caso, em especial, a incidência do princípio da igualdade no âmbito das relações de trabalho, visto que preconizava “igual salário para mulheres de mesma performance”.

Reconhecendo que o perigo não se encontra apenas na esfera pública, mas também no âmbito privado, Peces-Barba Martinez sustenta que “o Poder político não é o único capaz de causar danos às pessoas nos âmbitos protegidos pelos direitos”. Ressalta que “existem poderes sociais, e inclusive outros indivíduos capazes de produzir malefícios e danos dos quais devemos proteger os direitos fundamentais”. Mais adiante, afirma que “a vida, a integridade física, as condições de trabalho, a liberdade de ensino, o direito de reunião e de manifestação à liberdade pessoal, a inviolabilidade do domicílio e das comunicações, não são direitos que devam temer principalmente o Poder político em uma sociedade democrática”[21].

Retomando, há de se mencionar, porém, que a idéia de uma dimensão objetiva dos direitos fundamentais apareceu pela primeira vez na jurisprudência constitucional alemã, no ano de 1958, através da famosa sentença Lüth[22]. Importa mencionar, todavia, que, mesmo antes da sentença Lüth, o Tribunal Supremo Federal e a Magistratura Federal do Trabalho (Bundesarbeitsgericht), já haviam começado a tratar da questão relativa à eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas entre os particulares[23].

Enfatizando a dignidade da pessoa humana, em obra específica acerca dos direitos fundamentais incidentes no âmbito das relações trabalhistas, José João Abrantes sustenta que “hoje, a eficácia dos direitos e liberdades fundamentais nas relações de direito privado é, pois, exigida, por um lado, pela ‘dignidade da pessoa humana’ encarada no quadro do Estado Social de Direito e, por outro, pela nova ‘dimensão objetiva’ atualmente reconhecida àqueles direitos”[24].

Nesse sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, por meio da Opinião Consultiva n° 18, de 17 de setembro de 2003, em consulta realizada pelos Estados Unidos Mexicanos, em seu parágrafo n° 147, dispõe que “a obrigação imposta pelo respeito e garantia dos direitos humanos frente a terceiros se baseia também em que os Estados são os que determinam seu ordenamento jurídico, o qual regula as relações entre particulares e, portanto, o direito privado, pelo que devem também velar para que nessas relações privadas entre terceiros se respeitem os direitos humanos, já que do contrário, o Estado pode resultar responsável pela violação dos direitos”[25].

Diante disso, em face do reconhecimento de que não apenas o Estado figurava como sujeito ameaçador dos direitos e liberdades dos indivíduos, mas percebendo a urgente necessidade de proteção dos direitos fundamentais também nas relações jurídicas entre os particulares – em evidente evolução depois da Segunda Guerra Mundial, com o fim dos regimes totalitaristas, sobretudo na Alemanha –, e, ainda, concebendo uma dimensão objetiva a essa categoria de direitos, a doutrina e a jurisprudência passaram a refletir acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais[26].

Tal como já verificado em item anterior do presente estudo, os poderes públicos estão vinculados de forma positiva e negativa quanto aos direitos fundamentais, uma vez que, em determinado instante, deve se abster de imiscuir na esfera individual de liberdade do cidadão, e, noutro instante, incumbe-lhe a promoção e proteção dos direitos e garantias dos cidadãos[27]. A grande diferença existente entre os poderes públicos e os particulares, no que tange à forma de tratamento, é o fato de que, em relação a estes últimos, há apenas uma vinculação negativa aos direitos fundamentais.

Pode-se concluir, portanto, nos dias de hoje, que já não mais há que se negar a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais – eficácia horizontal –, tendo em vista que, ainda que tenha ocorrido de forma cautelosa, a doutrina e a jurisprudência passaram a reconhecer que estes podem ser vulnerados por atos praticados nas relações jurídico-privadas, pelo que, tal como ocorre nas relações jurídico-públicas, também deve haver a proteção de tais direitos no âmbito das relações privadas. Ademais, some-se a isso o fato de que as normas constitucionais de diversos países – Espanha, Portugal e Brasil –, de forma expressa ou por meio de uma interpretação sistemática, contemplam a obrigação estatal de proteger os direitos fundamentais nas relações mantidas entre particulares. Isso não é nada mais que compreender a realidade dos fatos, e, por conseguinte, a prática de atos visando coibir as lesões dos direitos fundamentais.

