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Origem da noção de contrato administrativo

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07/07/2012 às 16:31
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A teoria do contrato administrativo edifica-se sobre os elementos jurídico-estruturais herdados da teoria geral e do pensamento civilista francês do início do século XX.

Os contratos administrativos constituem tema medular do Direito Administrativo e, haja vista a substância polêmica que eles encerram, também um dos capítulos mais instigantes dessa área do Direito[1].

Maria João Estorninho salienta que o tema se assemelha a um velho sótão, “o terreno propício a descobertas inesperadas e onde, sob a aparente quietude, tudo continua em desordem, não se compadecendo com meros momentos de arejamento periódico”.[2]

Juan Carlos Cassagne, por sua vez, credita o tema como aquele que, dentre as instituições do Direito Administrativo, alcançou maior desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial, e, por isso, ocupa um lugar de destaque.[3]

Isto posto, acrescente-se que as transformações sócio-políticas, ao tempo em que afetam os vínculos entre Estado e sociedade, propiciaram e continuam a propiciar mudança de conteúdo e de forma no Direito Administrativo. Atualmente, com traços de influência negocial ou contratual e não mais em uma roupagem puramente autoritária[4], o Direito Administrativo, sobre o tema dos contratos, guarda, ainda, resquícios de uma visão liberal clássica, que não mais responde às necessidades atuais, merecendo a teoria do contrato uma nova roupagem.

A fim de situar o escopo do presente trabalho, em que pese ter citado, no parágrafo anterior, discussão hodierna acerca dos contratos administrativos, esta discussão não será o objetivo presente. Ao contrário, se quer visitar o sótão, ou seja, as origens da noção de contrato administrativo, o que influenciou a construção desse instituto no ordenamento jurídico brasileiro.

Recorrendo ao dicionário, apreende-se que a palavra origem guarda relação com a causa primeira determinante, com o princípio, primórdio, fonte, motivo, pretexto. Adiante, buscar-se-á reconhecer não uma, mas algumas explicações para a origem dos contratos administrativos e, em momentos históricos distintos, desnudar pretextos ou motivos que levaram à construção teorética desse instituto. Em verdade, nosso objetivo, alinha-se e ganha importância à medida em que, conforme preceitua Enzo Roppo, o contrato é um conceito jurídico que não pode ser entendido na sua essência íntima se nos limitarmos a considerá-lo numa dimensão exclusivamente jurídica, sendo necessário tomar, em atenta consideração, a realidade econômico-social que lhe subjaz.[5]

Para melhor situar o objeto de estudo, vale citar pelo menos uma ideia do que vem a ser contrato, sem adentrar, contudo, nas diversas discussões que ele encerra. A própria noção de contrato afeta conceituar o contrato administrativo, na medida em que este possui um regime exorbitante daquele, pertencente ao Direito Privado. Para Lorenzetti, contrato é conceito normativo e, sob uma acepção voluntarista, “é substancialmente constituído pela vontade, à que se adicionam efeitos”; seria o produto da autonomia das partes, o acordo sobre uma declaração de vontades comum, destinada a regulamentar seus direitos.[6] Em Duguit, contrato tem sentido estrito, caracterizado pela presença de interesses contrapostos das partes, gerando a situação de credor e devedor, excluídos os casos em que a pluralidade de declarações de vontades tenha um mesmo objeto e volte-se a uma mesma finalidade[7].

