Muito se fala, nos dias de hoje, das “funções essenciais à Justiça”, expressão muitas vezes empregada, e de forma correta, diga-se, para defender a necessidade de que os órgãos e agentes que exercem referidas funções sejam dotados do mesmo nível de estrutura, prerrogativas e remuneração. Olvida-se, contudo, do verdadeiro significado e da importância política, jurídica e histórica da consagração constitucional das tais “funções essenciais à Justiça”.
Da mesma forma que o movimento constitucionalista surgiu na Europa em contraposição ao poder absoluto das monarquias, o momento constituinte brasileiro de 1988 foi um revés ao regime autoritário inaugurado em 1964. Buscava-se, em essência, guardadas as devidas proporções e peculiaridades históricas, a efetiva submissão dos governantes às leis.
O movimento constituinte de 1988, aproveitando, evidentemente, todo o amadurecimento por que passou o constitucionalismo no mundo inteiro, inclusive no Brasil, teve a virtude de inaugurar mais do que um Estado Democrático de Direito, e instaurou, em nosso país, um verdadeiro Estado de Justiça, alicerçado nos instrumentos de participação política da sociedade assegurados na Constituição e nas funções essenciais à Justiça.
Nas palavras de Moreira Neto, no Estado de Justiça “busca-se a plena realização da justiça, não apenas aquela estritamente referida à atuação do Poder Judiciário, mas a que é estendida à ação de todos os poderes do Estado e entendida como a suma de todos os valores éticos que possibilitam e dignificam a convivência em sociedade: a licitude, a legitimidade e a legalidade.”
Essa é uma das premissas sobre as quais pretendemos desenvolver o nosso raciocínio: a realização da Justiça não depende apenas do Poder Judiciário, e tampouco é monopólio desse órgão estatal.
Exsurge, neste passo, o papel constitucional das funções essenciais à Justiça: assegurar que as ações estatais sejam pautadas pela licitude, legitimidade e legalidade, e equilibrar as relações entre cidadão/sociedade e o Estado, inclusive quando essas relações forem submetidas ao crivo jurisdicional.
Eis aqui outra premissa: a Advocacia Pública, enquanto função essencial à Justiça, tem uma vocação que vai muito além da simples defesa dos interesses tutelados pelos órgãos estatais, não importando, nessa quadra, a contraposição entre Advocacia de Estado e Advocacia de Governo.
Fundamental, ainda, termos a devida compreensão acerca de um dos princípios basilares do Direito Público, o da supremacia do interesse público sobre o particular, que não pode ser reduzido ao dogma de se fazer prevalecer sempre o interesse tutelado pela Administração Pública em detrimento de direitos “meramente” individuais. Não raras vezes, o interesse verdadeiramente público residirá justamente em se reconhecer e fazer valer um direito/interesse individual. A Advocacia Pública é, ou pelo menos deveria ser, antes até do que o Poder Judiciário, fiadora do fiel cumprimento desse princípio.
Pois bem. Nesse contexto, é, pois, evidente a importância de que a defesa judicial dos entes públicos seja exercida por órgãos e agentes bem estruturados, qualificados e remunerados. A preservação desse Estado de Justiça depende do equilíbrio de “forças” entre todos os atores. E nesse ponto o serviço prestado pela Advocacia-Geral da União ao Estado Brasileiro tem, a cada dia, crescido em qualidade, revelando-se, em muitos lugares e instâncias, um órgão jurídico de excelência, mesmo à míngua de estrutura, prerrogativas e remuneração adequadas.
Acontece que o Estado de Justiça reservou muito mais à AGU, e aqui sobressai, indubitavelmente, a complexidade e singeleza da atividade e funcionamento desse órgão estatal. Espera-seque a AGU seja um órgão articulado e empenhado em prol da prevenção e redução de litígios judiciais, a fim de assegurar, sempre que possível, a estabilidade e segurança jurídicas, independentemente de se ter que percorrer as diversas instâncias do Poder Judiciário.
Deve a AGU, nessa linha de raciocínio, a nosso ver, empenhar-se mais em produzir internamente decisões e orientações jurídicas a fim de se antecipar à judicialização de certas questões, assumindo, assim, a responsabilidade pela realização da Justiça, ou, quando não for esse o caso ou não se fizer possível, abreviar o desnecessário prolongamento e proliferação de demandas judiciais.
Para tanto, precisa quebrar certos paradigmas, e assumir verdadeiramente o dever de buscar, por si só, a efetivação da Justiça, independentemente de ter que sujeitar cidadãos e a própria Administração Pública, como já dito, àcoercitividade jurisdicional. Necessita, ainda, aparelhar-se de mecanismos mais dinâmicos e eficientes de elaboração de orientações e comunicação interna e externa.
É perceptível o avanço dos últimos anos, evidenciado pelo aumento exponencial do número de acordos judiciais celebrados pelas unidades da AGU, pelo notório resultado de projetos importantes de desistência de recursos e pela atividade de órgãos incumbidos de dirimir controvérsias, judicializadas ou não, entre entes públicos.
No entanto, é muito tímido, ainda, o número de súmulas administrativas, o número de pareceres que resolvam questões de larga repercussão social, bem como a própria atividade conciliatória se comparada ao enorme volume de ações judiciais em trâmite envolvendo a União e suas autarquias.
Basta notar que a revolucionária iniciativa de instalação da Câmara de Conciliação e Arbitragem Federal não foi devidamente incrementada e aprimorada, já que poderia ser mais abrangente e dirimir conflitos não apenas entre entes públicos, mas também entre o cidadão e a Administração.
É curioso ver que um projeto extremamente exitoso de desistência de recursos,executado por meia dúzia de valorosos Procuradores Federais, que, embora restrito a uma matéria específica e a um único Tribunal, já rendeu, em menos de um ano, a abreviação de cerca de 2.000 processos judiciais, simplesmente não seja ampliado para outras instâncias e temas.
O próprio disciplinamentoda não-interposição de recursos ou do reconhecimento de pedidos ainda é extremamente burocrático e atrelado a um moroso, estático e defasado sistema de edição de súmulas, quando o próprio sistema processual civil já associa a própria admissibilidade dos recursos a critérios de utilidade dos mesmos, à luz de mecanismos, cada vez mais difundidos, de pacificação da jurisprudência.
Todas essas iniciativas, a nosso ver, se aprimoradas e implementadas de forma ampla, conduziriam a AGU a um processo de irreversível inserção social, aumento de sua credibilidade junto ao Judiciário e racionalização de suas atividades.
Essa realidade evidencia, portanto, que é chegada a hora de a AGU assumir definitivamente o papel que lhe foi conferido pela Constituição Federal na estrutura do Estado, revelando-se, na dicção constitucional, uma função estatal essencialmente vocacionada à realização da Justiça.