Não há, pois, controvérsia quanto à aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre os privados, restando, agora, a verificação da forma da incidência de tais direitos e garantias no âmbito dessas relações – eficácia direta ou indireta –, razão pela qual, essa questão será objeto dos próximos itens do presente estudo.

2.2 Incidência dos direitos fundamentais nas relações de Direito do Trabalho

Inicialmente, pode-se mencionar que, enfrentando poucas controvérsias, a doutrina costuma entender que a questão relativa à Drittwirkung der Grundrechtese amolda, de forma quase natural, no âmbito do contrato de trabalho. Segundo TeresaMoreira, essa ‘naturalidade’ se deve ao fato de que a empresa, enquanto uma estrutura de poder, mostra-se detentora de diversas faculdades de atuação, razão pela qual, possui uma elevada potencialidade de afrontar os direitos fundamentais dos trabalhadores[28].

Sob essa perspectiva, não há como negar a aplicação dos direitos fundamentais no âmbito da empresa, tendo em vista que isso é fato aceito desde as discussões iniciais do texto constitucional. De forma muito precisa, Escribano Gutiérrez afirma que “a Constituição não poderia ficar às portas da fábrica, mas, pelo contrário, haveria de estar presente também nas relações entre empresários e trabalhadores”. Desta maneira, sustenta o ilustre autor, apesar de algumas dúvidas iniciais que foram suscitadas acerca da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, até com certa rapidez, que os tribunais passaram a apresentar posicionamentos favoráveis a essa tese[29].

Adotando esse posicionamento, a Sentença n° 186/2000, de 10 de julho, do Tribunal Constitucional da Espanha, dispõe que “o empresário não fica apoderado para levar a cabo, sob o pretexto das faculdades de vigilância e controle que lhe confere o art. 20.3 LET, intromissões ilegítimas na intimidade de seus empregados nos centros de trabalho”. Ressalta, também, que “os equilíbrios e limitações recíprocas que se derivam para ambas as partes do contrato de trabalho supõem, pelo que agora interessa, que também as faculdades organizativas empresariais se encontram limitadas pelos direitos fundamentais do trabalhador, ficando obrigado o empregador a respeitar aqueles”. Mais adiante, a referida decisão menciona que “a jurisprudência constitucional tem mantido, como não poderia ser de outro modo, que o exercício das faculdades organizativas e disciplinares do empregador não pode servir em nenhum caso para a produção de resultados inconstitucionais, lesivos dos direitos fundamentais do trabalhador, nem à sanção do exercício legítimo de tais direitos por parte daquele”[30].

Costuma-se afirmar, nesse contexto, que os direitos fundamentais também compõem estruturas básicas do Direito do Trabalho, levando-se em conta as características especiais de uma relação jurídica, onde não só a pessoa do trabalhador se encontra comprometida, mas atentando para o fato de que o trabalhador está inserido numa organização alheia e submetido a uma autoridade que, mesmo situada no âmbito privado, não deixa de ser um poder social com relevância jurídica[31].

Aliás, a própria estrutura do contrato de trabalho demonstra necessidade de atuação dos direitos fundamentais no âmbito desse tipo de pacto, tendo em vista que, ao celebrar um pacto dessa natureza, o trabalhador cede ao empregador a sua força de trabalho, pelo que, resta evidente que a relação que se origina não pode deixar de ser qualificada como uma relação de dependência. O próprio objeto do contrato de trabalho – disposição da mão-de-obra de um sujeito em benefício de outro – é o que “torna inevitável todo um conjunto de notáveis limitações à liberdade pessoal do trabalhador”[32].