Relativamente ao contrato dito administrativo, é preciso destacar, de primeiro, inexistir um conceito sócio-jurídico universal, razão pela qual se prefere discutir aqui uma noção de contrato administrativo, como peculiar solução teórica, compreensível à luz de determinado direito positivo, voltada a explicar a relação entre o Estado e pessoas privadas para uma colaboração consentida, visando ao desempenho das funções estatais.[8]

Trata-se, em verdade, de uma noção que se insere na própria dinâmica do Direito Administrativo, na distinção entre os direitos Público e Privado, oscilando à medida dos sucessivos movimentos de aproximação entre esses ramos do Direito, acompanhando o modo de ser político, social e econômico do Estado.[9]

“(...) o público sendo associado ao Estado e seus agentes, à defesa do interesse público e a um modo de agir imperativo e unilateral típico do poder soberano; e o privado, aos indivíduos, ao regramento dos interesses privados e a um modo de agir consensual e bi (ou pluri) lateral típico de sujeitos em pé de igualdade.”[10]

Na mesma linha, Cassagne afirma que a concepção finalística do contrato administrativo, não obstante a estabilidade de seus princípios fundamentais, participa da dinâmica que é própria do Direito Administrativo e que o torna em alguns temas mutável, com uma textura aberta às necessidades sociais e econômicas, ou seja, aos fins do Estado.[11]

Apenas para balizar as questões que serão expostas, parece útil revelar elementos do contrato administrativo aceitos pela doutrina brasileira e que compõem a noção cuja origem se buscará desvendar – pelo menos uma das partes é pessoa jurídica de Direito Público; o objeto refira-se ao desempenho de um serviço público; contenha conteúdo exorbitante/derrogatório do Direito comum; e espécie do gênero contratos da Administração, com regime jurídico de Direito Público.[12] Partindo desses elementos, Celso Antonio Bandeira de Mello situa a noção de contrato administrativo como

“(...) tipo de avença travada entre a Administração e terceiros na qual, por força de lei, de cláusulas pactuadas ou do tipo de objeto, a permanência do vínculo e as condições preestabelecidas assujeitam-se a cambiáveis imposições de interesse público, ressalvados os interesses patrimoniais do contratantes privado”.[13]

Em termos históricos, a noção de contrato administrativo está ligada à atribuição da “competência para conhecer do respectivo contencioso aos tribunais administrativos”[14], de sorte que há uma relação acentuada “entre o aspecto processual da autonomização da jurisdição administrativa e o aspecto substancial da criação das normas de Direito Administrativo”[15]. Neste diapasão, duas visões acerca da evolução da noção serão delineadas, uma defendida por Maria João Estorninho e outra por Fernando Dias Menezes de Almeida.

Maria João Estorninho sustenta que, historicamente, o contrato administrativo não resultou de qualquer fatalidade, mas antes de um acaso, fruto de uma interpretação do princípio da separação dos poderes e da repartição de competência jurisdicional, de forma que se verificou primeiro a autonomização processual de certos contratos da Administração e, só num segundo momento, teve início a substantivização da figura do contrato administrativo. Segundo ela, a teoria clássica do contrato administrativo incorre em erro quando transpõe para o plano cronológico aquela que é, em termos clássicos, a ideia central da teoria do ato administrativo – ou seja, de que é diferente dos contratos dos particulares e que, por isso, está sujeito não só a um regime jurídico especial, mas também à jurisdição administrativa. No caso dos contratos administrativos, para a autora, a sequência cronológica real parece ter sido da autonomização processual para a autonomização substantiva.[16]

Vale dizer que também Marcelo Caetano endossa essa tese, ao firmar que em “termos históricos o que interessou para determinar o conceito de contrato administrativo foi a atribuição da competência para conhecer do respectivo contencioso aos tribunais administrativos”.[17]

A autora ainda recorre ao francês Jean Rivero, para quem, assim como na origem do Direito Administrativo, existe laço acentuado entre o aspecto processual da autonomização da jurisdição administrativa e o aspecto substancial da criação das normas de Direito Administrativo.[18] Por conseguinte, ela questiona como algo aceito para se tratar a evolução do Direito Administrativo não o é para os contratos administrativos.

Estorninho divide em três fases a evolução da teoria clássica da atividade contratual da Administração. Na primeira, simplesmente se passou da jurisdição comum à jurisdição administrativa os conflitos resultantes dos contratos da Administração, conforme se depreende da atuação das câmaras jurisdicionais francesas até o final do século XVIII.