Não se pode olvidar que as novas tecnologias e os novos modelos de organização da empresa, calcados em princípios de efetividade de produção em face da competitividade, ampliam de forma extraordinária as várias prerrogativas do empregador, gerando uma reinserção do ‘princípio da autoridade’ no desenvolvimento das relações de trabalho[33], razão pela qual, a tutela aos direitos da pessoa do trabalhador, sobretudo os direitos de liberdade, privacidade e dignidade, adquirem uma nova e renovada atualidade.

Nesse sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, por meio da Opinião Consultiva n° 18, de 17 de setembro de 2003, em consulta realizada pelos Estados Unidos Mexicanos, em seu parágrafo n° 140, dispõe que “em uma relação trabalhista regida pelo direito privado, deve-se ter em conta que existe uma obrigação de respeito aos direitos humanos entre particulares. Isto é, da obrigação positiva de assegurar a efetividade dos direitos humanos protegidos, que existe na cabeça dos Estados, derivam-se efeitos em relação a terceiros (‘erga omnes’). Essa obrigação foi desenvolvida pela doutrina jurídica e, particularmente, pela teoria da ‘Drittwirkung’, segundo a qual os direitos fundamentais devem ser respeitados tanto pelos poderes públicos como pelos particulares em relação com outros particulares”[34].

Tratando, ainda, acerca da incidência dos direitos fundamentais no âmbito das relações de trabalho, José João Abrantes sustenta que isso demonstra a “mais marcante manifestação de uma nova concepção dessa relação, caracterizada pela depuração desses seus elementos comunitário-pessoais e em que a qualidade de vida e de trabalho, bem como a realização pessoal do trabalhador, são elementos dominantes”[35].

Na verdade, ocorreu – e ainda está ocorrendo, num processo dinâmico – o fenômeno da constitucionalização do Direito do Trabalho, sendo que o trabalhador deixou de ser considerado exclusivamente como um sujeito que, por meio de um contrato de trabalho – negócio jurídico de natureza privada –, põe à disposição de outra pessoa a sua força de trabalho, mas, com tal ocorrência, houve uma mudança no foco de proteção, passando-se a proteger também o trabalhador-cidadão, reconhecendo-lhe todos os direitos inerentes aos demais cidadãos previstos na Constituição, promovendo a dignidade da pessoa humana no âmbito de uma relação trabalhista.

Ao contrário do que aconteceu na primeira fase da constitucionalização do Direito do Trabalho, onde houve a consagração dos chamados direitos fundamentais específicos dos trabalhadores, atualmente a doutrina caminha noutro sentido, com a finalidade de estabelecer a denominada cidadania na empresa[36], ou seja, com a finalidade de dar ênfase ao que se passou a designar como direitos fundamentais ou laborais inespecíficos[37], consubstanciados naqueles direitos do cidadão de forma geral, exercitado-os na empresa, como trabalhadores, mas, também, e, sobretudo, como cidadãos.

Em síntese, o fenômeno da constitucionalização do Direito do Trabalho, tem por finalidade evitar que o homem-trabalhador seja tratado como mercadoria ou coisa[38], pondo em relevo a pessoa que trabalha, dispensando-lhe o mesmo tratamento constitucional quanto aos demais sujeitos, não como um trabalhador, mas como cidadão[39].

Segundo o entendimento de FernandoValdés, juntamente com os direitos tipicamente trabalhistas – tais como a greve e a liberdade sindical –, vários daqueles direitos descritos na Constituição podem ser denominados como “direitos fundamentais da pessoa do trabalhador”, sendo que, mesmo possuindo um alcance geral, encontram as relações de trabalho como um fértil terreno para uma especial aplicação[40]. Nessa mesma esteira, referindo-se à mesma categoria de direitos, VicentePachés afirma que “são direitos inerentes à pessoa humana cujo reconhecimento e exercício se pode produzir tanto no desenvolvimento estritamente privado do indivíduo, como quando esteja inserido no âmbito de uma relação de direito do trabalho”[41].