Todavia, tal divisão de competências gerou questionamentos frente à concepção de separação dos poderes. De sorte que, a partir de meados do século XIX, inicia-se processo no sentido inverso, com vistas a restituir ao foro civil os conflitos em que a Administração é parte, a fim de proteger o indivíduo frente à Administração, o que marca o início da segunda fase.[19]

Justamente aí começa o problema da delimitação da competência jurisprudencial, de sorte que se abandona o critério orgânico, passando-se à aplicação de regime administrativo dependente da natureza material das atividades em causa. Estorninho explica que o primeiro critério utilizado foi a diferença entre atos de gestão, dentre os quais se incluem os contratos administrativos, aos quais se aplicaria o Direito Privado, e os atos de autoridade, relativos ao Direito Público.[20]

Contudo, embora o contencioso dos contratos da Administração coubesse aos tribunais comuns, a título de exceção, tal não acontecia, porque os contratos que visavam obras a executar no interesse público eram levados à jurisdição administrativa, posto ser esta mais expedita, menos onerosa e mais próxima dos interesses da própria Administração. No fundo, aplicava-se a lógica da teoria dos atos de gestão e de autoridade, temperada, no entanto, por uma exceção.[21]. Ela salienta que justamente para interpretar de forma restritiva aquilo que se considerava uma subtração à competência natural dos tribunais comuns, aparece, pela primeira vez, a distinção entre os contratos privados da Administração e os contratos administrativos. Esta dicotomia se inicia, portanto, no plano processual, destituída de qualquer relevância ao nível material ou substantivo.[22] Dessa forma, para a autora, somente recentemente se verificou momento em que a doutrina, partindo de uma base puramente empírica e processual, iniciou a substantivização jurídico-material da figura do contrato administrativo, que coincidiu, inclusive, com a substituição do critério dos atos de autoridade e de gestão, pelo do serviço público, marcando início a uma nova fase.

Assim, tudo o que diz respeito à organização e funcionamento dos serviços públicos é atuação administrativa, sujeita não apenas ao Direito Administrativo, mas também à jurisdição administrativa. Assim, é forçoso indicar a existência de contratos da Administração, aqueles que são concluídos devido à organização e ao funcionamento dos serviços públicos e aqueles que, não tendo qualquer relação com um serviço público, permanecem contratos de Direito Privado.

A esta altura, vale retomar trecho da autora que nos indica

“Foi assim que, a partir da dualidade de jurisdições resultante de um mero ‘acaso histórico’, a doutrina se convenceu da existência de uma distinção - quantas vezes artificial e arbitrária - entre duas modalidades de contratos da Administração. Nesse preciso momento, iniciou-se um processo ‘lento e penoso’ no qual, ao longo de perto de cem anos, a teoria do contrato administrativo tem procurado encontrar o ‘critério mágico’ que permita, de forma inequívoca, distinguir os contratos administrativos dos contratos privados da Administração.”[23]

Ao contrário de Estorninho, para Fernando Menezes de Almeida a noção de contrato administrativo tem por termo inicial a consolidação do Estado de Direito contemporâneo. Isto porque, já em meados século XIX, aceitava-se com naturalidade que entidades estatais celebrassem contratos para: a) suprir suas necessidades de bens e serviços; b) valerem-se da colaboração de particulares no desempenho de suas funções; e, c) para relacionar-se com outros entes estatais.[24]

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Por exemplo, o espanhol D. Manuel Colmeiro, em obra de 1865, já aludia que

“(...) a delegação de faculdades próprias da Administração em favor de particulares se faz por meio de contratos; submetidos não a um regime especial de ‘Direito Público’, mas a regras de equidade e prudência; a associação dos interesses do Estado e dos empresários deveria ser buscada por uma questão também de justiça e por pragmatismo para que no futuro essas necessidades possam ser por esse mesmo modo satisfeitas; o reconhecimento de que a busca do bem geral pelo governo deve dar-se não apenas com economia, ou seja, intenção de proteção do patrimônio público a qualquer custo, mas também com justiça, isto é, com respeito ao interesse do particular contratante; e, por fim, a reiteração de que o cumprimento, por parte do governo, de seus compromissos é importante elemento para assegurar a confiança aos aliados (...) tanto em momentos de prosperidade, como de adversidade.[25]