Também quanto a esse tema, é importante relembrar a lição de Isaiah Berlin, no sentido de que no seio de um Estado Social de Direito, a evolução e o desenvolvimento dos direitos fundamentais deve ser orientado para fins de garantiada liberdade, como um poder de autodeterminação em todos os âmbitos da vida social. Há de deixar de considerar o homem in abstrato – aquele situado fora do contexto social em que vive –, passando a considerá-lo in concreto, ou seja, em suas diversas vertentes, e, ainda, situados em determinados cenários da realidade em que vive[42].

Em sua precisa abordagem acerca do tema, José João Abrantes ressalta que, quanto se trata dos direitos fundamentais dos trabalhadores, não mais se está no terreno meramente contratual, mas no plano da pessoa, existente em cada trabalhador, tendo em vista que, em verdade, a celebração de um contrato de trabalho não resulta na cessão ou privação de direitos dos trabalhadores assegurados na Constituição. Finalizando a sua análise, afirma que, “na empresa, o trabalhador mantém, em princípio, todos os direitos de que são titulares todas as outras pessoas”[43].

Exatamente no caminho da doutrina acima mencionada, a Sentença n° 088/1985, de 19 de julho, do Tribunal Constitucional da Espanha, dispõe que “a celebração de um contrato de trabalho não implica em modo algum na privação para uma das partes – o trabalhador – dos direitos que a Constituição lhe reconhece como cidadão, entre outros o direito a expressar e difundir livremente os pensamentos, idéias e opiniões, e cuja proteção fica garantida perante eventuais lesões mediante o impulso dos oportunos meios de reparação, que no âmbito das relações laborais se instrumenta, nesse momento, através do processo do trabalho”. Prosseguindo na sustentação desta tese, arremata salientando que “nem as organizações empresariais não formam mundos separados e estanques do resto da sociedade nem a liberdade de Empresa que estabelece o art. 38 do texto constitucional legitima que aqueles que prestam serviços naquelas por conta e sob a dependência de seus titulares devam suportar despojos transitórios ou limitações injustificadas de seus direitos fundamentais e liberdades públicas, que tem um valor central e nuclear no sistema jurídico constitucional”[44].

Note-se, portanto, que as relações de trabalho se mostram, com toda certeza, como um dos campos das relações jurídico-privadas nas quais os direitos fundamentais estão mais suscetíveis de alcançar uma maior relevância, e, por conseguinte, maior vulnerabilidade. Isso decorre da própria natureza do trabalho assalariado, onde a pessoa do trabalhador envida os seus esforços para a realização de uma atividade em proveito alheio. Essa relação jurídica, de forma quase inquestionável, em face da situação de sujeição de uma das partes em relação à outra, pressupõe maiores riscos que em outras relações entre sujeitos privados, no que tange aos direitos do trabalhador, tanto como pessoa como na qualidade de cidadão[45].

Tal como ocorre nas relações jurídicas mantidas com os poderes públicos, os particulares também não podem afrontar os direitos fundamentais. A liberdade e a dignidade dos indivíduos são bens intangíveis, sendo certo que a autonomia da vontade somente poderá atuar até aquele lugar em que não haja ofensas ao conteúdo mínimo essencial desses direitos e liberdades. E isso não é diferente no âmbito de uma relação trabalhista.

2.3 Eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais nas relações trabalhistas

Em relação à questão que ora se apresenta, depois de verificada a grande aceitação doutrinária e jurisprudencial da teoria da Drittwirkung der Grundrechte, consiste na análise acerca da forma pela qual deverá ocorrer a eficácia dos direitos fundamentais nas relações trabalhistas – aplicaçãoindireta ou mediata, ou incidência de forma direta ou imediata –, e, além disso, convém verificar quais são os motivos justificadores desta forma de incidência das normas Constitucionais.