Ainda, na França do final do século XIX, autores como o Barão de Gérando, Henri Berthélemy, Maurice Hariou, Roger Bonnard e Louis Rolland, mesmo que sem utilizar a expressão contrato administrativo, têm obras dedicadas aos meios de aprovisionamento e de fornecimento para os diversos serviços públicos e, embora se não possa falar da existência de uma teoria específica, para Menezes de Almeida, já existia detalhamento de aspectos concretos da formalização e execução dos contratos administrativos, enfatizada, de resto, sua submissão à jurisdição administrativa.[26]

Esse autor destaca, por conseguinte, que, no início do XX, se passa a fazer distinção teórica dos contratos, com tendência de se aceitar pacificamente a natureza contratual das relações que envolviam suprir as necessidades de bens e serviços do Estado, ocasião em que se aplicam as mesmas regras do dos contratos de Direito Privado, bem como quando o Estado necessitava relacionar-se com outros entes estatais, quando eram aplicadas regras de Direito Público. A evolução da teoria do contrato administrativo, como algo distinto do contrato de Direito Privado, adveio do tratamento dos casos em que o Estado necessitava valer-se da colaboração de particulares no desempenho de suas funções.[27]

“(...) porém, quando o objeto em questão não era o suprimento das necessidades do Estado de bens ou serviços, mas sim o desempenho das funções estatais, ou ainda o suprimento das necessidades do Estado por bens e serviços de modo estreitamente ligado ao desempenho das funções estatais, aqui o objeto de eventual relação entre as entidades estatais e pessoas privadas tomava-se essencialmente diverso do objeto encontrado em relações privadas, por se tratar de funções, por definição, próprias do Estado. Neste caso, alguns países, notadamente a França, aplicavam uma teoria específica de Direito Público - a teoria do contrato administrativo - para explicar tal fenômeno como algo diverso do fenômeno contratual privado; esta teoria não era aceita em alguns outros Direitos, como é o caso do alemão e do inglês.”[28]

Do relato das duas visões não nos interessa apontar a mais convincente. Ao contrário, se quer pontuar, conforme preceitua Carlos Roberto Pellegrino, que o século XX consagrou o contrato administrativo como concernente à organização e ao funcionamento do serviço público, “de modo que o nexo existente entre contrato administrativo e o regime derrogatório do Direito Civil se afirmava em face da participação no serviço público”.[29]

Destaque-se, a esta altura, a concordância da doutrina de que foi na França que se desenvolveu a teoria do contrato administrativo, fortemente influenciada nos arestos do Conselho de Estado.

Celso Antonio situa a importância desse estudo ao afirmar que “a doutrina brasileira, praticamente unânime e sem oposição jurisprudencial, denomina contrato administrativo à figura cujos traços foram bosquejados, reconhecendo-lhes as mesmas características que lhe são imputadas no Direito francês”.[30] O mesmo autor sustenta, ainda, que o Conselho de Estado, na França, deparou-se com dois problemas, a saber: a) a que regime pertencem os contratos administrativos; e, b) quanto um contrato é submisso a esse regime. Em relação ao primeiro, ele argui não ser difícil perceber que o regime do contrato administrativo gira em torno da supremacia de uma das partes, de onde procede a relevância do interesse público sobre os interesses particulares. Quanto ao segundo, seriam contratos administrativos aqueles que recebessem tal qualificação por lei; tivessem por objeto a própria execução de um serviço público; e, contivessem cláusulas exorbitantes, tidas como requisitos do contrato administrativo para parte da doutrina francesa.[31]

Antes de adentrarmos a caracterização da noção de contrato administrativo pela doutrina francesa vale retomar Menezes de Almeida que apresenta breve compilação de acórdãos do Conselho de Estado que balizaram a para a construção teórica do instituto que nos interessa.

§                  Em 10.1.1902, o Arrêt Compagnie nouvelle du gaz de Deville-lès-Rouen, relativo ao privilégio da companhia de gás de fornecer a iluminação, fixa a ideia da adaptação do serviço face às necessidades sociais e reconhece o poder de modificação unilateral do contrato pela Administração, constituindo-se insumo para a para a formulação teórica da mutabilidade do contrato administrativo.[32]

§                  Em 6.2.1903, o Arrêt Terrier e, em 4.3.1910, o Arrêt Thérond abordam princípio básico de que “tudo o que concerne à organização e ao funcionamento dos serviços públicos propriamente ditos, constitui uma operação que é, por sua natureza, de domínio da jurisdição administrativa”.[33]

§                  Em 31.7.1912, por meio do Arrêt Societé des granits porphyroïdes des Vosges, afeto ao atraso na entrega de serviço de pavimentação, no Município de Lille, o Conselho de Estado afirmou ser incompetente para o tratamento da matéria, pois mesmo se tratando de contrato no interesse do serviço público, distingui-se por sua forma e contextura, aplicando-se o regime privado, uma vez que inexistiam cláusulas exorbitantes, características do regime. Como se verá adiante, anos mais tarde, este argumento não mais será invocado pelo Conselho.

§                  Em 20.4.1956, o Arrêt Expoux Bertin altera o estado da arte e fixa entendimento de que “a ausência das cláusulas exorbitantes não afasta o caráter eminentemente público do objeto”, que deve ser conhecido pelo contencioso administrativo.

§                  Em 11.3.1910, o Arrêt Compagnie Générale Française de Tramways, estabelece a noção de “equilíbrio econômico-financeiro” do contrato e afirma que a mutabilidade pode chegar mesmo à rescisão, para adaptar-se às necessidades do serviço.[34]

Disso resulta, em verdade, que das decisões do Conselho de Estado edificou-se uma teoria que reconhece regime especial aos contratos administrativos, mas coube a Gaston Jèze desenvolvê-la.[35] Georges Vedel e Pierre Devolvé afirmam que Jéze[36] permanece o pai da teoria dos contratos administrativos. Laurent Richer salienta que se deve à Jèze a primeira grande síntese doutrinária sobre os contratos administrativos, a partir da concepção do Conselho de Estado.[37]

A Sistematização por Jèze

Para desvendar as principais ideias de Jèze acerca dos contratos administrativos, partir-se-á da noção por ele criada, segundo a qual contrato administrativo é “um procedimento de técnica jurídica posto à disposição dos agentes públicos para assegurar o funcionamento regular e contínuo dos serviços públicos, (...) unicamente para se atender a um fim de interesse público”.[38] A partir dessa noção, ele afirma que os contratos administrativos guardam quatro elementos essenciais do contrato como operação jurídica, a saber: a) são acordo de vontades; b) são acordos bilaterais de vontades; c) visam criar uma situação jurídica; e, d) a situação jurídica criada é individual e não geral.

Jèze esclarece, por conseguinte, que nem todo acordo de vontades é um contrato, a exemplo das leis e da deliberação de um conselho.[39]

O autor destaca duas grandes categorias de contratos concluídos pela Administração: os contratos celebrados em vista de se assegurar o funcionamento de um serviço público e submetidos a regras especiais – ao regime jurídico de Direito Público, onde se incluem os contratos administrativos propriamente ditos, a exemplo dos contratos de obras públicas e concessão de serviços públicos; e os contratos de Direito Civil, concluídos pela Administração com o escopo de assegurar o funcionamento de um serviço público, mas regidos pelo Direito Privado, a exemplo da venda e locação de imóveis.[40] Neste ínterim, Jèze contrapõe Duguit, para quem inexiste tal dicotomia.[41]