A determinação do efetivo alcance aos direitos fundamentais no âmbito das relações trabalhistas requer, sem qualquer dúvida, uma verificação acerca de uma questão prévia. Segundo as palavras de Molina Navarrete e Olarte Encabo, depois de aceita por imperativo de ordem constitucional a vigência dos direitos constitucionais no campo privado, há de se responder a seguinte indagação: “são igualmente e plenamente efetivos, de forma direta e automática, os direitos fundamentais nas relações entre particulares, ou seja, nas relações jurídico-privadas?”[46]

Tal como acontece nos demais campos das relações jurídico-privadas, a maioria da doutrina entende pela aplicação direta ou imediata dos direitos fundamentais no âmbito das relações trabalhistas, tendo em vista que, apenas e somente desta maneira, seria possível a efetiva proteção dos direitos e liberdades públicas dos trabalhadores, no contexto da dinâmica relação trabalhista. Importa mencionar que tal posicionamento também encontra os seus ecos no âmbito da jurisprudência.

Tratando da questão relativa à eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais, o Supremo Tribunal Federal do Brasil julgou o Recurso Extraordinário n° 161.243/DF, de 29 de dezembro de 1996, onde determinou a incidência do princípio da igualdade nas relações trabalhistas. A referida decisão era pertinente a processo onde trabalhador brasileiro – empregado numa companhia aérea em território francês – pleiteava direitos trabalhistas previstos em regulamentos da empresa, mas, o referido instrumento, somente concedia tais direitos aos trabalhadores de nacionalidade francesa. A empresa, portanto, havia estabelecido um critério diferenciador dos destinatários e beneficiados pelos direitos, qual seja, a nacionalidade do indivíduo, em que pese os trabalhadores de ambas as nacionalidades prestassem serviços semelhantes.

O Ministro relator do referido processo – Recurso Extraordinário n° 161.243/DF –, reconheceu que existia a possibilidade de tratamento desigual entre os trabalhadores, desde que também existisse um fundamento para tal espécie de tratamento, mas, não naquele caso. Citando a lição de Bandeira de Mello, afirmou que, “em síntese, no caso, o elemento usado para desigualar e simplesmente singularizador do destinatário; acresce que não há conexão lógica e racional que justifique o tratamento diferenciado, e, ademais, não me parece ocorrer, no tratamento diferenciado, afinidade com o sistema normativo vigente”. Por fim, concluiu no sentido de que “porque não ocorrentes os fatores que justificariam o tratamento diferenciado, tem-se que iguais foram tratados desigualmente, o que é ofensivo ao princípio isonômico que a Constituição consagra e que é inerente ao regime democrático e à República”[47].

A intangibilidade do conteúdo essencial dos direitos fundamentais dos trabalhadores, bem como a flagrante desigualdade existente entre os sujeitos envolvidos nas relações trabalhistas – empregados e empregadores –, em face da grande concentração de poder nas mãos do empresário no seio destas relações, podem ser considerados como motivos justificadores para a aplicação da eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais no âmbito do contrato de trabalho[48].

Em sua obra acerca da intimidade privada do trabalhador, ressalta Vicente Pachés que a Drittwirkung jamais passa despercebida no campo das relações trabalhistas, tendo em vista que a empresa, enquanto estrutura de poder, atribui um grande complexo de faculdades de atuação ao empregador, sendo que, “por seu próprio conteúdo e significado, apresenta uma especial potencialidade lesiva para o exercício real e efetivo dos direitos fundamentais dos trabalhadores”. Afirma, ainda, que esse potencial lesivo tem a sua gênese na flagrante desigualdade existente entre trabalhadores e empregadores[49].

Tratando justamente sobre a desigualdade das partes, e, ainda, abordando acerca da obrigação que tem o Estado de garantir os direitos fundamentais, inclusive no âmbito das relações trabalhistas, a Sentença n° 129/1989, de 17 de julho, do Tribunal Constitucional da Espanha, dispõe que “esta garantia por parte dos poderes públicos, e em particular por parte do legislador, da vigência dos direitos fundamentais pode resultar singularmente presente no âmbito laboral, onde há desigual distribuição do poder social entre trabalhador e empresário, e a distinta posição que estes ocupam nas relações laborais, eleva em certo modo o risco de eventuais menoscabos dos direitos fundamentais do trabalhador”[50].