Em resumo, da sistematização proposta por Jéze, tem-se que todos os contratos celebrados pela Administração acabam afetados por regras de Direito Público, a exemplo das regras de competência e forma. O regime de Direito Público não decorre do contrato ou de suas cláusulas, mas das necessidades de funcionamento regular e contínuo do serviço público, o que exige uma interpretação mais rigorosa das obrigações de quem colabora com a Administração. Trata-se, neste sentido, de uma colaboração voluntariamente consentida, de sorte que interesse privado não pode comprometer o funcionamento regular do serviço público.[42]

Nessa medida, as regras especiais que dominam a execução dos contratos administrativos justificam a competência dos tribunais administrativos para o julgamento das contestações decorrentes dos contratos administrativos.

“(...) o atendimento regular e contínuo do serviço público impõe à Administração e ao particular que com ela queira colaborar certas obrigações, as quais o contrato deve prever; caso não preveja expressamente certos aspectos, deve o contrato ser interpretado de modo a serem considerados incluídos, ainda que, para tanto, a remuneração do particular contratante deva ser retificada; o que não se admite é, de um lado e em primeiro lugar, o desatendimento do serviço público, e, de outro, o desrespeito à boa-fé que deve reger toda relação contratual (...)”[43]

Ressalte-se que o respeito à palavra dada, princípio do pacta sunt servanda merece, em Jèze, nos contratos administrativos, a mesma importância que no Direito Civil.

Sobre a possibilidade de alteração e rescisão unilateral dos contratos pela Administração, com a correspondente contrapartida financeira para a outra parte contratante, Jèze “parte da ideia de que é inerente ao serviço público que as necessidades a ele relativas variem no tempo, impondo que o objeto de contratos celebrados por certo período de duração acabem por ter de sofrer modificações, por mais que a Administração tenha sido cuidadosa e previdente ao celebrar o contrato”.[44] Em verdade, subjaz a essa noção a ideia de que a alteração não é do contrato propriamente dito, mas da organização do serviço público que é o seu objeto.

Neste diapasão, as cláusulas exorbitantes aparecem, na evolução da doutrina francesa, como um elemento complementar às regras gerais que asseguram à Administração prerrogativas próprias, que transbordam os quadros do Direito comum (civil), decorrentes da presença do serviço público. Assim, se é inerente à ideia de serviço público a mutabilidade à qual se deve aperfeiçoar o contrato administrativo, é preciso, de outra forma, assegurar a natureza comutativa e sinalagmática do avençado, preservando-se a intangibilidade da situação financeira do contratante.[45] Menezes de Almeida, neste sentido, explicita quatro proposições formuladas por Jéze acerca da Teoria da Imprevisão: a) o contratante privado deve cumprir as prestações fixadas, mesmo ante à superveniência de eventos econômicos excepcionais, imprevisíveis e independentes da vontade das partes; b) essa obrigações cessa se decorrer impossibilidade material absoluta, configurando-se caso de força-maior; c) fora o caso anterior, se a colaboração for interrompida, configura-se falta grave; e, d) esforçando-se para cumprir o contrato, o contratante terá o direito de exigir que a Administração participe nas perdas do negócio.[46]

A bem da verdade, as ideias de Jéze supra assinaladas não eram pressupostos que balizavam ditos contratos em todos os países da Europa. Na Alemanha, por exemplo, sob a influência de Otto Mayer, prevalecia a visão de que os contratos de Direito Público não são contratos, mas atos administrativos emanados da autoridade. Isto porque a posição de desigualdade das partes desvirtua a relação contratual, reduzindo a vontade do particular a uma simples adesão. Ainda, para a doutrina alemã, a indisponibilidade do interesse público implicaria que a Adminstração está diante de um objeto não negociável, indisponível. Por isso, para o Direito germânico, na maioria dos casos em que se fala em contrato de Direito Público refere-se, em verdade, a ordens unilaterais cuja legitimidade está sujeita ao consentimento do interessado e, na medida em o Estado só manda unilateralmente, os contratos administrativos são “uma forma repugnante à própria essência do Direito Público”.[47]