De igual sorte, percebe-se a preocupação com a situação de inferioridade do trabalhador perante o empregador, reconhecendo a evidente situação de desequilíbrio entre estes sujeitos. Segundo TeresaMoreira, mesmo tratando da questão no âmbito jurídico de Portugal, mas ressaltando que isso é ponto comum no ordenamento jurídico de diversos outros países, não se pode negar que a inferioridade substancial dos empregados diante dos empregadores, faz com que estes “fiquem vinculados às normas constitucionais que reconhecem estes direitos, isto é, aos direitos, liberdades e garantias não só da pessoa enquanto trabalhador, mas também do trabalhador enquanto pessoa, ou seja, aos direitos, liberdades e garantias atribuídos a todos os cidadãos”[51].

Neste contexto, por mais que alguns segmentos doutrinários tentem trilhar caminho diverso, importa mencionar que o direito não mais tem como ignorar o fenômeno dos poderes privados, mas, ao contrário disso, deve combater essa realidade e dar uma resposta adequada, sendo que não se concebe a vida da adesão incondicional ao dogma da autonomia privada. Longe de servir para o desenvolvimento da liberdade, esta – autonomia privada – tem garantido a imunidade destes poderes dentro de uma sociedade na qual aparecem cada vez mais difusas as fronteiras entre o público e o privado[52].

É interessante ressaltar que, mesmo estando o contrato de trabalho inserido no contexto das relações jurídicas de natureza privada, e, por conseguinte, observando as normas e princípios inerentes ao direito privado, inclusive a autonomia da vontade, na verdade não pode haver a pactuação de cláusulas que possa ensejar afrontas aos direitos e liberdades públicas dos trabalhadores, pelo que, tais cláusulas serão nulas, não produzindo efeitos na relação jurídico-trabalhista[53].

Tal como ocorre nas relações jurídicas mantidas com os poderes públicos, os particulares também não podem afrontar os direitos fundamentais. A liberdade e a dignidade dos indivíduos são bens intangíveis, sendo certo que a autonomia da vontade somente poderá atuar até aquele lugar em que não haja ofensas ao conteúdo mínimo essencial destes direitos e liberdades. E isso não será diferente no âmbito de uma relação trabalhista.

Em obra específica acerca do tema, Teresa Moreira afirma que “a relação estabelecida entre os trabalhadores e empregadores é um dos exemplos mais claros de uma situação de poder real de um dos sujeitos contratuais sobre o outro e, por este fato, a vinculação das entidades privadas prevalece sobre a autonomia privada”. Prosseguindo, ressalta que “não se pode admitir que os poderes atribuídos ao empregador não estejam sujeitos à referência dos preceitos constitucionais”[54].

Há de se mencionar, entretanto, que, até mesmo para aquela corrente doutrinária que entende pela aplicação mediata ou indireta dos direitos fundamentais em relação às entidades privadas, torna-se freqüente o reconhecimento no sentido de que, no campo das relações jurídico-privadas, onde existe uma clara situação de desigualdade das partes – tal como ocorre na relação mantida entre empregado e empregador –, deve-se abrir uma exceção, promovendo à aplicação de forma imediata ou direta dos direitos, liberdades e garantias previstas na Constituição[55].

Percebe-se, portanto, que somente por meio da aplicação direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações trabalhistas será possível a efetiva proteção aos direitos e liberdades públicas dos trabalhadores, em face do dinamismo destas vinculações. Essa conclusão pode ser atribuída à intangibilidade do conteúdo essencial dos direitos fundamentais dos trabalhadores, e, ainda, diante da flagrante desigualdade que ocorre entre os envolvidos – empregados e empregadores – nas relações de trabalho. Pode-se mencionar, por fim, que o empregador, em decorrência desta relação jurídica, é detentor de direitos e faculdades que, exercidos de forma inadequada, mostram-se como potenciais fatores de afrontas e violações à liberdade, privacidade e dignidade dos trabalhadores.

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Sobre o autor
Júlio Ricardo de Paula Amaral

juiz do trabalho em Londrina e doutorando em Direito Social pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Júlio Ricardo Paula. Os direitos fundamentais e a constitucionalização do Direito do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3279, 23 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22068. Acesso em: 20 abr. 2024.

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