Também na Itália do início século XX, a ideia de contrato de Direito Público entre a Administração e particulares era, de início, recusada, conforme se depreende dos trabalhos de Oreste Ranelletti, Frederico Cammeo, Vittorio Emanuele Orlando e Santi Romano. Entre eles, Giannini vê três espécies de contratos firmados pela Administração: os contratos ordinários ou de Direito comum em que a Administração atua como se particular fosse; os contratos ditos especiais, dotados de disciplina legal para o Poder Público; e, os contratos de Direito Público, resultantes da supremacia do interesse público e que se conjugam com ato de submisão do particular.[48]

Por oportuno, Estorninho destaca que se engana quem acredita que a criação da figura do contrato administrativo de inspiração francesa tenha representado um sinal de modernidade e que, nessa medida, tenha constituído um modelo avançado em relação à matriz alemã de contratualização administrativa. Ao contrário, para a autora, a invenção do contrato administrativo não passou de um expediente da doutrina francesa para permitir à Administração manter as suas prerrogativas de autoridade, mesmo na sua atividade contratual.[49]

À guisa de conclusão, retomando algumas das ideias expostas no início deste trabalho, é imperioso considerar que a polêmica em torno da noção de contratos administrativos relaciona-se, diretamente, com questões de princípio ancoradas na posição jurídica da Administração como sujeito e da aplicação do próprio do Direito Privado, prolongando seus efeitos para a própria compreensão do que vem a ser o Direito Administrativo.[50]

Conforme preceitua Eduardo García de Enterría, o aumento da complexidade das funções a serem desempenhadas pelo Estado e a progressiva opção política por se contar com a colaboração de particulares para sua execução, traz a tona e intensifica o problema teórico da explicação da figura jurídica a reger essas relações. Esse mesmo autor adverte, contudo, que as instituições do Direito Administrativo não necessitam de uma singularidade radical, em comparação às do Direito Civil. Buscar dita singularidade parece-lhe o resquício de ingênua tradição de autonomia científica e afirmação do Direito Administrativo.[51]

A teoria do contrato administrativo edifica-se, pois, sobre os elementos jurídico-estruturais herdados da teoria geral e do pensamento civilista francês do início do século XX, desenvolvendo-se com o apoio de Jèze, que conseguiu desvencilhar-se de visões marcadas por elementos ideologicamente individualistas de contrato e pelo fundamento da soberania estatal para o Direito Administrativo.[52]

García de Enterría acrescenta que a justificativa material para os contratos administrativos, em referência aos contratos civis, se dá mediante à localização de ‘cláusulas exorbitantes’, que não cabiam nos moldes dos contratos civis e que impôs, por isso, a criação de figura contratual distinta.[53]

Por fim, como se depreende da análise supra, a primeira caracterização que se encontra no Direito francês de um contrato administrativo está ligada à famosa doutrina do serviço público. Segundo esta tese, o Direito Administrativo era distinto, exorbitante do Direito comum, porque era um direito próprio dos serviços públicos. A aplicação dessa construção ao tema dos contratos administrativos implica, primeiramente, que a solução até então existente, de contratos cuja competência jurisdicional era atribuída aos tribunais do contencioso administrativo será vista como o corolário de um princípio de fundo: esses contratos, na medida em que estão vinculados com o funcionamento dos serviços públicos, não são contratos de Direito Civil, mas figuras institucionais pertencentes ao Direito Administrativo. Este fundamental “salto dialético” é obra do jus administrativista francês mais relevante da escola do serviço público - Gastón Jèze.[54]

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Sobre o autor
Daniel Martins D'Albuquerque

Mestrando em Direito e Políticas Públicas - UniCeub/df Especlista em Regulação de Serviços de Telecomunicações

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

D'ALBUQUERQUE, Daniel Martins. Origem da noção de contrato administrativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3293, 7 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22163. Acesso em: 25 abr. 2024.

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